“Também aprendemos um monte de coisas lendo simples resenhas…” (Umberto Eco)
BIBLIOTECÁRIOS DE BABEL- primeira parte
A frase acima das fotos até poderia ser o mote do meu blog, já que nela aparecem os vocábulos monte e resenhas. É pena que ela se encontra no seguinte trecho, que eu achei incrivelmente frívolo e besta: “Quantos de nós já não se alimentaram do simples perfume de livros que víamos em prateleiras mas que não eram os nossos? Contemplar esses livros para deles extrair saber. Ora, uma razão para ser otimista é que cada vez mais pessoas têm acesso hoje à visão de uma grande quantidade de livros. Quando eu ainda era criança, uma livraria era um lugar muito escuro, pouco acolhedor. Você entrava, um homem vestido de preto perguntava-lhe o que você desejava. Era tão assustador que você não cogitava demorar-se. Ora, nunca houve na história das civilizações tantas livrarias quanto hoje, belas, iluminadas, onde você pode passear, folhear, fazer descobertas em três ou quatro andares, as Fnac na França, as livrarias Feltrinelli na Itália, por exemplo. E, quando vou a um desses lugares, descubro que estão cheios de jovens. Repito que não é necessário que eles compreme nem sequer que leiam. Basta folhear, dar uma olhsfs ns quarta capa. Também aprendemos um monte de coisas lendo simples resenhas. É possível objetar que em seis bilhões de seres humanos a porcentagem dos leitores continua muito baixa. Mas, quando eu era garoto, éramos apenas dois bilhões no planeta e as livrarias viviam desertas. A porcentagem parece mais favorável em nossos dias.”
Nos últimos meses, dois lançamentos vieram se somar à intensa discussão atual sobre o futuro do livro impresso, oferecendo a oportunidade de conhecer as posições de intelectuais e escritores da eminência de Robert Darnton, Jean-Claude Carrière e do Umberto Eco da citação acima: pela Companhia das Letras, A questão dos livros; pela Record, Não contem com o fim do livro (cujo título original é bem mais saboroso: N´esperez pas vous débarrasser des livres). Tratarei primeiramente do segundo.
Jean-Philippe de Tonnac manteve longos colóquis (que viraram, evidentemente, um livro, como não podia deixar de ser!) com o semiólogo e romancista italiano, autor de O nome da rosa, e o roteirista francês que talvez seja o maior nome europeu na sua área[1]. E tanto Eco quanto Carrière não se mostram muito preocupados de que o e-book, as mídias eletrônicas vão substituir o livro tal como conhecemos hoje: “O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados,não podem ser aprimorados. Você não pode fazer uma colher melhor que uma colher… O livro venceu seus desafios e não vemos como, para o mesmo uso, poderíamos fazer algo melhor que o próprio livro. Talvez ele evolua em seus componentes, talvez as páginas não sejam mais de papel. Mas ele permanecerá o que é”.
Tendo liquidado a questão com otimismo e chalaça, logo de início, como são recheadas as duzentas e tantas páginas de Não contem com o fim do livro?
Não se encontrará nenhuma reflexão aprofundada, sagaz ou surpreendente sobre a mudança no paradigma de leitura, da percepção do leitor quanto ao ato de ler, e Eco & Carrière manifestam uma singular convicção de que haverá mais leitores no futuro (mas como vimos logo na abertura, para Eco, o fato de as pessoas freqüentarem livrarias como se freqüenta quaisquer lojas de departamento ou shoppings, o leitor tomado basicamente como consumidor, e esquecendo de que o pessoal das classes D e E, e tenho minhas dúvidas sobre a classe C, a não ser os seus egressos “alternativos”, não ousa ir a lugares assim, que geralmente têm uma aura mais esnobe e intimidadora; e aproveito para lembrar algumas palavras de Jean-Paul Sartre em Questões de Método: “…numa sociedade onde tudo se compra, as possibilidades de cultura são praticamente eliminadas para os trabalhadores, quando a alimentação absorve 50% ou mais de seu orçamento. A liberdade dos burgueses, ao contrário, reside na possibilidade de consagrar uma parte sempre crescente de sua renda aos mais variados campos de despesas”, , palavras publicadas há 50 anos e que ainda valem hoje), embora vejamos inquietantes indícios de que uma onda de analfabetismo real ou funcional varrerá todos os nossos alicerces culturais numa escala de tempo muito próxima.
Mas não, o que ocupa os dois entrevistados é sua condição de bibliófilos (aliás, José Mindlin é citado diversas vezes), de colecionadores (ambos possuem bibliotecas imensas e muitos livros raros e caros). Chega um ponto em que a vida entre livros fica equiparada à dos colecionadores de vinhos e selos. E então a trivialidade e auto-complacência destiladas em Não contem com o fim do livro começa a incomodar.
