MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

28/06/2014

O triunfo inesperado do romance: “Submundo”, de Don DeLillo

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos  em 02 de outubro de 2001)

 I

     Amanhã, 03 de outubro, a vitória dos Giants sobre os Dodgers no campeonato de beisobol em Nova York, estará completando 50 anos. A bola que decidiu a partida desapareceu. Ela é um dos elementos que interligam a trama de SUBMUNDO[“Underworld”, 1997, aqui no Brasil traduzido pelo grande Paulo Henriques Britto], obra-prima de 700 páginas de Don DeLillo, cujo prólogo é a sensacional narração do histórico jogo de 1951 e é intitulada O triunfo da Morte, alusão ao quadro de Brueghel (fica-se sabendo, ao longo da partida, que os russos realizaram seu primeiro teste , patômico, ombreando-se aos EUA na capacidade de destruir o mundo).

O vizinho de bairro de DeLillo, Paul Auster publicou em 1992 Leviatã, no qual se aborda a questão do terrorismo; o livro, aliás, é dedicado ao autor de SUBMUNDO que, na mesma época lançara outro de seus romances geniais (Mao II), no qual se lia: “Quem poderá ser levado a sério? Apenas o crente letal, aquele que mata e morre pela fé. Tudo o mais é absorvido. O artista é absorvido, o maluco de rua é absorvido, tratado e incorporado. Somente o terrorista ficou de fora. A cultura ainda não conseguiu descobrir como assimilá-lo. É confuso quando o terrorista mata um inocente. Mas essa é exatamente a linguagem que chama a atenção, a única linguagem que o Ocidente entende”.

Um terceiro motivo para se falar de SUBMUNDO e mostrar por que ele é uma leitura obrigatório no momento, ao contrário das supostas e inúteis previsões do sr. Nostradamus (que parecem um terreno baldio, onde se pode achar tudo que se quer): a capa utiliza uma foto perturbadora de André Kertész, na qual vemos o World Trade Center (por sinal, várias vezes citado na quarta parte do romance, ambientada nos anos 70), através de um ângulo sinistro e ameaçador. Com os fatos recentes, a capa ganhou um significado ainda mais tétrico, bem como o livro.

E um escritor fantástico como DeLillo não deixa escapar nada, tudo volta no romance com um novo significado: uma reprodução do quadro de Brueghel (na revista Life) cai nas mãos de Edgar J. Hoover, o chefão da inteligência americana na Guerra Fria, homem reacionário, reprimido e com fobia de micróbios, em plena partida entre Giants & Dodgers. O significado do quadro volta à tona quando ele vai, em 1966, ao famoso Baile Preto e Branco, no Plaza de Nova York, e há protestos contra a Guerra do Vietnã, incluindo uma dança macabra na própria festa, repleta de chiques, ricos e famosos.

Já nos anos 80, conhecemos a velha freira, deliciosamente chamada Irmã Edgar, também reacionária e paranóica com a possibilidade de qualquer tipo de contaminação, assistir ao triunfo da morte nas ruas do Bronx: quarteirões devastados, assolados pela violência e pela AIDS (ela recebe dinheiro de um grafiteiro soropositivo para informar sobre carros abandonados nas ruas).

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II

É muito difícil fazer justiça a SUBMUNDO num artigo. O livro é grandioso demais, já pela estrutura complexa. De 1951 ele salta para os anos 90 e daí vai recuando novamente.

O curioso em Don DeLillo é como um escritor que trabalha com uma realidade em ruínas, com lixo cultural, com a ausência de totalidade, pode ter criado um romance total, numa linguagem tão elevada, se o termo não soar muito pomposo.

O próprio título, como o livro inteiro, é cheio de associações, remontando ao título de um suposto filme subversivo com relação ao regime soviético, feito por Eisenstein (o diretor de O encouraçado Potemkim & Ivan, o Terrível) e também ao título de um filme de gângster do cinema mudo. Por outro lado, também alude ao subterrâneo mundo do lixo, área de trabalho do protagonista, Nick Shay, que nos informa: “Minha firma trabalhava com rejeitos. Éramos manipuladores de rejeitos… fazíamos a cosmologia dos rejeitos… O lixo é uma coisa religiosa. Sepultamos os rejeitos contaminados com sentimentos de reverência e terror”.

Nick é um personagem enigmático, que assassinou um homem e foi parar num reformatório, sendo doutrinado por jesuítas (ele também possui, supostamente, a bola da partida de 03 de outubro). Seu irmão, Matt, pensando sobre ele, chega à seguinte conclusão: “Quando Nick morrer, uma equipe de metafísicos examinará a caixa preta dele… mas nada garante que  vão encontrar a menor pista que seja”.

Nick e Matrt são personagens fabulosos. Esse é outro mistério de Don DeLillo: como um autor que trabalha com um mundo fantasmagórico e insubstancial pode criar personagens tão incríveis? Já em Ruído Branco, o protagonista (contaminado por uma nuvem tóxica que infesta a região onde mora) e sua família eram inesquecíveis.

Em SUBMUNDO, além dos irmãos Shay, temos Klara Sax, a artista plástica conceitual, com a qual Nick teve um envolvimento aos 17 anos, quando ela ainda era uma dona de casa, esposa do professor de xadrez de Matt, o comovente sr. Bronzini, que termina a vida solitário no Bronx, com sua irmã meio esclerosada, enquanto Klara (aos 70 anos) e seguidores fiéis pintam um cemitério de aviões no deserto. Temos a esposa de  Nick, Marian, que tem um caso com o sócio dele e que considera o marido “demoníaco”, procurando desvendar seu estranho passado. Temor Cotter, o garoto negro que, na versão de DeLillo, ficou  inicialmente com a bola do jogo, mas temos principalmente seu pai, Max Martin, cuja história atravessa o romance como contraponto da inversão temporal realizada pelo maior  dos escritores norte-americanos.

Temos Ismael, o grafiteiro, que além de pichar vagões, também faz incursões homoeróticas no subterrâneo-submundo do metrô, temos a já citada irmã Edgar; temos até um psicopata, o qual assassina pessoas nas estradas do Texas…

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III

Paulo Francis, com a superficialidade que lhe era peculiar nos últimos anos, saudou em  1988 A fogueira das vaidades, de Tom Wolfe, com as seguintes palavras: “Nenhum filme ou jornal de tevê tem ou seguiu remotamente, o alcance desta obra, que estabeleceu a primazia da literatura sobre outros meios de comunicação”. A meu ver, Wolfe nem de longe conseguiu isso, mas talvez Francis já estivesse pressentindo que SUBMUNDO estava vindo por aí e encaixar-se-ia perfeitamente nas suas palavras.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2014/06/28/mao-ii-de-don-delillo-o-indizivel-o-impensavel-e-a-linguagem-que-o-ocidente-entende/

https://armonte.wordpress.com/2011/05/24/destaque-do-blog-ponto-omega-de-don-delillo/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/09/se-todas-as-direcoes-sao-a-mesma-cosmopolis-e-o-futuro-insistente/

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21/03/2013

A LIÇÃO DO MESTRE: “Cidadezinhas”, de John Updike

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https://armonte.wordpress.com/2013/03/21/o-mestre-da-mesmice-fosca-do-cotidiano-updike-flaubert-up-to-date/

https://armonte.wordpress.com/2013/03/21/uma-luminosa-reflexao-sobre-a-diluicao-da-fe/

https://armonte.wordpress.com/2013/03/20/coelho-continuara-ou-o-outro-de-philip-roth-john-updike-1932-2009/

Pouco antes da morte de John Updike (1932-2009), a Companhia das Letras lançou um dos seus derradeiros romances, Cidadezinhas (Villages, 2004, em tradução de Paulo Henriques Britto), ótima introdução ao seu universo. Na verdade, parece que estamos vendo a já clássica tetralogia do Coelho em “ponto pequeno”, condensada, eivada de um tom menos ácido e cáustico, mais voltado para o elegíaco, para reiterar sua obsessão com o materialismo e a prosperidade (que se traduz em consumismo exacerbado e crise de valores) de certa parcela provinciana ou suburbana da classe média, ligando-os a uma perda de inocência da civilização norte-americana (ele acreditava realmente nisso, e quem não aceitar essa noção de inocência embasando o sonho americano nunca apreciará as obras desse escritor-ícone dos EUA).

