MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

07/01/2014

PRECISAMOS FALAR SOBRE O LEONARD

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“O melhor, pensou Alfred, era ficar fora do caminho no porão, e trabalhar com o que tinha. Ofendia seu sentido de proporção e economia jogar fora um cordão de lâmpada noventa por cento bom. Ofendia o sentido que tinha de si mesmo, porque ele era um indivíduo nascido na era dos indivíduos, e um cordão de lâmpadas também era, como ele, uma coisa individual. Por menos que tivesse custado, jogá-lo fora era negar seu valor e, por extensão, o valor da individualidade de forma geral: designar deliberadamente como lixo um objeto que ele sabia que não era lixo. A modernidade esperava aquela designação, e Alfred resistia a ela.” (trecho de As correções, de Jonathan Franzen)

“Na maioria das vezes, enquanto estou aqui, sentado na aula de inglês da A.P., penso no modo como meus colegas estão sempre levantando a mão e puxando o saco da Sra. Giavotella para ganharem notas A, que eles enviar]ao para Harvard, Princeton, Stanford ou qualquer outra merda, junto das mentiras sobre quanto serviço comunitário supostamente fizeram e de ensaios sobre o quanto se preocupam com as crianças das minorias pobres que eles nunca conhecerão na vida real, ou como salvarão o mundo armado com nada além de um grande coração e a formação na Ivy League.” (trecho de Perdão, Leonard Peacock, de Matthew Quick)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 07 de janeiro de 2014)

Minha maior expectativa, durante a leitura de Perdão, Leonard Peacock [Forgive me, Leonard Peacock, EUA, 2013, que comento na tradução de Alexandre Raposo], era se Matthew Quick iria mesmo chegar ao extremo da situação central: no dia em que completa 18 anos, Leonard pretende matar (e em seguida cometer suicídio) Asher, seu melhor amigo na adolescência, o qual começou a abusar sexualmente dele, seguindo os passos de um tio pedófilo; ainda assim, com essa “história secreta” entre ambos, esses podres no armário, o agressor se tornara uma figura popular no ensino médio, praticando bullying frequentemente; em contrapartida, sua vítima é agora um dos “esquisitos” da escola, isolado inclusive no lar, com um pai sumido e uma mãe ausente, envolvida pelo mundo da alta moda (Leonard praticamente vive sozinho em casa).

Tinha minhas dúvidas: afinal, em O Lado Bom da Vida (cuja adaptação para o cinema rendeu o Oscar a Jennifer Lawrence), de 2008, depois de compor um dorido quadro de violência doméstica, boçalidade e disfuncionalidade, Quick atenuava tudo com apresentações de dança triunfais e confraternizações festivas e testosterônicas em estacionamentos de estádios de futebol americano. O que era um desperdício, pois ao longo do romance, o jovem e estreante autor demonstrava um inegável talento.

Em Perdão, Leonard Peacock cuidadosamente é evitado (embora seja um pano de fundo que nos vem facilmente à mente, cf. TRECHO SELECIONADO) o desdobramento mais comum (pelo menos nos EUA) da infelicidade adolescente que chega a um ponto irretornável: o massacre dentro de uma escola. Não, Leonard quer um ajuste de contas com Asher e pôr fim à sua infelicidade solitária, à falta de perspectivas (não no sentido econômico, bem entendido)[1], à percepção de que os discursos dos adultos são mentirosos e que as suas próprias existências são vazias e patéticas (ele tem o hábito de faltar às aulas e passar o dia observando as pessoas nos trens, seguindo as que parecem mais infelizes).

Antes de realizar seu desesperado ato declaratório, Leonard dá presentes a quatro pessoas (o que possibilita a recapitulação de sua vida): um velho vizinho em estado terminal, que compartilha com ele o gosto pelos filmes de Humphrey Bogart; um colega de origem iraniana, virtuose do violino e vítima de bullying; o único adulto funcional que ele respeita, um professor gay cujas aulas sobre o Holocausto são esclarecedoras e controversas; uma menina ultrarreligiosa (do tipo que distribui panfletos nas ruas sobre a aceitação de Jesus no coração ser o único meio de escapar do inferno), mas que o atrai irresistivelmente e em quem ele queria dar seu primeiro beijo.

