“Bem aventurados os tempos que podem ler no céu estrelado o mapa dos caminhos que lhes estão abertos e que têm de seguir!” (George Lukács, A teoria do romance)
“Antes de entrar, olhei ainda o céu muito negro, muito estrelado, esquecido de que a nossa humanidade já não sabe ler nos astros os destinos e os acontecimentos.” (Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha)
(o texto abaixo foi escrito no primeiro semestre de 1994 para o curso Problemas de Teoria Literária: três teorias do romance (alcance, limitações, complementaridade ministrado pelo saudoso João Luiz Lafetá)
PREÂMBULO
No sexto capítulo de Recordações do escrivão Isaías Caminha, o narrador interrompe o fio da sua história passada para comentar sua situação no presente da narrativa e refletir sobre o livro que escreve e que o incomoda. No final do capítulo anterior explodira sua revolta pelas decepções sucessivas no Rio de Janeiro, a última das quais foi ser apontado como suspeito de um roubo ocorrido no hotel onde se hospedara. Defendendo-se na entrevista com o delegado, Isaías, mulato, alegara ser estudante e aquele expressara, então, sua descrença e escárnio: “Injustiças, sofrimentos, humilhações, misérias, juntaram-se dentro de mim, subiram à tona da minha consciência” e ele vitupera o delegado como “imbecil”, indo, claro, para o “xadrez”.
A quebra do relato proporciona ao momento na cadeia um forte timbre iniciático, um rito de passagem que realça a transformação moral de Isaías: do jovem que sai de casa para ser “doutor” ao mulato chamado de “malandro” e “gatuno” pelo delegado.
Meu objetivo é analisar o romance de Lima Barreto a partir da convergência evidenciada no referido capítulo VI de três aspectos de uma mesma problemática: a formação do herói, a revelação do espaço urbano e o uso do romance como “confissão”. Embora tenha dividido a empreitada em três partes, por razões de clareza, isso não significa que sejam estanques, longe disso.
- O HERÓI
“No romance, sentido e vida separam-se e, com eles, essência e temporalidade; poder-se-ia quase dizer que no que ela tem de mais íntimo, a totalidade da ação do romance não passa de um combate contra as forças do tempo. No Romantismo da Desilusão o tempo é um princípio de depravação (…) É por isso que todo o valor é aqui atribuído ao que é vencido, ao que, por isso mesmo que deperece (sic) progressivamente, mantém o caráter da juventude em via de estiolar, e é ao tempo que se reserva toda a brutalidade, toda a duração daquilo que não tem ideias…” (Lukács, A teoria do romance[1])
Quando, ainda no sexto capítulo, o narrador retoma o fio do relato, conta-nos que, liberado pelo delegado, resolve deixar de lado a ambígua’ condição de “estudante” (mesmo porque sua situação financeira aperta). Apavorado pela perspectiva da miséria, resolve tornar-se um trabalhador comum, sem sucesso. Tem a “sensação de estar num país estrangeiro” e, debruçado na muralha do cais, sofre a tentação de se jogar ao mar, “dissolver-se nas suas águas infinitas sem vontade nem pensamento”[2]. A “potência da vontade” (título do livro de cabeceira de Isaías) degrada-se em inércia (a mesma que o levará ao mundo da imprensa), por força da amorfia do destino.
O Romantismo da Desilusão é, para Lukács, a inadaptação do herói cuja realidade interior entra em concorrência com a realidade externa (a sociedade dominada pelas convenções). O romance, como forma, descamba para a análise psicológica e o “lirismo” (representação de estados da alma) ressignifica o estatuto épico da necessidade e possibilidade dos atos heroicos.
O paradigma para o drama de Isaías seria, à primeira vista, Ilusões perdidas, de Balzac. Mas a “essência estiolada” do herói de Lima Barreto já está num ponto mais crítico e abebera-se muito mais do universo flaubertiano, o qual representa uma radicalização quase dissolvente no estreitamento e amesquinhamento do campo de ação das personagens. Pois em Balzac e Stendhal, não obstante o demonismo das forças sociais, a aventura da ascensão social e os mistérios da metrópole permitem ainda uma subjacente “estória romanesca” (afinal, Rastignac encontra Vautrin…)
Embora o Rio (ou pelo menos, um certo Rio) se descortine para Isaías, ao longo de Recordações…, isso não o leva a nenhuma “aventura”; de fato, não há continuidade nas figuras emblemáticas que ele conhece e que lhe apresentam aspectos da vida urbana, como Leiva, o dândi revolucionário (depois jornalista), levando-o tanto a palestras sobre o Positivismo quanto ao Passeio Público. São instâncias episódicas, fragmentárias, que apenas evidenciam o estreitamento do horizonte e o isolamento de cada personagem, o que se acentuará quando Isaías conviver com os membros da redação de O Globo, momento em que a individualidade do herói-narrador estará tão “esmagada”, triturada pelo mundo da experiência, que ele praticamente “some” por páginas e páginas, limitando-se a observar (só voltando ao primeiro plano ao ingressar no corpo de repórteres)[3].