Cidadezinhas percorre um espectro temporal muito similar ao da vida de seu autor (nascido em 1932) e alterna dois tempos narrativos: num deles, na atualidade, Owen Mackenzie é um septuagenário que vive na cidadezinha de Haskells Crossing com sua segunda esposa; despertares, sonhos, a relação do casal vista através dos sinais de declínio físico, fazem com que o relato escorre para o outro tempo e então acompanhamos Owen desde a sua infância numa cidadezinha decadente da Pensilvânia, seu envolvimento com a incipiente informática nos anos 50 (sua próspera carreira será atrelada ao desenvolvimento do mundo virtual), suas primeiras experiências sexuais numa sociedade basicamente puritana, seu primeiro casamento, sua instalação na cidadezinha de Middle Falls (não era nenhum lugar em particular, o que a tornava triunfantemente americana”.), onde transcorre a maior parte da ação, seu primeiro adultério e daí adiante seu mergulho no carnal knowledge (o título original do famoso filme de Mike Nichols, Ânsia de Amar), através das mais diversas mulheres.

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Updike use vale da fórmula clássica do  romance de formação (que Goethe consagrou com seu Wilhelm Meister), dotando seu protagonista de uma “ingenuidade”, às vezes exasperante, mas que permite encarar cada contato e experiência como uma iniciação (no amplo sentido da palavra). No final, ficamos conhecendo Owen Mackenzie (e a sociedade à sua volta) de uma forma mais real e completa do que qualquer pessoa que possamos encontrar na vida. É preciso dizer também que o amor pelos detalhes do autor de Casais Trocados faz com que certas páginas (felizmente, poucas) sejam cansativas (ainda mais porque ele quer fixar cada ato sexual de Owen como o maravilhamento de alguém expandindo seu imaginário, como ritos verdadeiramente iniciáticos, pormenorizando-os à exaustão), ainda que não haja uma sequer em que não encontremos uma formulação luminosa, um exemplo da melhor prosa de ficção que se pode escrever, pelo menos no meu entender.

Assim, mesmo para o apreciador da obra de Updike e para o qual não apresenta surpresas (a não ser as estilísticas), Cidadezinhas funciona como uma síntese desse eterno ir e vir entre graça, tentação e queda. Sexo, sexo, sexo: “algo tão arriscado, com tamanho potencial de vergonha e humilhação. A humilhação fazia parte do êxtase, talvez: era ser abaixado como um balde dentro do poço negro da biologia, sabendo o tempo todo que a corda continuava no lugar, o dia claro da sociedade aguardando lá no alto”.

[resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 7 de fevereiro de 2009]

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O MESTRE DA MESMICE FOSCA DO COTIDIANO: Updike: Flaubert Up to date

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https://armonte.wordpress.com/2013/03/21/a-licao-do-mestre-cidadezinhas-de-john-updike/

https://armonte.wordpress.com/2013/03/21/uma-luminosa-reflexao-sobre-a-diluicao-da-fe/

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[resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de julho de 2007]

Em 1960, uma obra-prima, Coelho corre, deu largada à famosa série de romances que a princípio interrompeu-se em 1990, com Coelho cai, ganhando há pouco tempo seu epílogo definitivo: Coelho se cala. Paralelamente a essa monumental realização, a cada década, John Updike apresentava uma memorável reflexão ficcional sobre a perda de transcendência (seu grande tema) no contexto da sociedade norte-americana: nos anos 70 foi Um mês só de domingos; nos 80, Roger´s version (aqui no Brasil, Pai-Nosso Computador, dá para acreditar?); nos 90, Na beleza dos lírios. Parece que na década em curso o lugar será preenchido por Terrorista (“Terrorist”, 2006, em tradução de Paulo Henriques Britto).

Nele, aos 74 anos, um dos mais sérios candidatos ao disputadíssimo título de maior escritor em atividade nos EUA, ousa entrar na pele de um rapaz de 18 anos, com ascendência árabe por parte do pai (e irlandesa, pela mãe) e ver sua pátria pelos olhos dele, ao contrário dos vovôs que descreve no livro, os quais “tendo renunciado a qualquer pretensão à dignidade, se expõem ao ridículo com roupas justas de muitas cores e estampados diferentes… Já próximos da morte, esses idosos americanos abrem mão do decoro e se vestem como crianças de colo”.

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É uma paisagem espiritual desoladora aquela na qual se movimenta Ahmad Ashmawy, em New Prospect, arredores do Coração de Satã, a metrópole que perdeu suas torres. E é uma pena que Updike tenha escolhido um título tão infeliz, já que o predestinou ao reducionismo temático (e por certo à desconfiança: quem esse wasp pensa que é, propondo-se a discutir e, pior, representar em palavras, a fé islâmica, pensarão alguns) que o termo “terrorista” suscita. De fato, Terrorista conta como Ahmad, possuído pelo conceito de jihad, aceita conduzir um caminhão cheio de explosivos a serem detonados no Lincoln Tunnel. Não obstante, é muito mais o vácuo da vida contemporânea, a falta de perspectiva, o materialismo grosseiro que parece ter se tornado o ar que respiramos, a onipresença da televisão, da propaganda, do consumo, a solidão e indiferença mútuas até de membros da mesma família (vivendo como ovos que se tocam de leve, mas cada um contendo sua própria vida; aliás, esse último aspecto permite a Updike uma das cenas mais lindas do romance: a última conversa entre o mártir voluntário e sua mãe), o que escancaramos ao acompanhar Ahmad: a civilização ocidental que perdeu o decoro.

Em 2007, o paradigma dos romances modernos, Madame Bovary, completa 150 anos. Não poderia haver melhor homenagem a ele do que comentar o mais legítimo seguidor de Flaubert na atualidade, tanto da sua capacidade de criar com pormenores extremos o mundo chapado da mediocridade quotidiana, quanto do impulso (e talento genial), paradoxalmente inverso, de atingir o poético com esse material tão desprovido de Graça (no amplo sentido da palavra). E é por  isso que um romance que coloca o dedo na ferida da hora, a ameaça terrorista e a severidade fundamentalista como resposta ao capitalismo, deserto versus mercado, atinge seu ponto alto numa cena de amor, quem diria, entre adolescentes contemporâneos, e quem diria que eles poderiam ainda gerar lirismo e mesmo assim parecer tão reais para o leitor, inclusive na sua linguagem limitada?

Charlie Chehab, o homem que aproxima Ahmad do seu destino, quer que ele perca a virgindade antes da missão que lhe cabe, e o presenteia com os serviços de uma jovem puta, que é ninguém mais ninguém menos do que Joryleen, paixão do candidato a terrorista durante a high school. O que se passa entre eles (“Você pode acabar sendo a coisa mais próxima de uma noiva que eu vou ter na vida), o desalento que nos dá quanto ao futuro de ambos e dos jovens em geral, porém a intensidade da beleza do encontro deles, já faz valer a leitura de Terrorista.

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UMA LUMINOSA REFLEXÃO SOBRE A DILUIÇÃO DA FÉ

https://armonte.wordpress.com/2013/03/21/a-licao-do-mestre-cidadezinhas-de-john-updike/

https://armonte.wordpress.com/2013/03/20/coelho-continuara-ou-o-outro-de-philip-roth-john-updike-1932-2009/

https://armonte.wordpress.com/2013/03/21/o-mestre-da-mesmice-fosca-do-cotidiano-updike-flaubert-up-to-date/

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em primeiro de julho de 1997)

Uma dos privilégios da boa ficção realista é o de poder trabalhar com matéria histórica já muito conhecida e digerida e personagens já explorados muitas vezes, e mesmo assim extrair deles nova substância e colorido. É o que acontece com o mais recente romance de John Updike, Na beleza dos lírios [In the beauty of the lilies, 1996, tradução de Paulo Henriques Britto]. Repassando a história norte-americana neste século (a trama começa em 1910), o autor de As bruxas de Eastwick faz uma luminosa reflexão ficcional sobre a diluição da fé nos EUA.

Na primeira parte, o pastor presbiteriano Clarence Wilmor descobre não ter mais fé e desiste do sacerdócio. Enfrentando “a realidade inexorável do desaparecimento de Deus”, ele lança sua família na desgraça e na pobreza da cidade industrial de Paterson, agitada por intermináveis greves, como um Jó às avessas, que sofre não por causa da sua fé,mas justamente pelo motivo contrário (é engraçado como no livro fé e sucesso são equacionados o tempo todo): “Para ele, a vida com seus riscos e com a derrota final, estava nas verdades tranqüilas, implacáveis e impessoais que homens sem fé estavam a cada dia descobrindo no vasto mundo que se estendia fora dos muros apodrecidos daquele castelo em ruína. Para Clarence, os domínios do cristianismo haviam se transformado num castelo tão enclausurado, escuro e bolorento que mais parecia pertencer ao Demônio”.

