CINQUENTA TONS DE FÚKSIA
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 23 de outubro de 2012)
“Não me preocupo em abrir as janelas e atinar com o mundo, porque não parece haver no mundo nada que possa me interessar”.
Procura do Romance foi anunciado como finalista das três premiações mais badaladas do Brasil: o prêmio São Paulo de Literatura, o Portugal-Telecom e o Jabuti. Deste último, fez-se agora a divulgação—que causou polêmica— dos resultados: um dos jurados deu notas baixíssimas, até mesmo zero, tanto para a consagrada Ana Maria Machado quanto para o livro de Julián Fuks, do qual foi retirada a citação acima, desclassificando-os do páreo1.
Nada sei dos motivos que levaram esse jurado a atitude tão radical, mas com relação à Procura do Romance, concordo com sua avaliação negativa: trata-se de um descalabro e uma desmoralização a inclusão de texto tão ruim em listas que deveriam ser mais criteriosas. Não fossem as panelinhas, os compadrios e apadrinhamentos, dificilmente se levaria a sério essa estreia no gênero de um autor que, nascido na Argentina, mas criado aqui, tinha deixado boa impressão com seu Histórias de Literatura e Cegueira (2007).
Com a maior cara de pau, Fuks anuncia para o leitor que acabou de inventar a roda, ou seja, a metalinguagem. A procura, nesse caso (já que não acontece nada no relato), é a procura do gênero literário: dado o diagnóstico-ladainha constante de que o romance morreu, é preciso resignar-se aos jogos em que a ficção se volta para si mesma. Assim, o livro pode ser tomado como o 50 tons de cinza da narrativa autorreferente, da chamada “literatura exigente”. Ou seriam 50 tons de fúksia?
Mas seria injusto dizer que Fuks procede como aqueles escritores que vão passar um mês em qualquer parte do mundo, ou uma temporada na, digamos, Mongólia, e fazem questão de mostrar nos livros que nascem da experiência (porque sempre há um livro no horizonte) que não vão falar do lugar, que vão ignorá-lo, e que ele é um palco como qualquer outro seria para o exercício da “literatura exigente”. Seu protagonista chegou a morar por alguns anos (à época da infância) num apartamento em Buenos Aires, para o qual volta, com o intuito de escrever um romance. Que poderia ser proustiano, pois há a lembrança das carências quando menino, beijos maternos,terrores infantis; que poderia ser cortazariano, pois há jogos sutis entretecidos entre o protagonista e uma moça desconhecida numa visita a uma exposição de Picasso; que poderia enveredar pelo fantástico do tipo kafkiano ou borgiano, com alguns elementos insólitos a quebrar a rotina cotidiana; que poderia ser joyceano ao realçar elementos outrora considerados irrelevantes do cotidiano; só que todas essas possíveis veredas já exploradas pela ficção romanesca são contrariadas, canceladas, truncadas. Procura-se o romance, não se chega a ele.
São 142 páginas nessa toada. É chocante ver como alguém caiu no ridículo de escrever essa besteira, aos 30 anos. Se tivesse 18, apesar de chatinho, seria mais justificado. A essa altura, parece uma empulhação piorada pelo fato de que escreve como se fosse má tradução de um original argentino. Nem nesse ponto ele foi feliz: poderia ter logrado uma experiência de junção de duas línguas, tal como fez Junot Díaz no ótimo A fantástica vida breve de Oscar Wao.
Seu protagonista não lê um livro apenas: “As retinas vão se maculando de todos aqueles incontáveis sinais gráficos” !!?? Deve ser aquela história da literatura e da cegueira.