A passividade do herói, malgrado os momentos de revolta (impotente), parece coincidir com a representação do mundo flaubertiana segundo Erich Auberbach, que a contrasta com a balzaquiana: “A vida não mais ondula e escuma, mas flui viscosa e pesadamente. Para Flaubert, o peculiar dos acontecimentos quotidianos e contemporâneos não parecia estar nas ações e nas paixões muito movimentadas, não em seres ou forças demoníacas, mas no que se faz presente durante muito tempo, aquilo cujo movimento superficial não é senão burburinho vão…”
Talvez se possa objetar que, embora medíocres, envolvidos pelo mundo das “ilusões, hábitos, impulsos e chavões” (a famosa bêtise), figuras como Loberant, Gregoróvitch ou Floc acabam por ajudar, dentro do processo de um “romance de formação”, Isaías a atingir certos patamares iniciáticos e de compreensão do mundo. Mas contra essa perspectiva otimista (e a própria ideia “formativa”) há o fundo bovarista que persiste no herói. Lembremos que o próprio Lima Barreto tinha uma concepção muito clara de bovarismo: uma pessoa ou país se representar aquilo que não é (uma das bases, aliás, do ufanismo). Isaías padece desse mal. Desde criança, sentia uma “desigualdade de nível mental” com relação ao meio família, uma “necessidade de ser diferente” que o faz almejar a capital, para atingir a sua “majestade de homem”. Tal visão grandiosa de si mesmo, ainda que confrontada com a dura realidade, subsistirá (e será um subtexto amargurante e irônico do Isaías-narrador).
No mesmo dia em que é preso, ele encontra Gregoróvitch e, durante o almoço, o exaltado estrangeiro lhe fala de “poetas e filósofos”: “Traçou, a grandes golpes, o destino da humanidade, provocou-me grandes e consoladoras visões patrióticas”[4]. Na sequência, ao voltar para o hotel, recebe a intimação. Portanto, a ideia íntima que faz de si (e que poderia ser exaustivamente exemplificada (e que justifica seu ofuscamento inicial com o mundo jornalístico, o complexo napoleônico que assombrou todo jovem imaginativo de um certo período do Ocidente, acaba sendo ridicularizada e degradada pela teia dos acontecimentos.
No Rio de então preparam-se grandes transformações na fisionomia urbana, as quais expressam um desejo de ajustamento de passo (nem que seja por retoques na maquiagem) com o mundo capitalista, porém o herói não participa, a priori porque já é um excluído (pela cor e pela condição social), mesmo que ilusoriamente, ao enfronhar-se na grande mentira da imprensa, pareça ter essa possibilidade no seu horizonte; ao fim e ao cabo, retira-se do jogo, como homem (e como escritor, como veremos). Assim a vida “ondulante e escumante” metamorfoseia-se em “vida viscosa e pesada”.