Após sua morte, sua família se muda para uma cidade bem provinciana, Basingstoke, onde a narrativa vai se concentrar no filho caçula, Teddy, que rejeita toda a ideologia norte-americana de ter sucesso e se destacar em alguma coisa, resolvendo levar a vida mais apagada possível. Teddy desconfia tanto da fé quanto do cinema, que fora a última paixão de seu pai, e que está começando a se impor para a sociedade estadunidense avassalada pela Depressão e pela Segunda Guerra: “Esses astros levavam na tela uma vida sempre renovada, a cada filme, sem sofrer algum mal que deixasse marcas permanentes, mas Teddy sabia que o mal deixava marcas permanentes. O filme da sua vida era projetado uma única vez”.

Ironicamente, sua filha Essie se torna uma grande estrela do cinema nos anos 50. Possivelmente, esse é o momento em que o materialismo parece mais triunfante na narrativa, e a espiritualidade mais recalcitrante e deformada, pois é a grande magia do cinema que se encarrega de suprir as necessidades espirituais dos personagens em cena. Também é o momento em que Na beleza dos lírios roça o mundo dos best sellers da fórmula sexo-dinheiro-poder, porque é impossível fugir à vulgaridade do mundo descrito (o próprio esquema do romance, apresentando uma saga familiar, já o predispõe a isso): “Penteada, maquiada, caracterizada, sentia-se envolta numa armadura sutil, flexível e ao mesmo tempo impenetrável; aquela ilha iluminada de faz-de-conta, cercada de andaimes e fios e silhuetas de técnicos às voltas com equipamentos, era um receptáculo maior, uma espaçonave luminosa que a transportava, junto com os outros atores, a uma esfera de segurança imortal, onde nada mudava, nada era perigoso. Uma atenção cósmica pulsava em sua pele, tal como no tempo em que, ainda pequena, Deus observava cada movimento seu, registrava cada prece e cada anseio, sem deixar passar nada, cada fio de cabelo seu era contado”.

     A perícia de Updike faz com que Na beleza dos lírios escape dos clichês e do estilo best seller, mantendo a narrativa sempre como uma exteriorização dos pensamentos e das sensibilidades dos personagens, o que faz com que a primeira parte, a de Clarence, seja nitidamente a mais requintada, enquanto as outras progressivamente vão incorporando o entulho do empobrecimento espiritual e cultural.

O cinema às vezes aparece como uma potência mefistotélica, propondo a troca da alma por uma ilusão de sucesso, e às vezes aparece como um mero peão (tanto que Essie já se torna estrela em plena decadência da velha Hollywood, ameaçada pela televisão) no jogo da perda da transcendência em função da transitoriedade ilusória.

Na última parte, o filho de Essie, Clark, tenta recuperar a fé que o avô perdera, entrando para daquelas seitas doidas e apocalípticas que se recusam a pagar impostos e acabam sitiadas pela polícia e pelas câmeras de tevê: “Sua barba estava maior, e nas fotos que a AP tirou à distância ele parecia uma figura messiânica e sinistra, a barba e os cabelos longos soprados para o lado pelo vento hibernal. Não acreditava em tudo o que estava dizendo, mas adorava a sensação de estar falando naquele pequeno telefone, sabendo que suas palavras estavam sendo ouvidas com atenção por um mundo ávido de informações”.

Quem triunfa no final é o mundo do espetáculo, que gerou o cinema e a televisão e consumiu qualquer autenticidade da vida real, Tudo isso se concentra numa bela passagem, em que Essie recebe pelo rádio a notícia da morte do filho: “Seu coração subiu até a boca quando ouviu a notícia, mas ela própria não sabia se sua reação era sincera; olhou para seu próprio rosto no retrovisor para ver se era uma expressão de atriz. Não; aquela súbita cara de sofrimento era genuína. Seu rosto estava pálido como cera, um efeito que era impossível falsificar”.

John Updike se redime, com Na beleza dos lírios, da chatice do seu romance anterior, Memórias em branco. Pensando bem, o autor de Um mês só de domingos  e Roger´s version parece oscilar entre a contínua demonstração de exuberância e fôlego narrativo e uma tendência à aridez que aparece como sinal de perigo de quando em quando.

Mas seja qual for o saldo da obra de Updike, o que se impõe após uma primeira leitura das quinhentas páginas de Na beleza dos lírios é a certeza de que se trata de um livro importante, que preenche as qualidades essenciais da ficção realista: é abrangente, absorvente, contundente. Multiplica em reflexão o que tem em emoção. Achei o máximo.

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16/03/2013

Resenhas ROTHarianas (2): FANTASMA SAI DE CENA. Mas não o escritor

philip roth

“Tenho a sensação habitual de que minha vida verdadeira já terminou e que estou vivendo uma existência póstuma”.

                              (Keats)

“Isso que o senhor está fazendo não é uma descrição, é uma caricatura, senhor Zuckerman (…) O senhor é um pessoa mais velha que andou afastada de tudo, e o senhor não sabe o que é ser jovem agora. O senhor é dos anos 50 e ele é de agora. O senhor é Nathan Zuckerman. Imagino que há muito tempo o senhor não tem contato com pessoas que ainda não se estabeleceram na vida profissional”.

fantasma sai de cena

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2011/07/11/o-leite-derramado-nada-e-desperdicado-em-o-teatro-de-sabbath/

 https://armonte.wordpress.com/2011/07/11/destaque-do-blog-adeus-columbus-de-philip-roth

ENQUANTO AGONIZO ( Parte Final) 

Não deixa de ser engraçado eu ter comentado na semana passada (ver https://armonte.wordpress.com/2013/03/16/resenhas-rotharianas-1-o-animal-agonizante-e-o-escritor-tambem/)  meu mal estar diante de uma certa desconexão de Philip Roth com a atualidade e a rarefação da sua ficção decorrente disso, e logo na seqüência da leitura de O Animal Agonizante, que motivou meu comentário (que espero não ser entendido como uma depreciação total dessa novela), dar de cara com   Fantasma Sai de Cena, romance no qual outro personagem constante na obra de Roth (já aparecera, por exemplo, nos maravilhosos The Ghost Writer-Diário de uma Ilusão & O Avesso da Vida), Nathan Zuckerman, tematiza essa desconexão e rarefação. Escritor famoso e polêmico, ele isolou por onze anos no interior, devido a ameaças de morte e à impotência sexual causada pelo tratamento de câncer na próstata (e, levando-se em conta o imaginário rothiano, imagine-se o efeito dessa condição).

Na semana em que Bush obtém sua reeleição (em 2004), ele retorna a Nova Iorque para tentar uma intervenção cirúrgica que minimizaria a incontinência urinária que o obriga a usar cuecas de plástico e absorventes. Entra em contato com três jovens candidatos a escritor: um casal, Billy e Jamie, e um amigo (só isto?) deles, Richard Kliman, o qual pretende escrever a biografia do ídolo literário da juventude de Zuckerman, E. I. Lonoff, meio esquecido atualmente e que supostamente seria resgatado pelo trabalho de Kliman. O que revolta o narrador é que parece interessar mais a Kliman construir uma carreira literária através de revelações escandalosas (um suposto incesto cometido por Lonoff) do que resgatar uma obra de valor (além disso, apesar de ser um “fantasma” de si mesmo, Zuckerman deseja Jamie e tem ciúme de Kliman, seu possível amante). O que revolta o leitor é que os “jovens” de Fantasma Sai de Cena não saem do nível da caricatura, e é bem justa a censura de Jamie que serve de epígrafe a este artigo.

Outra personagem importante do romance é Amy Bellette, judia sobrevivente da Segunda Guerra (poderia faltar?), um “fantasma” que se recusa a sair de cena: amante de Lonoff, enquanto ele escrevia seu último livro (nunca publicado), ela é assediada por Kliman, que extorquiu (ou roubou) os originais, e nunca tem certeza do que acontece ou não devido a um tumor no cérebro. Para ela, sua vida se resume aos anos que viveu com o escritor-guru. Zuckerman pergunta a ela: “Como é que uma pessoa vive tanto tempo só de lembranças?” Mas, segundo a própria Amy, Lonoff fala com ela o tempo todo: “Nós conseguimos resolver muito bem o problema dele ter morrido. Agora somos diferentes de todo mundo e muito parecidos um com o outro.