Chove? não, é claro, caem “As gotículas do líquido natural derramado”!!?? Eu poderia continuar com trechos do mesmo naipe (numa livraria—onde mais?—ele sonha “situar seu inominado protagonista e entregá-lo a seu habitual solilóquio de devaneios meditados à exaustão, quiçá esse sujeito—se escritor—cogitando a possibilidade de situar seu respectivo protagonista nas mesmas condições e entregá-lo a outros—ou os mesmos—devaneios meditados à exaustão”), mas tenho muita consideração pelo meu leitor para martirizá-lo assim. Só peço permissão para transcrever o meu favorito: “Não, prossegue em seu caminho e se indaga em questionamentos erráticos, por que esse impulso de roubar para o texto o que é da vida, de converter em ficção o que a ficção não comporta, por que quer brindar seu personagem ou o personagem de seu personagem com essa manifestação patente de voluptuoso acaso quando poderia guardar para si e só para si essa volúpia…”
O narrador fuksiano não precisa se preocupar. Da vida, ele não roubou nada. Só o nosso tempo. A não ser que pensemos na premiação em dinheiro que ele ainda pode amealhar no Portugal Telecom. Se não houver um jurado sensato ali, como no Jabuti, será a abobrinha mais cara da história.
RESPOSTA AO TEMPO
resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de outubro de 2012
Assim como Julián Fuks, cujo Procura do Romance comentei na semana passada, Paloma Vidal é de origem argentina e veio para o Brasil na primeira infância. Ambos são ainda muito jovens (ela, nascida em 1975; ele, em 1981) e iniciaram suas carreiras publicando coletâneas de contos na prestigiosa Coleção Rocinante da editora 7 Letras (ela, A Duas Mãos; ele, Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e Eu).
As semelhanças param por aí. Enquanto Procura do Romance deixa a desejar, literária e humanisticamente, o segundo romance de Paloma, Mar Azul, é das melhores experiências do gênero nos últimos anos, e prova cabal (não bastasse o recente Suíte de silêncios, de Marília Arnaud) que o intimismo prossegue como veio forte na ficção, e o mais importante: não é incompatível com o rigor de linguagem. Estamos longe do prolixo e do excessivo que muitas vezes prejudicam uma literatura mais subjetiva, assim como estamos longe também da “morte do Sujeito” e da desconfiança com relação a experiências pessoais significativas que marcam certo mainstream geracional.
Uma narradora setuagenária, radicada no Rio de Janeiro (onde tem a visão do oceano, tão necessária para sua existência: “Falei de quando eu vi o mar pela primeira vez. Eu disse que nunca me esqueci disso. Eu acho que eu disse que foi a emoção mais forte que eu já senti.”), após emigrar da Argentina sob ditadura (sua melhor amiga, Vicky, tornou-se uma das “desaparecidas” do regime), numa longa viagem de ônibus durante a qual vivenciou uma fugaz e pungente história de amor (ela fugia igualmente de um relacionamento brutal e abusivo com o ex-estudante de um colégio militar, a quem denomina simplesmente R.), quase um rito de passagem, vasculha os cadernos do pai e no avesso do que ele deixou ali anotado, também escreve, naquela costumeira tentativa sherazadiana —presente em todos os contadores— de enfrentar o tempo, a mortalidade, os achaques da idade e os lampejos de uma memória torturada (como diz, a “propensão de não me livrar de nada”).
O pai meio que a abandonara na casa de Vicky, cuja mãe era “pra frente” (embora as duas mantivessem uma relação turbulenta e passional), como se dizia antigamente, e depois fora trabalhar na construção de Brasília, morrendo após um sombrio período em que perdera progressivamente a memória, numa das cidades-satélites, onde a protagonista descobrirá sua papelada, a qual no entanto persistirá um mistério tanto para ela como para nós.
A sua própria vida reveste-se de uma opacidade excruciante. Serão sempre fragmentos, um material miasmático, que às vezes ela tem coragem de enfrentar, às vezes não. Por isso (e em consequência das obras anteriores de Paloma Vidal), Mar Azul vem sendo examinado sob a rubrica da memória e da identidade.