- O ESPAÇO
“…Sua experiência da multidão comportava os restos da iniquidade e dos milhares de encontrões que sofre o transeunte no tumulto de uma cidade e que só fazem manter tanto mais viva a sua autoconsciência…” (Walter Benjamin, Charles Baudelaire- Um lírico no auge do capitalismo)
“Quando não há muita árvore e muita água a terra de vocês é feia! É preciso que haja muita,muita, para que ela seja bonita…” (Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha)
No mais que referido capítulo VI de Recordações…, ainda próximo ao mar “convidativo” em seu apelo nirvânico, Isaías observa os bondes que passam, que “subiam vazios e desciam cheios”. Observa os olhares de desdém dos ingleses com relação aos brasileiros e o olhar desgostoso dos passageiros quando o avistam: “Eu não tinha nem a simpatia com que se olham as árvores; o meu sofrimento e as minhas dores não encontravam o menor eco fora de mim. As plumas dos chapéus das senhoras e as bengalas dos homens pareceram-me ser enfeites e armas de selvagens, a cuja terra eu tivesse sido atirado por um naufrágio. Nós não nos entendíamos: as suas alegrias não eram as minhas; as minhas dores não eram sequer percebidas[5]… Por força, pensei, devia haver gente boa aí… Talvez tivesse sido destronada, presa e perseguida; mas devia haver… Naquela que eu via ali, observei tanta repulsa nos seus olhos, tanta paixão baixa, tanta ferocidade (…) tive ímpetos de fugir antes de ser devorado… Só o mar me contemplava com piedade, sugestionando-me e prometendo-me grandes satisfações no meio da sua imensa massa líquida…”
O trecho acima é, a meu ver, um notável confronto entre imagens apocalípticas e imagens demoníacas, seguindo a conceituação de Northrop Frye. Por um lado, o demoníaco que veio se abatendo sobre Isaías (abatendo-o), ao longo de toda a ação anterior e que irá continuar seu ato de “devoração” na sequência da história: a cidade indiferente, a multidão ameaçadora, trazendo à mente a imagem sacrificial do bode expiatório (o pharmakós), símbolo do “sparagmós”, o dilaceramento do personagem, cujas dores “não eram sequer percebidas”. É o mundo da experiência (compreendido na grande síntese demoníaca que é a alienação), o qual abriu fissuras no desejo absoluto, “napoleônico”, expresso no primeiro capítulo. Por outro lado, no mesmo movimento (e por isso é tão bela a passagem), vindo justamente após o narrador passar ao leitor as ideias de ferocidade e possibilidade de devoração, a grande imagem apocalíptica do mar, com sua aura de apaziguamento e inocência, uterino, restaurando provisoriamente o mundo do desejo.
Isaías, todavia, não pode subtrair-se ao mundo da experiência e cairá (como Frye alerta tão eloquentemente, os mitos são deslocados: sim, será uma descida aos infernos; ou, ainda, um mergulho no Letes, rio do esquecimento—de qualquer forma, o sempiterno mito da queda) no mundo da produção.
Para o autor de Anatomia da crítica as ideias estruturais do “imitativo baixo” (a grande seara do Realismo, embora se possa encontrar em Recordações do escrivão Isaías Caminha a inequívoca seta para o modo “irônico”—aliás, tanto no sentido de Frye quanto no lukácsiano) são a gênese e o trabalho. A gênese está presente no ato criador de Isaías, é o seu grito dentro do silêncio ameaçador da multidão, de certa forma seu “mergulho” simbólico no mar apaziguante; já a “profissão” é um dos elementos norteadores do romance (a partir do título)—de passagem, é possível apontar o desconforto de Isaías enquanto “estudante” (daí eu ter utilizado o adjetivo ambíguo anteriormente com relação a esse “estado civil”, por assim dizer)—, e o trabalho na grande imprensa concentrará, metonimicamente, toda a força demoníaca da cidade (Benjamin: “Dificilmente a história da informação pode ser escrita separando-a da história da corrupção da imprensa”).
Só no final do romance aparecerá nova indicação da analogia apocalíptica com a inocência. Nas palavras de Frye, “o mundo demoníaco é uma sociedade unida por uma espécie de tensão molecular de egos, uma lealdade ao jugo do chefe que diminui o indivíduo”. O que caracteriza o clima da redação de O Globo, onde há o chefe “tirânico” (Loberant) que se liga ao pharmakós (Isaías) numa relação que afasta o último ainda mais nitidamente de seus objetivos primordiais, propiciando a aparição dos seus dois avatares contraditórios no presente da narrativa (o escrivão e o escritor). Porém, com o mesmíssimo Loberant (e mais uma prostituta italiana), Isaías viverá uma experiência que, trazendo a nostalgia do mundo do desejo, dar-lhe-á força para cortar o laço demoníaco (tal libertação é provisória, a julgar pelas repetidas alusões ao coletor, seu chefe, no presente da narrativa, e com quem parece ter reproduzido dissimuladamente sua ligação com Loberant): Leda, a italiana, quer ir para um lugar “sem gente conhecida”, e o trio dirige-se à Ilha do Governador, onde começam a andar meio a esmo: “o doutor estava apreensivo, eu resignado e Leda contente, recordando talvez a sua infância de campônia”.