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Fica claro então nessas “sobrevidas” patéticas e erráticas, o que Fantasma Sai de Cena está colocando em cena mais uma vez: o animal agonizante: O fato de eu haver permitido que esse encontro ocorresse me fazia sentir tão desprotegido quanto Amy, poroso, diluído, mentalmente enfraquecido a um ponto que me parecia inimaginável (…) Eu não estava à altura das exigências daquele conflito, não queria vivenciar a perplexidade que ele causava…”

Assim como os setores mais avançados e liberais foram incapazes de deter Bush (derrota ainda mais amarga dessa segunda vez), a impotência derivativa da condição clínica estendeu-se a todos os aspectos da vida de Zuckerman: nessa semana de retorno, se vê incapaz de transformar o rumo dos acontecimentos, nem que seja em escala ínfima e pessoal. Sua própria memória começa a apresentar falhas e lacunas, ameaçando seu único vínculo forte aos 71 anos: com sua própria escrita. E soma-se a isso o sentimento de alienação geral quanto ao mundo que reencontra: “No momento em que levantei a vista, todos estavam falando em seus celulares. Por que motivo aqueles telefones eram para mim a encarnação de tudo de que eu precisava fugir? Eles representavam um progresso tecnológico inevitável, e no entanto, em sua abundância, eu via o quanto eu me afastara da comunidade de meus contemporâneos. Isto aqui não é mais o meu lugar, pensei. Minha carteira de sócio havia expirado. Vá embora (…) Toda aquela confusão em Nova Iorque havia tomado pouco mais de uma semana. Não há lugar mais mundano, mais aqui e agora, do que Nova Iorque, cheia de gente falando ao celular e indo a restaurantes, tendo casos amorosos, procurando emprego, lendo as notícias, sendo consumida por emoções políticas, e eu havia pensado em voltar do lugar onde me refugiara para retornar a vida urbana reencarnado, reassumindo todas as coisas de que havia decidido abrir mão —amor, desejo, brigas, conflitos profissionais, todo o confuso legado do passado— e, em vez disso, como num filme mudo em ritmo acelerado, passei pela cidade por um rápido momento e mais que depressa voltei para casa. Tudo que acontecera fora que algumas coisas quase haviam acontecido, e no entanto retornei como se coisas imensas tivessem acontecido. Na verdade, eu não havia tentado fazer nada, apenas permaneci imobilizado por alguns dias, cheio de frustração, como um joguete num conflito implacável entre os já-era e os ainda-não [isto é, entre os velhos e os novos].

Aniquilado em seu “papel de macho”, assombrado pela ameaça de perder o último reduto (já seu último romance fora uma luta contra a deterioração mental), Zuckerman opta por uma estratégia pungente: reduz sua escrita a cenas esquemáticas, um diálogo entre um Ele e uma Ela (Jamie, mas também a Mulher em geral), em que diz tudo o que está interdito nos compromissos sociais. Um verdadeiro grito de agonia que deixa o leitor perplexo diante da ruindade das cenas, em contraste com o cuidado e apuro com que o resto do texto é construído (sempre um dos encantos da leitura de Roth). Antes, ele discutira a guinada de Lonoff de contos exatos e burilados para o romance que acabara com sua existência: “Ele começou a escrever de uma maneira totalmente diferente da habitual. Antes ele tentava omitir o máximo possível. Agora ele queria incluir o máximo. Achava que o estilo lacônico era uma barreira e no entanto odiava a nova maneira de escrever que adotara. Dizia: é chato, não acaba mais, não tem forma, não tem plano. O triste recurso do diálogo esquemático e interminável, chato, não acabando nunca, sem forma e sem plano, é como se Zuckerman/Roth estivesse nos dizendo que está amarrado à roda de suplício da literatura. Assim como os últimos filmes de Scorsese se retiraram da vida real e se reduziram ao culto do cinema, a literatura se tornou o único referencial em Roth. A carne é triste, e li todos os livros, já se disse. A carne é triste na impotência, nos diz Zuckerman, e só tenho os livros para escrever, mesmo que se tenha perdido  a “mala de truques de escritor” (roubei esta expressão de outro grande judeu americano, E. L. Doctorow), mesmo que as palavras  se reduzam a um monólogo disfarçado em diálogo, a um balbucio, a um estertor.

(resenha publicada originalmente em  A TRIBUNA de Santos, 15 de novembro de 2008 com o título “O escritor agonizante?”)

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Resenhas ROTHarianas (1): O ANIMAL AGONIZANTE. E o escritor também?

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VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/03/16/resenhas-rotharianas-2-fantasma-sai-de-cena-mas-nao-o-escritor/

https://armonte.wordpress.com/2011/07/11/destaque-do-blog-adeus-columbus-de-philip-roth/

https://armonte.wordpress.com/2011/07/11/o-leite-derramado-nada-e-desperdicado-em-o-teatro-de-sabbath/

ENQUANTO AGONIZO (Primeira Parte)

O filme Fatal é baseado na novela que Philip Roth publicou logo depois da virada do milênio, O Animal Agonizante, título extraído de versos de Yeats (“Consome meu coração; febril de desejo / E acorrentado a um animal agonizante / Já não sabe o que é”).

Alguns anos antes, em O Teatro de Sabbath, ele nos dera seu “Rei Lear” (se tomarmos O Complexo de Portnoy como seu “Hamlet”), a história de um sessentão politicamente incorreto, acorrentado ao desejo sexual e escandalizando os padrões puritanos. Um livro esplêndido, majestoso, de quatrocentas páginas, em que o veneno retórico de Roth atingia o seu auge.

Uma das maneiras, portanto, de se abordar O Animal Agonizante é como uma espécie de reedição das endiabradas obsessões de Sabbath em ponto pequeno, em pouco mais de cem páginas. David Kepesh é (a essa altura da vida) um septuagenário que narra a uma interlocutora a avassaladora paixão sexual, oito anos antes, por uma de suas alunas num curso de literatura, a descendente de cubanos Consuela Castillo, de 24 anos, dona de um corpo opulento e grandioso. Aliás, é hábito de Kepesh (que já aparecera em O Professor de Desejo) aventuras com suas alunas, o que causa mal estar principalmente no filho, que não perdoa no pai essa sexualidade tão evidenciada e voraz (alguns diriam predatória): “Todos os anos dou um curso de catorze semanas, e durante todo esse tempo não tenho caso com nenhuma aluna.  Então aplico um truque. É um truque honesto, às claras, lícito, mas é um truque assim mesmo. Terminado o exame final, lançadas as notas, dou uma festa no meu apartamento para os alunos (…) sempre há uma ou duas que, movidas pela curiosidade, resolvem transar com um homem da minha idade, mesmo que seja só uma vez, doidas para no dia seguinte contar tudo às amigas, que vão franzir a testa e perguntar: Mas e a pele dele? Ele não tinha um cheiro esquisito? E aquele cabelo branco comprido? E aquela papada? E a barriga dele? Você não ficou com nojo?”.

E assim temos uma reafirmação do potencial utópico e revolucionário (embora sob a égide individualista) dos anos 60 contrastando com a caretice e conservadorismo da vida contemporânea, onde até quem é alternativo quer ser à la mode, não quer parecer dançado ou esquisito, como na diatribe do narrador contra o casamento gay: Se bem que agora até mesmo os gays querem se casar. Casar na igreja. Diante de duzentas, trezentas testemunhas. Espere só para ver o que vai acontecer com o Desejo que os levou a se tornarem gays. Eu esperava mais dessa gente, mas pelo visto também eles não têm senso de realidade (…) Os gays militantes querem se casar e querem ser aceitos abertamente pelo Exército. As duas instituições que eu odiava. E pelo mesmo motivo: a arregimentação”. 

Um dos melhores momentos do livro é quando Kepesh relembra um grupo de moças daquela década de transformações, as Escrachadas, e seu comportamento explosivamente libertário e sem culpa, que ele atrela a uma maravilhosa digressão sobre a época colonial, em que um posto comercial, Merry Mount, escandalizava os puritanos dos arredores, “um antro de paganismo em plena Massachusets puritana, onde a Bíblia era lei”, cuja figura mais ilustre era um certo Thomas Morton, uma força da natureza, vitalista e transgressor, anatematizado pelo governador da próxima Plymouth, William Bradford, poderoso teólogo: Tivemos que esperar  trezentos anos para voltar a ouvir a voz de Thomas Morton, nos Estados Unidos… em Henry Miller. O choque entre Plymouth e Merry Mount, entre Bradford e Morton, entre ordem e desordem, o prenúncio colonial da convulsão nacional que viria a explodir trezentos e trinta anos depois, quando finalmente nasceu a América de Morton, com miscigenação e tudo… No conflito que vem se desenrolando desde o início, os puritanos eram os agentes da ordem e da virtude piedosa e da razão certa, e o outro lado era a desordem. Mas por que ordem e desordem? Por que Morton não é o grande teólogo da ausência de regras? Por que ele não é visto corretamente como o fundador da liberdade pessoal? Na teocracia puritana, todos tinham liberdade de fazer o bem; na Merry Mount de Morton, todos tinham liberdade, e ponto final”.

