(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 06 de fevereiro de 2018)
Às vésperas do fatídico AI 5 (completa 50 anos), que aumentou a repressão da ditadura militar, Carlos Heitor Cony publicou um belo romance, “PESSACH: A TRAVESSIA”. O narrador, Paulo Simões, sente vergonha de suas raízes judaicas (pessach é um evento do fim da escravidão dos hebreus no Egito). Escritor desprezado pela esquerda, no seu aniversário de quarenta anos, recebe (seu amigo Silvio o chama para participar da luta armada) e faz várias visitas. Numa delas, o pai revela o temor de que o Brasil siga a Alemanha Nazista e lhe dá uma capsula com veneno.
No dia seguinte devido a uma cadeia de acontecimentos inesperados, Paulo acaba se juntando a um grupo guerrilheiro e inicia uma nova travessia.
Paulo é o típico herói do Existencialismo, para o qual a existência é gratuita e o indivíduo é livre e “disponível”. Mas, como somos seres contingentes estamos sempre “em situação”. Esse herói pode se engajar politicamente, gerando o absurdo (Albert Camus lastimava que o revolucionário amava “uma humanidade que ainda não existia”).
Paulo me lembrou de um extraordinário romance de Paul Auster, “A Música do Acaso”. Ambos se deixam levar pelos acontecimentos aleatórios e o acaso transforma-se em destino (Paulo se queixa de ser um prisioneiro e um guerrilheiro retruca que ele teve diversas chances de fugir).
“Olho a máquina: não foi para escrever sobre bidês que amealhei sofrimentos e espantos, tréguas e esperanças. Vontade de mandar um bilhete ao editor comunicando simplesmente: não escrevo mais sobre bidês. Vou para a luta. Minha luta não é a mesma de Vera, de Sílvio, de Macedo. Meu pai tem medo, medo milenar e carnal que acompanha os homens de sua raça. Esperou o fim da vida para sentir esse medo e esse compromisso. Lembro dele tocando violino na churrascaria, não parecia sentir o estigma que sobre ele pesava. É melhor escrever sobre os judeus que sobre os bidês. Enquanto Macedo hesita, sem saber se adere ou não às guerrilhas, eu tenho outra hesitação, mais estúpida e amarga: bidê ou Pessach”.
Esta é uma das grandes passagens do livro, que faz um uso notável do diálogo, que o torna muito atual e jovem, e tem um final estupendo, quando o acaso vira realmente destino.