Conforme fui prosseguindo a leitura, fui me esquecendo progressivamente dos filmes admiráveis que Carrière ajudou a criar (A bela da tarde, O discreto charme da burguesia, A Via Láctea, Danton, Mahabharata) e do meu especial apreço por Eco tanto como teórico quanto como romancista (e da minha convição de que ele deveria ganhar o Nobel): sentia que estava acompanhando a conversa de dois velhos tarados ou dois empedernidos pedófilos, gabando-se de suas perversões e sacanagens, ou de dois nobres do ancien regime francês, pré-Revolução, ostentando sua gula, luxúria e vaidade, enquanto o povo passava fome e privações.
Claro, ambos têm todo o direito de viver bem e desfrutar dos seus prazeres. Só que tudo fica tão blasé, e parece que eles estão tão acostumados ao espetáculo do mundo (Eco diz que, pois estão próximos de se tornarem octogenários, “vivemos cada vez mais e temos a possibilidade de terminar nossos dias numa boa forma insolente”), no qual impera a burrice a estupidez (um tema comum à obra dos dois), que o melhor é dois veteranos trocarem anedotas eruditas, as quais no são ditas com um ar cansado e bolorento, como se eles as tivessem contado e recontado muitas e muitas vezes.
As inteligências afiadas, infelizmente, às vezes também ficam gagás. Esperemos que temporariamente.
(resenha publicada, de forma mais condensada, em “A Tribuna” de 10 de agosto de 2010)
[1] Colaborador tanto do genial Buñuel quanto do, a meu ver, superestimado Milos Forman. Uma colaboração recente entre os dois foi Sombras de Goya, que não passa de um bom filme, muito convencional. Não conheço a produção de Forman na sua terra natal, a Tchecoslováquia, mas após sua ida a Hollywood, tirando o admirável (se minha lembrança não falseia as coisas) Taking off, tudo o que veio depois e que eu assisti, não me causou maior impressão (e se causou foi mais negativa que positiva), a não ser as coreografias de Hair e as notáveis interpretações que ele extraiu em Valmont. Particularmente Um estranho no ninho & Amadeus tiveram uma recepção exagerada, hiperbólica mesmo.
Comentar essa colaboração com o tcheco Forman me faz lembrar que Carrière foi co-roteirista da adaptação de A insustentável leveza do ser (realizada por Philip Kaufman) do compatriota do diretor de O povo contra Larry Flint (outro filme bom e convencional), Milan Kundera. Há uma aura kunderiana nas seguintes palavras de Carrière: “O que mais me impressiona é a completa extinção do presente. Estamos obcecados como nunca pelas modas retrô. O passado nos alcança a toda velocidade, daqui a pouco teremos de nos curvar às modas do trimestre precedente. O futuro é como sempre incerto e o presente estreita-se progressivamente e se dilui.”
Bibliotecários de Babel (segunda e última parte)
“A leitura permanece um mistério. Como os leitores entendem os sinais na página impressa? Quais são os efeitos sociais dessa experiência? Como ela variou? Estudiosos da literatura côo Wayne Booth, Stanley Fish, Wolfgang Iser, Walter Ong e Jonathan Culler tornara a leitura uma preocupação central da crítica textual porque compreenderam a literatura como uma atividade, a construção de sentido dentro de um sistema de comunicação,e não como um cânone de textos”.
É irônico que eu tenha me interessado por A Questão dos Livros [The case for books]mais com o objetivo de enriquecer e complementar, em razão da proximidade temática com Não contem com o fim do livro e, no final das contas, como se pode verificar na primeira parte, as entrevistas de Umberto Eco e Jean-Claude Carrière, a respeito dos quais eu tinha tanta expectativa, se revelaram banais, uma decepção. E a coletânea de ensaios de Robert Darnton (um dos mais respeitados historiadores contemporâneos, especialista no século XVIII, com destaque para o Iluminismo francês, e cuja obra não conhecia ainda, já que não se tem tempo de ler tudo, apesar de já ter me interessado por O grande massacre de gatos, O Iluminismo como negócio e sobretudo Os Best-sellers proibidos na França pré-revolucionária) pode ser considerada um dos melhores lançamentos do ano. É um livro maravilhoso, que eu recomendo entusiasticamente..
Darnton também se mostra otimista com relação ao artefato de leitura em que se baseia nosso tipo de civilização. Mas esteve pessoalmente envolvido num ambicioso empreendimento de digitalização, o que dá um sabor todo especial à sua discussão (afora sua sedutora prosa): em 1997, ele foi o responsável pelo Gutenberg-e, premiação de monografias, e sua preparação e publicação no formato eletrônico (muitos autores de teses não estavam encontrando mercado para lançamento em formato impresso). Eu nunca pensei que ia mergulhar fundo e me interessar tanto pelas tramitações acadêmico-burocráticas de um projeto, mesmo que ele tivesse a função pioneira de “abrir caminho para um novo tipo de difusão do conhecimento, a monografia eletrônica de primeira categoria. Parece certo que determinados tipos de livro eletrônico irão prosperar no futuro próximo, mas isso só será feito corretamente se uma organização como a AHA [American Historical Association] tomar a frente de seu desenvolvimento determinando padrões e legitimando essa iniciativa aos olhos de uma classe profissional composta por céticos”.