À medida que adentram no território da ilha, o lugar leva Isaías à autoconscientização: “… lembrei-me muito da minha casa, e da minha infância. Que tinha eu feito? Que emprego dera à minha inteligência e à minha atividade? (…) Lembrava-me de que deixara toda a minha vida ao acaso e que não a pusera ao estudo e ao trabalho com a força de que era capaz. Sentia-me repelente, repelente de fraqueza, de falta de decisão, e mais amolecido agora com o álcool e com os prazeres…”
Em meio a esse momento de introspecção, que abre uma fissura no companheiro satisfeito e autocomplacente (ainda que subalterno) do diretor do jornal, o trio retorna ao Rio, onde está acontecendo um tumulto, uma aglomeração, por conta da prisão de uma mulher (mais um pharmakós da cidade grande?), a quem Isaías conheceu no passado, justamente quando ainda alimentava as maiores ilusões com relação ao seu destino.
Nesse momento a cidade torna a fechar-se sobre ele, a cidade que conhecera por etapas iniciáticas que nunca configuraram um todo, um sentido, sempre constituíram descensos no seu destino anunciado, proclamado mesmo, no primeiro capítulo (em certo sentido, Recordações… é um romance irônico de de-formação).
E assim, retorno do espaço coletivo para o “herói” individual, cujo último avatar (após ser o estudante futuro doutor, o contínuo e o jornalista pau pra toda obra) é ser double: escrivão-escritor.
- A CONFISSÃO (O romance)
“Désespéré de ce qu´il sait et ne peut plus annuler, mais fidèle malgré tout au Don Quichotte intransigeant qui lui dicte son ideal, il va rester écartelé entre deux exigences incompatibles et également impérieuses, l´une, utopique, qui l´entraîne irrésistiblement dans l´irresponsabilité de la rêverie; l´autre, realiste qui le contraint à regarder de tous ses yeux du côté des choses ´positives´ les plus propres à soulever en lui angoisse, mépris haineux, rage, dégoût…” (Marthe Robert, Roman des origines et origines du roman)
“A má vontade geral, a excomunhão dos outros, tinham-me amedrontado, atemorizado, feito adormecer em mim o Orgulho, com seu cortejo de grandeza e força. Rebaixara-me tendo medo de fantasmas e não obedecera ao seu império…” (Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha)
No sexto capítulo, o peso colocado na escritura do romance, que aparta Isaías da vida comum e passa a ser o último refúgio do Orgulho, faz pressentir a persistência do Enjeitado (enfant trouvé), para utilizar a expressiva terminologia de Marthe Robert, que caracteriza desse modo o tipo criador preso ainda ao estágio pré-edipiano, ao narcisismo infantil. Mas Recordações… também é a história de um arrivismo fracassado, de um “nascimento vergonhoso e no entanto motivo de orgulho”[6], que precisa ser legitimado diante da sociedade por meio de uma trajetória campeã, o que caracterizaria mais o Bastardo (em verdade, a própria condição de Isaías na vida social, como mulato, é bastarda, fruto de um casamento “desigual”), assim como a rejeição já edipiana de diversos “pais” (como Laje da Silva, Loberant); por último, existe o impulso criador que imita o pai, sempre mantido como imagem absoluta e fantasmática.[7]
Mas é justamente (e paradoxalmente) o ato criador—escrever—que imita o ato geracional do pai, o elemento psicológico segundo o qual Isaías retrocede ao Enjeitado, o que sempre foi uma de suas tentações ao longo de toda a narrativa[8], diante do peso esmagador da realidade adversa que faz seu primeiro projeto, napoleônico, esboroar-se (ele agora abraça o projeto quixotesco de corrigir os costumes). E não podemos esquecer a morte do filho, que aniquila o ato criador de Isaías dentro do estágio da sexualidade (e portanto do plano edipiano onde opera o Bastardo). Ele, então, retorna à condição psicológica de “filho” e volta-se para a escrita (trabalho noturno que substitui a atividade sexual), a qual primeiro ele utilizou “bastardamente” como jornalista de O Globo e a seguir como escrivão, e que à noitinha passa a ser o seu veículo mais íntimo, válvula de escapa da libido em regressão.