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Outra maneira, ainda positiva, de encarar O Animal Agonizante é como um estudo sobre o envelhecimento e a finitude que honra a longa linhagem de donjuanismo que atravessa a literatura ocidental na Idade Moderna: “Não, você não consegue entender. A única coisa que você entende a respeito dos velhos quando você não é velho é que eles foram marcados pelo tempo. Mas compreender isso só tem o efeito de fixá-los no tempo deles, e assim você não compreende nada. Para aqueles que ainda não são velhos, ser velho significa ter sido. Porém ser velho significa também que, apesar e além de ter sido, você continua sendo. Esse ter sido ainda está cheio de vida. Você continua sendo, e a consciência de continuar sendo é tão avassaladora quanto a consciência de ter sido. Eis uma maneira de encarar a velhice: é a época da vida em que a consciência de que a sua vida está em jogo é apenas um fato cotidiano. É impossível não saber o fim que o aguarda em breve. O silêncio em que você vai mergulhar para sempre. Fora isso, tudo é tal como antes. Até não muito tempo atrás, existia uma maneira pré-fabricada de ser velho, tal como havia uma maneira pré-fabricada de ser jovem. Hoje em dia nenhuma das duas funciona mais… Não obstante, será que um homem de setenta anos de idade ainda deve continuar a envolver-se com o aspecto carnal da comédia humana? Ser desavergonhadamente um velho nada monástico, ainda suscetível às excitações humanas?… Talvez ainda seja uma afronta para muita gente você não se pautar pelo antigo relógio da vida. Tenho consciência de que não posso contar com o respeito virtuoso dos outros adultos. Mas o que é que eu posso fazer quando constato que, pelo menos no meu caso, nada, nada se aquieta?” E dessa forma, Consuela, que era a princípio apenas mais uma conquista, um item de colecionador, acorrenta um agonizante e agônico Kepesh a um Desejo obsessivo, permeado de ciúme infernal, até que ele comete um erro e oferece a chance a ela de escapulir… para reaparecer oito anos depois com uma notícia-bomba…

Entretanto, embora admire profundamente Roth e sua obra, há uma maneira menos entusiasmada, e até negativa, de encarar O Animal Agonizante. Já não é a primeira vez que eu constato que conforme vão envelhecendo, os escritores começam a perder o contato com a vida à sua volta, e sua obra passa a ser, digamos, toda escrita na defensiva, rarefazendo-se. Kepesh se apresenta como representante dos mais altos valores culturais (música erudita, literatura, ópera, pintura), e isso faz parte da sua aura donjuanesca. Ele jamais deixa de se ver como Professor (“o didatismo é o meu destino”) e isso parece empobrecer a sua visão do mundo e a sua narrativa. É incrível como uma história onde a obsessão pelo Outro (Consuela) é tão importante, que esse Outro apareça de forma tão caricata e puramente étnica (no caso, a ascendência cubana), que nunca tenhamos acesso ao seu mundo, às pessoas que o compõem, e isso aliás, se reflete em todos os níveis (com o filho, com as outras mulheres, com os conhecidos, com a cultura do final do milênio). E pior ainda: que essa incapacidade nunca seja problematizada ou venha à tona.

Atilado e arguto aos desvendar as polaridades morais que se digladiam no imaginário ético-teológico da América, Kepesh/Roth não é capaz de engendrar um mínimo vislumbre (a não ser sob o prisma caricatural) que seja da América de “trezentos e tantos anos” após Morton. E por isso não é à toa que Roth reedite a atmosfera de O Teatro de Sabbath, talvez a sua maior e mais significativa obra: talvez ele seja incapaz de fazer outra coisa, a essa altura do campeonato (o que é a possível razão de que seus livros recentes se contentem em imaginar uma América em que o nazismo tenha vencido e outros temas já velhos, já gastos, já digeridos pela imaginação ocidental). Eros agoniza, e o escritor também.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em oito de novembro de 2008, com o título “O desejo e a morte”)

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03/03/2013

A AUSTERIDADE DO ACASO: quatro resenhas sobre Paul Auster

DA MÃO PARA A BOCA

     Ao aproximar-se dos 50 anos, (que está completando em 1997), Paul Auster parece ter necessitado de um balanço da sua vida e da sua obra. O resultado é Da mão para a boca (Crônica de um fracasso inicial) [Hand to mouth, a chronicle of early failure, tradução de Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras], no qual ele traz a público seus primeiros esforços literários na área da ficção e da dramaturgia, escritos na década de 70, momento em que, à exceção de alguns livros de poesia, sua carreira como escritor não parecia muito promissora, o que hoje parece engraçado, uma vez que Auster é um dos maiores autores da atualidade. Se ele passou a ser mais conhecido por causa do filme Smoke- Cortina de fumaça (cujo roteiro é dele), esse trabalho pode ser visto, numa perspectiva rigorosa, como uma diluição do talento demonstrado em livros como A trilogia de Nova York (1986), A música do acaso (1990) ou Leviatã (1992).

Auster até incluiu um jogo de cartas utilizando estratégias de beisebol que ele mesmo inventou. O beisebol é tão importante que fornece o título e a solução do mistério na trama de A estratégia do sacrifício, romance que chegou a ser publicado sob o pseudônimo de Paul Benjamin, o qual seria, depois, o nome do personagem de William Hurt em Smoke.

Imitando o romance policial à maneira de Dashiell Hammet ou Raymond Chandler, A estratégia do sacrifício bem poderia ser um romance típico de Paul Auster, um autor que cada vez mais procura formas acessíveis para seus comentários sombrios sobre a sociedade e a desagregação das opções pessoais. O narrador judeu, Max Klein, é o típico detetive durão, meio solitário, que reprime seu intenso idealismo por trás de tiradas cínicas (no caso específico de Klein, ele também gosta de Mozart, Schubert, Breughel e John Donne). Um dia, é procurado por um ex-jogador de beisebol, prestes a entrar na carreira política e que recebe ameaças de morte. Logo após contatar Klein, ele realmente aparece morto e isso permite ao narrador levar o leitor a um passeio pelos bosques da corrupção, povoado por mafiosos, mulheres depravadas e intelectuais sem escrúpulo.

Apesar do artificialismo que se nota no “exercício de gênero” (e um gênero tão batido), sente-se que Auster, sem essa amarra que se impôs (para tornar sua pulp fiction “vendável”), poderia dar livre curso ao seu talento narrativo, em trechos como a descrição que Klein faz de um antigo conhecido, filho de um mafioso, e que se tornou advogado do seu cliente pretensamente assassinado: “Para ele,a prática da advocacia reduzira-se a um cômodo refúgio de documentos, contratos e calorosos apertos de mão, e ele se tornara medroso demais para aventurar-se a sair de sua toca. Tal como o pneu de carne flácida que lhe contornava a cintura, havia agora em torno de sua mente várias camadas de gordura que tinham o efeito de isolá-lo do mundo real. E dizer que era aquele mesmo homem que outrora dizia que ia entrar para a Liga de Assistência Jurídica, assim que terminasse o curso de direito. Fiquei a imaginar que não decorreria muito para que suas artérias começassem a esclerosar-se.”

As peças de teatro apresentadas no volume (O gordo e o magro vão para o céu; Blecautes; Esconde, esconde) são mais problemáticas. Evidenciam uma admiração por Samuel Beckett, o fantástico autor de Esperando Godot & Fim de jogo e mostram que, nesse caminho, com seus personagens reduzidos a meras características (gordo, magro), status (marido, esposa) ou cores (verde, azul, preto), ele seria apenas um sub-Beckett, não tivesse a inteligência de investir no seu talento inato para contar histórias (ou até mesmo anti-histórias), como fez, por exemplo, com o reaproveitamento de situações de Blecautes num dos intrigantes pequenos romances que compõem A Trilogia de Nova Yoik e que, no Brasil, ganhou o título de Espectros. Nele, reaparece o detetive contratado para vigiar um sujeito e que se absorve nessa tarefa,a ponto de esquecer sua vida pessoal, até descobrir que o sujeito também é um detetive contratado para vigiá-lo…

O texto-título de Da mão para a boca tem como subtítulo  Crônica de um fracasso inicial e representa um ajuste de contas de Auster com seu passado. Em certo momento, ele resolveu que não seguiria nenhuma carreira ou profissão para suprir um possível “hobby” da escrita. Não, seria escritor e ponto! O texto se torna a crônica de apertos financeiros, de situações amargurantes causadas por tal decisão, e também da paralisia criativa que foi se apossando dele devido ao dinheiro contado e pingado. Mais uma vez, ele mostra o intenso impacto do pai sobre ele, inclusive porque essa morte lhe deu certo desafogo financeiro, que lhe permitiu, a partir de A invenção da solidão (1982), começar a firmar-se como escritor respeitado e importante. Por outro lado, o leitor toma conhecimento de episódios biográficos (como o período trabalhando num petroleiro) que depois seriam reaproveitados em textos como A sala fechada, o último de A trilogia de Nova York, e atribuídos ao amigo-rival do narrador.