Deixo para o leitor desse imperdível A Questão dos Livros saber se o empreendimento vingou. Ou, se vingou, foi nos moldes sonhados por Darnton (cito, entretanto, uma passagem reveladora: “No ano passado, o conselho da AHA votou por tirar das minhas mãos a supervisão cotidiana do Gutenberg-e e consigná-la ao Departamento de Pesquisa…Não creio que ninguém estivesse insatisfeito com meu gerenciamento, mas havia uma sensação de que o Gutenberg-e deveria fazer parte das operações normais da Associação, em vez de ser o projeto de estimação de Robert Darnton”.
Os ensaios (divididos em três seções, “Futuro”, “Presente” “Passado”) são quase todos irretocáveis e envolventes, e discutem a mais ampla gama de assuntos que se pode imaginar, desde o que o Google pode fazer com o futuro da publicação eletrônica, passando pelo massacre físico de milhões de volumes das bibliotecas públicas norte-americanas para que a digitalização dos mesmos se efetivasse, até apanhados históricos sensacionais sobre a importância da bibliografia, sobre o paradigma de leitura totalmente diferenciado do nosso, no início da Era Moderna, sem falar no meu favorito, uma panorâmica da publicação e divulgação das obras de Voltaire.
No primeiro caso, o da bibliografia (A importância de ser bibliográfico), ainda mais numa época como a nossa em que “graças à internet, os textos se tornaram ao mesmo tempo mais disponíveis e menos confiáveis”, ele mostra como a comparação de exemplares das primeiras edições (todos apresentando discrepâncias) ajudou a montar um cânone shakespeariano ainda não-definitivo, porém o mais confiável a que se pôde chegar, e discute o futuro dessa área (cuja zona fronteiriça conflita com a dos historiadores do livro: “Ao contrário dos bibliógrafos, os historiadores do livro estudavam todos os aspectos da produção e difusão da palavra impressa, incluindo suas conexões com mudanças sociais e políticas. Para eles, o ano de 1710 se destacou como momento decisivo na história do copyright…”), para a qual confluem várias disciplinas.
No caso do paradigma de leitura (Os mistérios da leitura), um assunto premente nesta nossa época em que se criam novos suportes físico-cognitivos para essa atividade, ficamos sabendo que os homens do passado liam sem a preocupação de continuidade, interessados em anotar passagens para suas próprias antologias pessoais, seus livros exemplares de como se conduzir na vida: “Os ingleses do início da era moderna liam de forma intermitente, pulando de um livro para outro. Dividiam os textos em fragmentos, que agrupavam em novos padrões ao transcrevê-los em seções diferentes de seus cadernos… ler e escrever eram atividades inseparáveis. Pertenciam a um esforço contínuo de compreender as coisas, pois o mundo era repleto de sinais: era possível navegar por ele utilizando a leitura, e, ao manter u registro do que lia, você criava seu próprio livro, um livro com a marca da sua personalidade”. Acho que esse aperitivo já dá uma indicação do interesse do texto.
E no ensaio sobre a obra de Voltaire (O que é a história do livro?), parece que estamos fazendo uma viagem no tempo, conhecendo intimamente os livreiros-distribuidores que atendiam à imensa demanda da obra do genial e irreverente autor francês: “…eu gostaria de me concentrar no elo menos conhecido no processo de difusão, o papel do livreiro, tomando como exemplo Isaac-Pierre Rigaud, de Montpellier… Pessoalmente, não simpatizava nem um pouco com Voltaire”. Você pensa, leitor, que ele não simpatizava por motivos religiosos, ideológicos, chocado pela verve e iconoclastia voltaireanas? Nada disso: “…deplorava a tendência do filósofo de remendar seus livros, adicionando e corrigindo trechos enquanto colaborava em edições piratas pelas costas dos editores originais. Esses hábitos geravam reclamações dos compradores, que não concordavam em receber textos inferiores (ou insuficientemente audaciosos)…” Uma delícia.
Uma leitura como essa nos faz contar com um longo futuro para os livros…Mas é o futuro, e como saber? O próprio Darnton está há uma década preparando um e-book para revolucionar a sua prática de publicação de material pesquisado: “Não que uma publicação eletrônica ofereça atalhos, nem que eu tenha a intenção de despejar na internet todo o conteúdo das minhas caixas… Meu plano é trabalhar com esse material de diversas formas, abordando os temas essenciais na narrativa em primeiro plano e incluindo nos planos inferiores mini-monografias e documentos selecionados nos arquivos mais ricos. Meus leitores poderão se servir do que quiserem, nas porções que preferirem, e até mesmo interligar meu trabalho com as pesquisas de outros na florescente área da história do livro. Um livro eletrônico sobre a história do livro na era do Iluminismo! Não consigo resistir. Vou mergulhar…”
(resenha publicada em “A Tribuna” no dia 17 de agosto, de forma mais condensada)