Daí a confissão, a forma ficcional que utiliza e que também lhe serve como instrumento de represália: faz sua autobiografia, dando-se um nascimento, e criando um “ritual noturno” que se transforma numa luta em que os pesos estão desequilibrados devido ao “lirismo” (ainda no sentido lukácsiano)[9], problematizando o livro enquanto “romance”. Explicando melhor: a confissão, que geralmente é a história mental de um personagem (Frye), e forneceria a base do romance de formação, se desequilibra e se fratura porque no fundo o narrador está se valendo de outra forma ficcional (descrita por Frye como “enciclopédica”), a anatomia[10]. Mesmo esvaziada do seu conteúdo fantástico original, tal forma (e assim o “ritual noturno” da escrita realmente se aproxima do sono da razão) hipertrofia a tendência caricaturesca de Recordações…, mesmo que o narrador aparente manter o decoro realista-naturalista na superfície.
Como o relato é represália, Isaías utiliza os caracteres humanos que conheceu como um enciclopedista que coleciona verbetes, num “simpósio” antitético no qual, no plano do vivido, apresenta-se como observador passivo, vítima e joguete; no plano criador, o demiurgo que os encaixa nos seus ritos de passagem e momentos iniciáticos, acentuando todos os seus aspecto monstruosos[11]. A duras penas, porque ele se sente, nesse processo, como uma “mulher pública” (o que denuncia o lado “embaraçoso”, vergonhoso mesmo, do seu ritual noturno).
Em seus caminhos, Isaías perdeu rapidamente a possibilidade (um dos elementos da equação épica — o outro é a necessidade) de desvarios romanescos do tipo napoleônico (Julien Sorel, Rastignac)… Está mais para Emma Bovary. Por isso, pode muito bem ritualizar a sua má consciência (fazendo o seu número de “mulher perdida”) de ser “especial”, de ser “diferente”, numa atividade noturna inconfessável (apesar de ser uma confissão).
Se não me perdi no caminho, concluo então que é o ato de escrever que caracteriza a ilha do Enjeitado em Recordações… E sua luta como Crusoé nessa ilha é com a matéria que escreve, a qual representa o mundo onde atuou como Bastardo. Por isso seu romance representa sua má consciência (que se junta ao solipsismo deliberado de que nos fala Marthe Robert) porque ele reassume a diferença e o sentimento de superioridade que sentia com relação às pessoas do seu lar (à exceção do seu fantasmático pai), e aí que pode se afastar de seu avatar de escrivão, que é ainda seu avatar Bastardo (e que continuará a atuar, como indica o Pós-escrito à “Breve notícia”), enquanto o escritor de um livro noturno (e que é a sua necessidade, aquele outro pólo da equação épica, aqui rearranjado e desalinhavada pelo lirismo) é o seu avatar Enjeitado.
Balzac tornado Flaubert, quase Kafka…
CONCLUSÃO
Procurei demonstrar através da leitura dos caminhos de Isaías Caminha como o “lirismo” (na acepção lukácsiana) acentua-se num romance da fatura realista-naturalista, ressaltando o hibridismo das formas ficcionais presentes no romance.
Tentei mostrar também como isso acompanha um processo em que toda a estrutura social externa ao herói passa a ser uma vasta imagem demoníaca (rompida vez em quando por acenos da natureza, colocada num plano secundário, como um contracanto dissonante), o que constrange, confina e distorce o que Lukács chama de “problema épico fundamental”: necessidade e possibilidade de ação por parte do herói.
Os indivíduos marginalizados nesse processo criam seus próprios avatares compensatórios, em que vivem o avesso da vida, ou então como narradores que vão do confissional (formativo) ao anatômico (enciclopédico e pseudo-totalizante), surgindo então um processo paralelo, introvertido e mesmo intelectualizado, que parece seguir os ditames diurnos da racionalidade e organização da experiência (sempre medida no campo edipiano, da sexualidade formada), contudo também correspondendo aos apelos noturnos do narcisismo pré-edipiano.
Espero, dessa forma, ter encontrado para a análise do livro de Lima Barreto uma síntese coerente do psicanalítico, do sociológico e do campo formal.
VER TAMBÉM NO BLOG:
https://armonte.wordpress.com/2012/11/26/a-traicao-ao-anonimato-papeleiro/
https://armonte.wordpress.com/2012/11/25/o-falso-conselheiro-aires/
https://armonte.wordpress.com/2012/05/08/genio-da-raca-lima-barreto/
[1] Utilizo a tradução portuguesa de Alfredo Margarido.
Observe-se que, numa formulação bem diferente, as noções de depravação da temporalidade (mundo da experiência) e do sacrifício da essência (mundo do desejo) apresentam afinidades com a caracterização do “demoníaco” (inclusive com a “vítima sacrificial”) de Northrop Frye em Anatomia da Critica.