É um texto envolvente, mas às vezes incomoda por ser “literário” demais, como que, sobrepondo-se à amargura, estivesse o desejo de Auster de “enfeitar” seu passado, congelá-lo numa imagem literária quase heróica, empreendimento que ele vem fazendo desde que publicou suas entrevistas (além de ensaios juvenis), em A arte da fome [editora Globo], entrevistas nas quais ele vem elaborando e enfatizando certos aspectos da sua vida. Curiosamente, ele já fez uma série de transposições elaboradas da sua trajetória pessoal para a ficção na Trilogia (e muito do que ele conta em Da mão para a boca serviu como base para as tensões entre os dois escritores de Leviatã), na qual há até um personagem chamado Paul Auster. Agora chegando aos 50, o grande escritor norte-americano parece querer reelaborá-la novamente. Parece que não bastou vivê-la.

 (resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos, em cinco de agosto de 1997)

 

Mr. Vertigo

     Em Mr. Vertigo [tradução de Thelma Médice Nóbrega, editora Best Seller], Walt, o narrador é levado quando menino (nos anos 20) para uma pequena fazenda no Kansas, onde convive com um mestre judeu que prometera fazê-lo voar, com uma índia sioux e  com um outro menino, negro. Ali vivenciará horrores (é enterrado vivo, por exemplo), começa de fato a levitar e escapa de ser assassinado pela Ku Klux Klan, iniciando com seu mestre, também sobrevivente,  uma carreira como levitador que chegará ao fim quando aflorar a puberdade e o despertar sexual.

Essa é a parte inicial (e iniciática) do novo romance de Paul Auster. Aionda desfilam por suas 280 páginas as grandes mitologias norte-americanas: o gangsterismo (Walt torna-se protegido de um chefão após assassinar o tio), o beisebol (dono de uma casa noturna cujo nome é justamente Mr. Vertigo, fica obcecado por um jogador e, não suportando vê-lo decair, propõe-se a matá-lo), as fortunas relâmpagos, a violência. Tudo isso cercado pela imensidão geográfica dos EUA e pelo transcorrer das décadas.

Auster é um dos autores mais qualificados para pleitear o título de consciência nacional do seu país, e vem dedicando-se a uma espécie de comédia humana alegórica da América. O próprio título, Mr.Vertigo, é indicativo da derrocada de Walt (e, por extensão…), após abdicar do dom de voar (que começa a lhe provocar dores de cabeça horríveis), Ele acaba assumindo  uma “vidinha” como a de todo mundo, o que fica mais pronunciado após seu fracasso com o jogador de beisebol, mergulhando no conformismo geral. De fato, causa vertigem qualquer transgressão, qualquer transcendência, qualquer plano de vôo mais alto numa sociedade basicamente medrosa como a nossa.

A vertigem, o medo das alturas, é o fio condutor desse painel profundamente revelador do mundo depressivo do autor: em Auster, por mais imensos que sejam os espaços (como ele demonstrou em Música do Acaso), sempre há a sombra do confinamento, Tanto faz para Walt estar literalmente enterrado vivo ou solto sem rumo pela América afora.

Bem, tudo muito profundo, muito poético, porém o problema de Walt reflete um impasse visível do autor de Palácio da Lua & Leviatã: estamos aqui a um passo da mediocridade. Seu estilo enxuto misturava um talento inato de contador de histórias com uma visão visceral da existência, mas após uma série de grandes livros (iniciada com A trilogia de Nova York), Auster está  perigosamente utilizando truques, ou seja, fórmulas, apresentando um estilo comportadinho, pastichando a si mesmo, num deplorável conformismo de escritor.

É claro que Mr. Vertigo é bem escrito (e só será possível avaliá-lo adequadamente no conjunto da obra), mas eu o acho muito aquém dos livros anteriores. Há esse Yehudi, esse mestre judeu totalmente artificioso, truque de literato. Há essa curiosa falta de profundidade, que faz com que os graus iniciáticos de Walt sejam meramente episódicos, sem uma concatenação mais complexa. O que, aliás, e é um efeito curioso, lhe dá um ar de imaturidade eterna, que parece ser uma espécie de carma americano.

Há aqui e ali momentos bons, mas no geral a narrativa é frouxa e a parte final uma lengalenga. Acontece com Mr. Vertigo uma implosão de criatividade similar a que ocorreu com outro romance de um escritor importante, O livro de Daniel Quinn, de William Kennedy (há, aliás, um Daniel Quinn no livro de Auster. Homenagem ao autor de Ironweed ?), que prometia o mesmo alto vôo sobre os EUA e que ficou ralo do meio para o fim.

Será que Paul Auster também está começando a temer as alturas? Para um escritor que já foi apaixonante, isso pode ser fatal.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 29 de novembro de 1994)

TIMBUKTU

Confesso ter hesitado em decidir-me a ler Timbuktu [tradução de Rubens Figueiredo, Companhia das Letras], de Paul Auster, subestimando o talento de um dos maiores autores da atualidade, por conta da minha aversão por fábulas e histórias que utilizam animais como personagens, pois sempre oferecem uma estilização antropomórfica impertinente, atribuindo sentimentos e atitudes humanas a seres que são maltratados, degradados, quando não exterminados pelo nosso tipo de civilização.. “Humanizar” animais como personagens não ajuda muito a compreendê-los como seres diferentes de nós. Seria preciso, antes, humanizar a própria humanidade.

No caso de Timbuktu, a coisa se complica ainda mais, pois Mr. Bones, o cão-protagonista, é um vira-lata e hoje em dia acontece uma verdadeira tragédia com eles: ninguém quer saber de vira-latas, o discreto charme do consumismo chegou ao mundo pet e as pessoas só querem saber de comprar cães de raça (a própria idéia de “comprar   já é lamentável, quando há tantos animais abandonados pelas deprimentes ruas por onde andamos). Não qualquer raça, bem entendido, apenas as raças da moda.

Mas hesitar na leitura era duvidar não só da magia narrativa de Auster como também do seu avassalador pessimismo. O fato é que Mr. Bones está longe do universo otimista e bonitinho das fábulas (o que pensar de um animal que opta pelo suicídio ao final da sua história?). Timbuktu é um romance extraordinário, entre outras coisas, por varrer todo sentimentalismo em relação ao destino dos animais. E, só para que o leitor sinta o clima do texto, basta citar duas “máximas” que aparecem logo no início: “Quanto mais desgraçada é nossa vida, mais perto estamos da verdade”; “com base na experiência duramente adquirida, Mrs. Gurevitch sabia que o mundo queria arrancar o couro dela, e vivia em conformidade com isso, fazendo tudo o que estava a seu alcance para ficar fora do caminho da desgraça.”

No maravilhoso primeiro capítulo, a sensação é desoladora: o dono de Mr. Bones, Willy, está à beira da morte, e não há muita esperança de seu cachorro sobreviver a ele, num mundo basicamente indiferente e cruel para com a sorte dos vira-latas. O próprio Willy já não tinha mais lugar no mundo: sendo um daqueles “iluminados” por uma revelação espiritual peculiar, ele ainda conseguia movimentar-se nos tolerantes anos 70, quando ainda se acreditava que a humanidade poderia evoluir, melhorar, ou pelo menos ser mais moderna. Nos anos 90, ele não passa de um rebotalho, um dos muitos pirados sem-teto que perambulam pelo universo urbano e atravancam o triunfo da globalização. Seu único elo é Mr. Bones, o qual procura apreender os códigos humanos e equacioná-los com seus instintos caninos. Nesse aspecto, o estilo de Auster chega ao seu apogeu em habilidade: dificilmente sentimos uma “humanização” sentimental do cachorro, há sempre um diálogo explícito entre o cão-personagem e o narrador, que tenta “traduzir” para nós o mundo interior de Mr. Bones.

Willy morre e o resto do livro é a caminhada do próprio vira-lata para a morte, para a simbólica Timbuktu, a terra dos mortos, onde encontrará o dono. Por alguns meses ele acaba pertencendo a um solitário menino descendente de chineses, e a sensação de ser um excluído reduplica-se: “As noites que ele passou ali dentro foram quase insuportáveis, e de que servia um lar se você não se sentia seguro lá dentro, se você era tratado como um pária justamente no lugar onde deveria ser seu refúgio?”

      Mr. Bones foge e a narrativa encaminha-se para o seu ponto mais irônico e doloroso: ele encontra uma família que tem o ama, um gramado maravilhoso onde brincar, mas aí interfere o veneno do autor de Leviatã, que cruelmente vai mostrando como toda essa perfeição é o sinal do conformismo dos nossos dias, como esse nosso tempo é amesquinhado, careta, de uma maneira que torna a jaula do cotidiano que sufocava Madame Bovary no século XIX uma galáxia infinita.

