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A um correspondente que escrevera sobre A volta do parafuso, de Henry James, Marguerite Yourcenar (a formidável autora de A obra em negro e Memórias de Adriano) respondeu: “… tendo eu outrora traduzido para o francês Pelos olhos de Maisie tive a ocasião de refletir sobre essa outra história de voyeurismo infantil, dessa vez não com espectros, mas com adultos bem vivos e ligados pela menina por estranhos laços de conhecimento cúmplice”.
A associação entre a Companhia das Letras e a prestigiosa Penguin traz de volta a sensacional tradução de Paulo Henriques Britto de Pelos olhos de Maisie (1897), um dos mais geniais exercícios do foco narrativo (o ponto de vista pelo qual é construída e filtrada uma narrativa) já levados a cabo.
Os pais de Maisie divorciaram-se e ela passa períodos com cada um deles, que após um tempo voltam a casar com outras pessoas. Os novos cônjuges, madame Beale e sir Claude, são belos e encantadores, como as crianças de A volta do parafuso, e assim como elas, dúbios; ela, especialmente, vai revelando, na evolução dos acontecimentos (que só conhecemos de forma alusiva, uma especialidade de James que irrita muito o leitor moderno, infelizmente) o mesmo “charme corrupto” dos vilões de Retrato de uma senhora, madame Merle e Gilbert Osmond.
Nas relações que Maisie estabelece com esses ambíguos pais substitutos, está em jogo não apenas uma complexa discussão ético-moral sobre até que ponto uma criança compreende e é corrompida pela conduta sexual dos adultos (daí o título original, What Maisie Knew– O que Maisie sabia, que espantosamente foi deturpado por aqui, sem razão aparente), como também a própria projeção afetivo-erótica de Maisie com relação a Claude, que tornará madame Beale uma rival (obliquamente odiada), apesar do fascínio que a menina tem por ela, como se não bastasse já a mãe. Quem tenta apurar, no que Maisie sabe ou poderia saber, o grau de senso moral da menina é madame Wix, a governanta, numa daquelas associações típicas do universo jamesiano, onde todos adotam um tom conspiratório, entre o fofoqueiro e o investigativo.
O enviesamento narrativo oculta a modernidade e o radicalismo da sondagem psicológica de James do universo infanto-juvenil (cuja influência é rastreável, por exemplo, em textos de Lygia Fagundes Telles, tanto em romances como Ciranda de pedra quanto em textos curtos como O menino e O jardim selvagem). Cabe ao leitor de 2010 levantar os cortinados e rendas meramente decorosos e mergulhar nas dores e delícias do “conhecimento” de Maisie, do percurso da sua (de)formação e da precocidade do seu desejo, e então compreender como nossa educação é uma estratificação de fracionamentos. É por isso que acho tão acertadas as palavras de Marguerite Yourcenar, quando se refere ao voyeurismo infantil e aos laços de cumplicidade. Com sua elegância e discrição, Henry James, nas obras-primas dessa fase da sua produção, Maisie e A volta do parafuso, rompe com o sentimentalismo que sempre cercou (e ainda cerca) a infância, mesmo quando se mostrava a crueldade do mundo, como em Dickens. E nem havia Freud ainda. O que James sabia do ser humano é assustador: “Era da natureza das coisas nunca poderem ser explicadas a uma criancinha, mesmo quando desde o início fora infundido na criancinha em questão o temor infundado de que ela estivesse sabendo até demais. No momento, as coisas eram tão fiéis à sua natureza que quase todas as perguntas eram impróprias.”
Resenha publicada em “A Tribuna” de Santos em 02 de novembro de 2010, a partir de uma resenha anterior, publicada em 24 de maio de 1994