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Como em O Lado Bom da Vida alternam-se acuidade e achados (infelizmente, o melhor deles, as cartas do futuro, nas quais Leonard fantasia uma existência em 2038 após um desastre nuclear global, numa espécie de farol isolado, com sua família—não é bem equacionado na economia narrativa, para a qual poderia ter fornecido uma moldura mais eficaz e imaginativa) com graves desacertos (especialmente a história pregressa com Ashe, tão mal contada que nunca convence muito como  “gatilho” para decisões tão radicais) e uso de receitinhas certamente aprendidas em oficinas criativas (como certas firulas tipográficas, por exemplo, ou as notas de rodapé que correm paralelas à narrativa—recurso que foi usado tão magistralmente por Joyce Carol Oates em Minha irmã, meu amor—e as constantes alusões hamletianas).[2]

E a minha expectativa, afinal? Não, imperdoavelmente, Leonard Peacock e Matthew Quick parecem não ter coragem de ir até o fim: entra em cena o “bom professor” Silverman e os fãs da autoajuda são cortejados com as mais pífias mensagens de otimismo e confiança no poder das “pessoas únicas” que alguém possa imaginar, uma xaropada que dá uma freada brusca e fatal na possibilidade de termos diante de nós um Apanhador no Campo de Centeio para a nossa época, com os temas tão presentes do bullying (cuja condenação geral me parece uma etiqueta social hipócrita), do consumismo, da uniformização das pessoas, da estupidez institucionalizada, da falta de senso de dever moral transformado em mero pragmatismo (quando não oportunismo)[3].

Mas a mãe de Leonard, Linda, salva tudo no final: ela entra em cena e o palco se ilumina[4]. Autocentrada de forma mais extremada que um adolescente (o professor Silverman a alerta de que o filho pode ser um suicida e ela diz: “O que você disse para o seu professor a meu respeito?), fútil, incapaz de ver a realidade à sua frente, ela representa tudo o que está de errado no mundo e que Leonard rejeita, e que não vai mudar com sentimentos edificantes e historinhas para boi dormir do encanto de ser diferente. Com essa guinada da aparição de Linda, Perdão, Leonard Peacock termina como um passo a frente na arte de Matthew Quick e permite acalentar a esperança de que ainda poderemos ter dele um grande e destemido romance, sem “mensagens” e sem freios sentimentais[5].

NOTA– O trecho de As correções, de Jonathan Franzen, foi traduzido por Sergio Flaksman.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/02/19/o-lado-bom-da-vida-the-silver-linings-playbook-o-macho-da-especie-vs-o-desespero-visionario/

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TRECHO SELECIONADO

“Ele passa para a parte expositiva da aula, discutindo o conceito de vida dupla, ou ser duas pessoas diferentes ao mesmo tempo —o bom pai alemão da Segunda Guerra Mundial, que janta civilizadamente com a família em uma mesa formal e lê histórias para os filhos antes de beijar suas testas e acomodá-los na cama, tudo isso depois de passar o dia inteiro ignorando os gritos de mulheres e crianças judias, matando-as em câmaras de gás e acumulando cadáveres em horríveis covas coletivas.

   Resumindo, Herr Silverman diz que podemos ser humanos e monstros ao mesmo tempo, que ambas as possibilidades estão em todos nós.

   Alguns alunos idiotas discutem com ele, dizendo que não como os nazistas e nunca poderiam ser, porque Herr Silverman diz que todos nós temos uma vida dupla em certos aspectos. E todos na turma sabem exatamente do que ele está falando, mesmo que finjam não saber.

   (…= os alunos que os professores pensam que são os melhores, na verdade são aqueles que bebem toneladas de álcool nos fins de semana e dirigem embriagados e estupram todo mundo o tempo todo e estão constantemente fazendo com que os menos populares e realmente bons se sintam uns merdas. Mas esses mesmos alunos terríveis transformam-se diante dos adultos que estão no poder, para receber boas cartas de recomendação para a universidade e privilégios especiais. Eu nunca colei em uma prova nem plagiei alguém, e Herr Silverman talvez seja o único professor nessa escola que me escreveria uma carta de recomendação para a faculdade, caso eu quisesse.