E o pobre Mr. Bones descobre, como Willy, que não há lugar para ele nesse mundo pré-fabricado. E dá o passo além da “vertigem” do gato Rahul, do belo romance de Lygia Fagundes Telles, As horas nuas, que por um momento pensa em se atirar pela janela do apartamento onde testemunha o inferno burguês de sua dona: Mr. Bones prefere encontrar-se com Willy em Timbuktu. Depois de ter verificado, como tantos personagens de Paul Auster, como as circunstâncias fortuitas nos tornam prisioneiros do irrevogável, como a perda de referências é cada vez mais problemática hoje em dia, Mr. Bones conclui por si mesmo (como Willy já concluíra) que não há mais vagas para pirados, despirocados, não-produtivos, não-consumistas, fracassados contumazes na sociedade pós-industrial ou vira-latas. E que o mundo está cheio de estranhos.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em  21 de dezembro de 1999)

 

VIAGENS NO SCRIPTORIUM

   Ao chegar perto dos cinqüenta anos, Paul Auster relatou seu medo de fracassar na vida em Da mão para a boca. Além disso, ele sempre primou em imaginar desastres e tragédias para os inúmeros escritores e duplos que povoam suas histórias, especialmente a perda da família e da identidade, obrigando seus heróis a fazer tabula rasa da existência anterior.

Na Trilogia de Nova York (1986), havia o texto “Espectros”, onde Blue, o protagonista, sentia-se “como se fosse absolutamente nada. Sente-se como um homem que foi condenado a ficar em um quarto lendo um livro pelo resto da vida. Isto é muito estranho, estar vivo pela metade, na melhor das hipóteses, ver o mundo apenas através das palavras, viver apenas por intermédio da vida dos outros. Ele seria colhido pela história, por assim dizer, e pouco a pouco acabaria esquecendo-se de si mesmo. No entanto esse livro não lhe oferece nada. Não tem nenhuma história, nenhuma intriga, nenhuma ação, nada senão um homem sozinho dentro de um quarto escrevendo um livro… Mas como sair, como sair do quarto que vem a ser o livro que vai continuar a ser escrito por todo o tempo que ele ficar no quarto…

Perto dos sessenta (que completa agora em 2007), Auster auto-perversamente imaginou-se nessa situação, através de Blank, protagonista de Viagens no scriptorium [tradução de Beth Vieira, Companhia das Letras]. Ele é o escritor idoso, trancafiado penitencialmente num quarto, cuidado por seus personagens (quem leu os livros anteriores do grande escritor norte-americano vai se divertir mais com as referências), o qual, sem estar certo de poder sair da sua “instalação”, combalido fisicamente (precisa de ajuda até para ir ao banheiro), meio desmemoriado (e uma das brincadeiras beckettianas do texto é fazer com que cada coisa tenha uma etiqueta indicando sua “identidade”, parede, escrivaninha, luminária), vê-se obrigado a ler um texto, relatório ficcional em que outro personagem está numa cela, após uma vida conspiratória, que o levou a paisagens selvagens e imensas (e o leitor habitual de Auster sabe que grandes espaços e espaços confinados são freqüentemente equacionados por ele, e não é à toa que o livro se chama Viagens no scriptorium).

O foco narrativo nos apresenta Blank quase como uma cobaia em laboratório, sendo ininterruptamente observado e fotografado. Há visitas, gente que cuida dele, fotos de uma série de pessoas, queixas agridoces de coisas que ele as obrigou a fazer e que potencialmente destruíram suas vidas.

À culpa que se apossa dele, associa-se o impulso irresistível de continuar contando histórias, mesmo sendo uma ruína de narrador, já que não dispõe do principal mecanismo que permite a atividade épica, a memória. Chega um ponto em que as aventuras que está lendo são interrompidas e o médico que o visita o insta a continuá-las. Ele toma gosto em fazê-lo de uma forma tal que se irrita ao ser interrompido (o médico encerra a sessão) e acaba, no seu isolamento, contando-a para si mesmo.

Poucas vezes se mostrou de forma tão comovente a necessidade sherazadiana da humanidade de fabular. Ainda que num mundo desencarnado, fantasmagorizado, pós-moderno, em que as histórias estão moribundas, há Homeros, cegos da memória, e odisséias minimalistas.

É por esse motivo que eu (que coloco A música do acaso, Trilogia de Nova York, Leviatã, Timbuktu, O livro das ilusões e Noite do oráculo entre os melhores livros das últimas décadas) adorei Viagens no scriptorium, não obstante seu final frustrante, pois Auster imagina com tanta engenhosidade e senso poético a situação, cria tanto “clima”, faz a gente devorar páginas, para encerrar tudo abruptamente, como se tivesse cansado da brincadeira ou ficasse com medo de levá-la às últimas conseqüências, logo ele, que já desrealizou e desconstruiu tanto a sua vida.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 17 de março de 2007)

 

VEJA TAMBÉM NO BLOG:

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09/09/2012

“Se todas as direções são a mesma”: COSMÓPOLIS e o futuro insistente

“O futuro se torna insistente… o passado está desaparecendo. Antigamente, a gente conhecia o passado, mas não o futuro. Isso está mudando… Precisamos de uma nova teoria do tempo”.

“A cidade come e dorme barulho. Ela faz barulho em qualquer século. Faz os mesmos barulhos que fazia no século XVII, mais os outros que surgiram de lá para cá

(a resenha abaixo foi  publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 16 de novembro de 2004)

“Estava parado na rua. Não havia o que fazer. Nunca havia imaginado que isso pudesse acontecer com ele. Era um momento esvaziado de urgência e propósito. Ele não havia planejado aquilo. Onde estava a vida que ele sempre levara?  Não tinha vontade de ir a lugar nenhum, não tinha nada em que pensar, não havia ninguém à sua espera. Como podia dar um passo em determinada direção se todas as direções eram a mesma?”

Tenho examinado, aqui nesta minha coluna, a solução que grandes escritores encontraram (ou não) para representar o início do novo milênio.

Nada mais justo que terminar a série com Don DeLillo, autor do maior romance dos derradeiros anos do século passado, Submundo, e cujo Cosmópolis (2003) possivelmente representa a mais alta literatura de ficção que se pode encontrar nesses primeiros anos do novo século-milênio-era, seja lá o que for. Na história do último dia (em abril de 2000) do jovem—já se sentindo ultrapassado (“Eu sempre fui mais jovem que todo mundo. Um dia isso começou a mudar”)—milionário Eric Packer, mega-especulador financeiro, que perde sua fortuna e é assassinado enquanto cruza Nova Iorque para cortar o cabelo (“Ele não sabia o que queria. Então descobriu. Queria cortar o cabelo”), numa limusine gigantesca forrada com cortiça, a grande tentação de qualquer resenhador é citar, citar, citar (mesmo porque a tradução de Paulo Henriques Britto, publicada pela Companhia das Letras, é irretocável).

Como se trata de um texto alucinantemente perfeito, pode-se extrair citações incríveis quase que página a página, embora talvez o melhjor seja seguir o conselho da primeira: “Dizer o quê? Era uma questão de silêncio, não de palavras”.

Parente espiritual do Psicopata americano, de Bret Easton Ellis, Eric move-se (embora o trânsito com freqüência fique congestionado, inclusive com violentas manifestações contra a globalização, numa das grandes seqüências do livro) num mundo em que a obsolescência é muito rápida e no qual as relações esgarçam-se ao ponto da insubstancialidade: “Levou um instante para se dar conta de que conhecia a mulher no banco de trás do táxi ao lado. Era a mulher com quem ele havia se casado 22 dias antes”.

A característica mais intrigante em DeLillo é que ele consegue manter o estatuto épico, que é básico para uma narrativa (ainda que tão maltrato na ficção contemporânea), mesmo quando mergulha fundo na estética minimalista mais fantasmática. Como Clarice Lispector e Robert Musil, ele mantém-se no mundo do grandioso, evocando mitos e potências muito maiores do que a da pós-modernidade: “Estavam cercados por um crescendo de buzinas. Havia naquele barulho alguma coisa que ele não queria apagar da mente. Era o tom de alguma dor fundamental, um lamento tão antigo que parecia aborígene. Pensou em homens esfarrapados em bandos, dando urros rituais, unidades sociais formadas para matar e comer. Carne vermelha. Era esse o chamado, essa a necessidade gritante”.O motorista de Eric: “Ibrahim parecia desconfiado e reparado, uma preparação que ele adquirira em algum deserto, setecentos anos antes de nascer”. O assassino de Eric lhe diz: “Mesmo quando você se autodestrói, você quer fracassar mais, perder mais, morrer mais que os outros, feder mais que os outros. Nas tribos antigas o chefe que destruía mais coisas dele mesmo que todos os outros chefes era o mais poderoso”.