[2] Esse desejo tem um quê de retórico, em certo sentido: muito mais do que a perspectiva de suicídio, parece interessar ao narrador transmitir a sensação de aniquilação de um sonho.
[3] Todas essas considerações me levam a pensar nas brilhantes afirmações de Auerbach acerca dos personagens de Flaubert, no seu Mimesis:
“O que acontece com estes dois [Emma e Charles] vale para quase todos os personagens do romance. Cada um dos muitos seres medíocres que nele se movimentam tem o seu próprio mundo de estupidez néscia, um mundo de ilusões, hábitos, impulsos e chavões; cada um está só, nenhum pode compreender o outro, nenhum pode ajudar o outro a atingir a compreensão…” (trecho do capítulo “Na mansão de La Môle”, grifo meu).
Benjamin, no seu ensaio sobre a Paris do Segundo Império, afirma por sua vez: “Essa indiferença brutal, esse isolamento insensível de cada indivíduo em seus interesses privados, avultam tanto mais repugnantes e ofensivos quanto mais esses indivíduos se comprimem num espaço exíguo…” (ver Charles Baudelaire- Um lírico no auge do capitalismo)
[4] Essa característica de Isaías faz lembrar os colóquios e efusões entre Emma e Léon, em Yonville, antes da partida dele, quando são os “sensíveis” da pequena cidade.
[5] Perceba-se que o lado da alegria fica para os Outros; para ele, o lado das dores.
[6] “La naissance mystérieuse de l´Enfant trouvé ne lui était en cela d´aucune utilité, mais sitôt qu´il l´échange contre la naissance honteuse et glorieuse du Bâtard—gloire et honte ici ne font qu´un, l´une confirme l´autre—, il intervient en personne dans le processus intime de l´engendrement…” (cf. Roman des origines et origines du roman)
Note-se que não estou me valendo da instância biográfica, que ligaria Isaías a Lima Barreto. Não é o terreno da minha leitura, totalmente voltada para motivos formais e conteudísticos, e não os intencionais (a não ser do personagem).
[7] “…il relègue son père dans un royaume de fantaisie, dans um au-delà de la famille qui a le sens d´un hommage et plus encore d´un exil…”
Curiosamente, Isaías coloca o pai num plano ascético totalmente disparatado com relação à existência da mãe, o que torna seu nascimento realmente um deslize que ele precisa legitimar enquanto criador—ou seja, ele precisa justificar sua existência.
Outro aspecto interessante: a atitude de Isaías com a esposa. Parece muito com a que mantinha com a mãe.
[8] Basta observar o seu trato com as mulheres e suas reflexões sobre o ato sexual (que têm algo de enojado e punitivo).
[9] Assim, a “apreensão” do Rio de Janeiro, sempre um dos grandes fascínios da obra de Lima Barreto, é dada pelo viés de um estado d´alma de Isaías, o que, a meu ver, confirma plenamente as seguintes afirmações de Benjamin: “As descrições reveladoras da cidade grande (…) procedem daqueles que, por assim dizer, atravessam a cidade distraídos, perdidos em pensamentos ou preocupações”. O autor de Um lírico no auge do capitalismo nos dá Dickens como exemplo desse transeunte não-observador (mas que entretanto revela a cidade), e cita Chesterton, o qual escreveu o seguinte sobre o grande vitoriano: “Quando concluía o trabalho, não lhe restava senão andar à solta, e então vagava por meia Londres. Quando criança, foi um sonhador; seu triste destino o preocupava mais que o resto (…) Dickens não recolhia em seu espírito a impressão das coisas; seria mais exato dizer que era ele quem imprimia o seu espírito nas coisas” (grifo meu). Seria preciso lembrar também que em Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá há aquele maravilhoso capítulo chamado “O passeador”?
[10] Diga-se de passagem, me parece que o desenvolvimento da obra de Lima Barreto registra crescente tendência enciclopédica. Lanço a sugestão, já que não é possível desenvolver a ideia, aqui.
[11] A “deformação” decorrente da presença da anatomia enquanto processo literário em Recordações… pode ser exemplificada pela caracterização de Raul Gusmão, cuja fala era um “espumar de sons ou gritos de um antropoide que há pouco tivesse adquirido a palavra articulada”; mais adiante, o narrador chamá-lo-á de “pithecanthropus literato”. Não é como se um naturalista fizesse a descrição e classificação de espécimes?