    Nossa oradora oficial, Trish MacArthur, recebeu cartas de recomendação dos professores mais populares, e todos os alunos na escola sabem que ela promove as festas mais loucas, só tem bebida e drogas e a polícia sempre aparece, mas como seu pai é o prefeito, os guardas simplesmente dizem: Abaixe o som. Um menino teve uma overdose na casa dela ano passado e acabou no hospital. E, magicamente, a reputação de Trish MacArthur entre os membros do corpo docente permanece imaculada. Ela faz a aula de inglês para os A.P. Exams comigo e me ofereceu duzentos dólares para que eu a ajudasse na dissertação sobre Hamlet. Ela piscou para mim, cruzou os tornozelos, uniu os seios com os ombros e disse Por favor?, toda indefesa, como faz com os professores do sexo masculino. Eles também adoram isso. Aquela garota realmente sabe como conseguir o que quer. É claro que eu a mandei à merda. Chamei-a de Oradora Oficial de Araque, de Farsante, momento em que ela descruzou os tornozelos, deixou a gravidade tomar conta dos seios, parou de piscar como se suas pálpebras fossem asas de borboleta e, com uma voz rouca, adequada à sua idade, disse: Você ainda pretende chegar a algum lugar aqui nesta escola? Você é um inútil, Leonard Peacock.

   Depois me deu as costas e foi embora.

   Essa é a nossa oradora oficial.”

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[1] Um colega diz a ele: “Escuta, você obviamente tem problemas, Leonard. Sinto muito por isso. Realmente sinto. Mas existem pessoas com problemas piores que os seus, isso eu posso garantir. Saia da cidade de vez em quando e verá que estou certo. Problemas de Primeiro Mundo. É isso o  que você tem”.

[2] Portanto, não deixa de ter um certo laivo irônico a crítica fulminante que Leonard faz aos seus colegas por se preocupar em seguir os ditames do politicamente correto nas suas respostas, para obterem boas notas (ver epígrafe).

[3] Uma das razões porque coloquei como epígrafe um trecho de As correções é porque Franzen, através de um personagem completamente travado, mas de uma certa forma emocionante, consegue reproduzir não só a grandeza como a miséria do senso do que é um indivíduo, na grande e ao mesmo tempo problemática acepção da cultura norte-americana. E ele se agarra ao que é peculiar e idiossincrático nele até o fim, até em meio á demência senil que o levará a uma casa de repouso. Nada das fórmulas superficiais e unidimensionais de “diferenciação” do caro Herr Silverman ou mesmo do próprio Leonard, como por exemplo na peroração que faz a Lauren, a menina religiosa: “…eu meio que admirei você de pé na estação de trem, sozinha, entregando panfletos, tentando salvar as pessoas. Parecia tão interessante quando eu a conheci, e nunca havia conhecido alguém interessante desse jeito. Mas você não é assim  na igreja (…) Aqui você é apenas uma entre muitos, ao passo que na estação de trem você era única. E eu sou do tipo que gosta de pessoas únicas…”

[4] O que me trouxe a lembrança o superestimado Beleza Americana e a participação redentora de Annete Benning, cujo personagem era a melhor coisa do filme.

[5] É curioso como uma autora “temática” (na falta de termo melhor) como Lionel Shriver (autora de Precisamos falar sobre o Kevin) consegue dar amplitude e profundidade (além do lastro fabulatório) às ideias centrais que movem seus livros; e se alguém tem alguma dúvida de que Quick se insere, com resultados inferiores, nessa linha, basta ler seus Agradecimentos: “A ideia central deste livro foi nobremente alimentada pelas muitas conversas durante os cafés que tive com Evan Roskos”—então não há problema nenhum em trabalhar tematicamente, e sim na timidez com que ele o faz.

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