(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 17 de setembro de 2005)
“Mas estas colinas, agora ele as conhece, isto é, ele as conhece melhor, e se jamais chegar a contemplá-las ao longe novamente, penso eu, com outros olhos, e não somente isto mas o interior, todo o espaço interior que não se vê nunca, o cérebro e o coração e as outras cavernas onde sentimento e pensamento têm seu sabbat, tudo será de outra forma disposto…”
O grande crítico Georg Lukács detectou com precisão o significado da “forma biográfica” e do exercício da memória (enquanto reminiscência pessoal) para o romance: é a vitória sobre o “mau infinito” já que a trajetória do indivíduo, sua evolução (até mesmo sua desilusão) continuam a ser “o fio diretor ao longo do qual o mundo vem enlaçar-se e desenrolar-se na sua totalidade” (Teoria do Romance). Nesse sentido, a obra de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, seria o ponto culminante do gênero.
O trecho que abre este artigo pertence a Molloy, o livro inicial de uma desnorteante e inigualável trilogia, composta ainda por Malone Morre e O inominável, publicada por Samuel Beckett no início dos anos 50. É extremamente bonito e parece ir na direção da recuperação do tempo perdido via memória na linha Proust (sobre quem Beckett escreveu um ensaio famoso), da vitória sobre o mau infinito.
Pura ilusão. A trilogia destruirá a memória individual, a narração ficcional e a própria linguagem, mostrando-as como balbucios e tateios desarrazoados, fragmentários, desconexos, lampejos inúteis, cacarecos verbais de seres que mal o são. Como diz Malone: “o essencial se tornou tão mínimo que o fortuito parece sem limites”. Ou, como diz Mahood (de O inominável): “…tendo em vista a inutilidade de contar a si mesmo qualquer coisa que seja, para que o tempo passe, por que eu o faço, como se fossem necessárias razões para fazer qualquer coisa, para que o tempo passe, não importa, pode-se perguntar isso, para lembrete, por que o tempo não passa, não vos deixa, por que ele se amontoa à vossa volta, instante por instante, de todos os lados, cada vez maia alto, cada vez mais espesso, vosso tempo, o dos outros, o dos velhos mortos e o dos mortos por nascer…”
O narrador nonagenário do sensaboroso Memórias de minhas putas tristes através da paixão purificava-se da sua existência não-vivida até atingir uma espécie de virgindade interior que o tornaria compatível com uma adolescente virgem de 14 anos, trazendo-lhe a promessa de anos de vida a mais. É até covardia querer opor ao pior García Márquez um autor tão infinitamente superior quanto Beckett, mas que se pode fazer se o narrador de Malone Morre é (talvez) nonagenário também e se o livro foi relançado há pouco pela Códex ? A tentação era irresistível…
Aliás, é utilizada uma tradução de Paulo Leminski que ficou famosa em 1986, como a primeira realizada no Brasil. O responsável por esta coluna sempre se irritou com isso, uma vez que conhecia o texto numa tradução satisfatória de Roberto Ballalai (editora Opera Mundi, 1973), que o arrogante Leminski ignora em seu posfácio cheio de pose e bobagens (entre outras, dizer que traduziria o maior poema do século, The Waste Land, de T.S. Eliot, como Devastolândia, o que só seria admissível num apocalipse cultural).
Para dizer a verdade, nem a tradução pela qual ele se aurtocongratula, por ter sido feita a partir dos textos em francês (o original) e inglês (traduzido pelo próprio e expatriado irlandês Beckett), conjuntamente, é tão impecável. Há momentos em que perde feio para soluções de Ballalai.
Contudo Malone morre, e com ele morre a lógica do discurso, a vitória precária do romance sobre o mau infinito, o fio diretor que seria a forma biográfica. Só não morrem a paradoxal beleza do texto e o humor, que é uma experiência e tanto na leitura do autor de Malone morre: “e se um dia eu me calar, é porque não há mais nada a dizer, embora nada tenha sido dito. Mas vamos deixar de lado esses assuntos mórbidos e vamos voltar ao tema da minha morte, daqui a uns 2 ou 3 dias se não me falha a memória… a menos que essa porra continue além-túmulo. Mas não vamos pôr o carro na frente dos bois, vamos morrer primeiro, depois vemos como é que fica.” Ou ainda: “…ao lado desta janela que às vezes eu me digo que deve ser uma pintura ilusória, como o teto de Tiepolo em Würzburg, que turista devo ter sido!, até do trema eu me lembrei.”
VER TAMBÉM NO BLOG:
https://armonte.wordpress.com/2011/03/24/o-fim-nunca-chega-endgame-de-beckett/
https://armonte.wordpress.com/2011/03/24/beckett-a-terra-devastada-no-manicomio-do-cranio/