Sem que esse ângulo de percepção do livro seja exatamente incorreto, creio que sua maior força (e é justamente por isso que o texto cresce a partir da sua metade; dos seus 50 capítulos —emoldurados por vários diálogos no início, e um no final—, é mais nos primeiros que encontramos uns quantos trechos rebarbativos e óbvios do tipo “O vácuo me deixou sensibilizada”, “As batalhas subjetivas não me vencem tão facilmente”, “Só o mar me acolhe do lado de fora. Será ele uma espécie de memória?”, que felizmente se diluem na qualidade geral do texto) reside na apreensão do cotidiano atual da narradora, os pequenos laços prático-afetivos que, em sua vida de professora aposentada, estabelece com porteiro e jornaleiro, suas idas e vindas aos consultórios de médicos do plano de saúde, sua necessidade de criar rotinas “positivas” (caminhar e nadar), tendo sempre o mar como uma espécie de amuleto, para não se deixar tragar pela melancolia dos cadernos que representam seu diálogo com o pai:“Espero que algo me diga: vá. Algo que não sou eu, que não é minha voz, talvez meus músculos, minha pele, meus órgãos. Algo que se mova sozinho. Algo que me faça dar o próximo passo. Quando penso isso já estou debaixo do chuveiro e a sensação da água sobre mim me diz que o dia vai ser bom.”
Desse presente que parecia tão tênue e fugidio, e depois vai se impondo, fazendo do passado um resíduo fuliginoso, apesar das suas tentações, é que Mar Azul tira a sua novidade, a sua mistura apaixonante de gravidade, de texto progressivamente lapidado e de experiência intimista formulada de forma a fazer com que o caos das experiências externas e internas ganhe uma voz narrativa carismática, com a qual Paloma Vidal se ombreia aos nomes mais expressivos da sua geração, como Ricardo Lísias, Daniel Galera e Michel Laub.
1A matéria em que me baseei para escrever minha resenha é a seguinte (depois os fatos ficaram melhor esclarecidos, devido aos desdobramentos do caso, e parece que foram os outros dois jurados que atribuíram nota baixa ao livro de Fuks, no entanto isso não interfere na abordagem central do texto):
Notas zero definem categoria romance no Jabuti
19 de outubro de 2012 | 9h 21
MARIA FERNANDA RODRIGUES – Agência Estado
A nota de um dos três jurados do Prêmio Jabuti foi responsável pela definição do vencedor do melhor romance de 2011, Nihonjin, de Oscar Nakasato.
De identidade ainda desconhecida – seu nome só será divulgado na cerimônia em 28 de novembro -, o membro do júri distribuiu notas baixíssimas para concorrentes como Julián Fuks, que foi finalista do São Paulo de Literatura e está no páreo pelo Portugal Telecom, e Wilson Bueno, prêmio APCA de romance em 2011 por Mano, a Noite Está Velha.
Autora de mais de uma centena de livros e presidente da Academia Brasileira de Letras, a escritora carioca Ana Maria Machado, por exemplo, recebeu zero em dois critérios: construção de personagem e enredo.
“Dar um zero a uma autora já consagrada é pesado e exagerado, mas é um direito do jurado. As regras deste ano abriram margem para que uma nota tivesse peso decisivo e o jurado percebeu a influência da matemática”, disse José Luiz Goldfarb, curador do tradicional prêmio.
Neste ano, os membros do júri puderam dar de 0 a 10 às obras concorrentes. Antes, a pontuação ia de 8 a 10 e era possível usar notas decimais, o que tornava a disputa mais equilibrada. Para a próxima edição, Goldfarb já pensa em mudanças – deve eliminar a nota mais baixa e incluir uma quarta pessoa na comissão formada, no caso da categoria romance, por jornalistas e críticos literários.
“Agora, não há o que fazer, porque o regulamento é claro e seu voto deve ser respeitado.” Segundo o curador, o tal jurado já participou de outras edições do prêmio.
Em 2010, Nakasato, então professor de literatura do ensino médio em Apucarana (PR), tirou o romance Nihonjin da gaveta e o inscreveu no 1.º Prêmio Benvirá. Era seu primeirooriginal. O júri, composto por José Luiz Goldfarb, Nelson de Oliveira e Ana Maria Martins, escolheu a obra por unanimidade e, como prêmio, o professor ganhou R$ 30 mil. O livro, sobre a imigração japonesa, foi editado pela Benvirá, da Saraiva, em 2011. Ontem, Nihonjin desbancou obras como Infâmia, de Ana Maria Machado. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.