A citação que abre este texto mostra como a jornada de Eric por Nova Iorque e sua própria vida são desprovidas de sentido. Cosmópolis, porém, mostra que a literatura ainda faz todo o sentido do mundo.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2014/06/28/o-triunfo-inesperado-do-romance-submundo-de-don-delillo/

https://armonte.wordpress.com/2014/06/28/mao-ii-de-don-delillo-o-indizivel-o-impensavel-e-a-linguagem-que-o-ocidente-entende/

https://armonte.wordpress.com/2011/05/24/destaque-do-blog-ponto-omega-de-don-delillo/

VER O MESMO TEXTO NUM CONTEXTO MAIS AMPLO EM:

https://armonte.wordpress.com/2010/05/17/doctorow-rushdie-delillo-e-a-virada-do-milenio/

Dois grandes romances da virada do milênio (ou por que Don DeLillo deveria ganhar o Nobel): MAO II e SUBMUNDO

UM ROMANCE ASSOMBRADO E ASSOMBRADOR

Resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 10 de março de 1998

“Em sociedades reduzidas à conspurcação e ansiedade, o terror é o único ato significante. Existem coisas demais, mais coisas e mensagens e significados do que poderíamos usar em dez mil vidas. Inércia-histeria. É possível a história? Existirá alguém sério? Quem poderá ser levado a sério?”

Eis um trecho de MAO II (na tradução de  Edson Rocha Braga), de Don DeLillo, a história de Bill Gray, famoso escritor recluso que vive escondido, enquanto tenta concluir um livro, reescrevendo-o interminavelmente. Scott, ex-junkie e fanático pela obra de Gray, e Karen, ex-discípula do reverendo Moon, vivem com ele. Um dia, Scott, a contragosto, traz Brita, obscura fotografa de Nova York, para fazer uma sessão com Gray.

Após essa incursão de Brita na esquiza vida doméstica dos três, Gray inesperadamente visita Nova York e foge de Scott, ao receber uma proposta do editor Charles Everson: fazer, em Londres, a leitura pública de poemas de um suíço mantido como refém por uma milícia maoísta de Beirute, capital mundial do terrorismo.

Gray termina não fazendo a leitura, contudo decide aproximar-se mais do Terror, tentando chegar a Beirute (via Atenas) para conhecer o líder da milícia, Abu Rashid…

MAO II é um romance lindíssimo. Dá até para imaginar o filme que o genial David Cronenberg faria dele. DeLillo é um autor perturbador,na linha de J.G.Ballard, Philip K. Dick  e de Thomas Pynchon, este último tão recluso e isolado na vida real quanto Bil Gray.Não é à toa que desde o premiado Ruído Branco (1985) ele se transformou num dos ficcionistas mais importantes e influentes dos EUA.

O leitor é apresentado a um mundo fantasmagórico (o que é bem representado pelo título, que alude a um trabalho de Andy Warhol, utilizando—como fez com relação a outras personalidades—o rosto do líder chinês), no qual arte, mídia, lixo, loucura e terrorismo se refletem mutuamente, no qual se pode fazer intermináveis elucubrações (e a elas se dedicam todos os personagens de MAO II), porém nunca se consegue criar qualquer significado estável.

Um mundo assim de escombros, de dissolução, de horror, não impede que o grande escritor norte-americano consiga (ao contrário de Ballard, Dick & Pynchon) criar personagens humanos e interessantes, que nos envolvem em seus desconcertantes (des)caminhos, como Karen, ao ir para Nova York atrás do volatilizado Gray, ingressando, com os restos da sua devoção (não ao Mao, mas ao Moon), no universo dos homeless e sua linguagem peculiar. Poucas vezes de leu algo tão bonito e desesperado na ficção atual que tangencia o apocalíptico. Talvez só na Doris Lessing de Memórias de um sobrevivente & Shikasta, ou no Paul Auster  de No país das últimas coisas., ou mesmo em Leviatã (dedicado, aliás, ao autor de MAO II).

Além da riqueza das questões que levanta, esse romance assombrado e assombrador merece ser consagrado como um dos romances da década de 90 pela sua perfeita estrutura circular. A história de Bill Gray é emoldurada por duas impressionantes cenas (num estádio e em Beirute)em que se mostra a adesão de uma massa a um líder carismático (Moon no começo; o terrorista Abu Rashid no final) e que têm como momento culminantes cerimônias de casamento que desafiam todo o poder da Razão.Assim como as palavras impressionantes de Don DeLillo desafiam o indizível e  o impensável.

SUBMUNDO  APÓS O ONZE DE SETEMBRO

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos  em 02 de outubro de 2001)

 I

     Amanhã, 03 de outubro, a vitória dos Giants sobre os Dodgers no campeonato de beisobol em Nova York, estará completando 50 anos. A bola que decidiu a partida desapareceu. Ela é um dos elementos que interligam a trama de SUBMUNDO [“Underworld”, 1997, aqui no Brasil traduzido pelo grande Paulo Henriques Britto], obra-prima de 700 páginas de Don DeLillo, cujo prólogo é a sensacional narração do histórico jogo de 1951 e é intitulada O triunfo da Morte, alusão ao quadro de Brueghel (fica-se sabendo, ao longo da partida, que os russos realizaram seu primeiro teste , patômico, ombreando-se aos EUA na capacidade de destruir o mundo).

O vizinho de bairro de DeLillo, Paul Auster publicou em 1992 Leviatã, no qual se aborda a questão do terrorismo; o livro, aliás, é dedicado ao autor de SUBMUNDO que, na mesma época lançara outro de seus romances geniais (Mao II), no qual se lia: “Quem poderá ser levado a sério? Apenas o crente letal, aquele que mata e morre pela fé. Tudo o mais é absorvido. O artista é absorvido, o maluco de rua é absorvido, tratado e incorporado. Somente o terrorista ficou de fora. A cultura ainda não conseguiu descobrir como assimilá-lo. É confuso quando o terrorista mata um inocente. Mas essa é exatamente a linguagem que chama a atenção, a única linguagem que o Ocidente entende”.

Um terceiro motivo para se falar de SUBMUNDO e mostrar por que ele é uma leitura obrigatório no momento, ao contrário das supostas e inúteis previsões do sr. Nostradamus (que parecem um terreno baldio, onde se pode achar tudo que se quer): a capa da edição brasileira utiliza uma foto perturbadora de André Kertész, na qual vemos o World Trade Center (por sinal, várias vezes citado na quarta parte do romance, ambientada nos anos 70), através de um ângulo sinistro e ameaçador. Com os fatos recentes, a capa ganhou um significado ainda mais tétrico, bem como o livro.

E um escritor fantástico como DeLillo não deixa escapar nada, tudo volta no romance com um novo significado: uma reprodução do quadro de Brueghel (na revista Life) cai nas mãos de Edgar J. Hoover, o chefão da inteligência americana na Guerra Fria, homem reacionário, reprimido e com fobia de micróbios, em plena partida entre Giants & Dodgers. O significado do quadro volta à tona quando ele vai, em 1966, ao famoso Baile Preto e Branco, no Plaza de Nova York, e há protestos contra a Guerra do Vietnã, incluindo uma dança macabra na própria festa, repleta de chiques, ricos e famosos.

Já nos anos 80, conhecemos a velha freira, deliciosamente chamada Irmã Edgar, também reacionária e paranóica com a possibilidade de qualquer tipo de contaminação, assistir ao triunfo da morte nas ruas do Bronx: quarteirões devastados, assolados pela violência e pela AIDS (ela recebe dinheiro de um grafiteiro soropositivo para informar sobre carros abandonados nas ruas).

II

É muito difícil fazer justiça a SUBMUNDO num artigo. O livro é grandioso demais, já pela estrutura complexa. De 1951 ele salta para os anos 90 e daí vai recuando novamente.

O curioso em Don DeLillo é como um escritor que trabalha com uma realidade em ruínas, com lixo cultural, com a ausência de totalidade, pode ter criado um romance total, numa linguagem tão elevada, se o termo não soar muito pomposo.

O próprio título, como o livro inteiro, é cheio de associações, remontando ao título de um suposto filme subversivo com relação ao regime soviético, feito por Eisenstein (o diretor de O encouraçado Potemkim & Ivan, o Terrível) e também ao título de um filme de gângster do cinema mudo. Por outro lado, também alude ao subterrâneo mundo do lixo, área de trabalho do protagonista, Nick Shay, que nos informa: “Minha firma trabalhava com rejeitos. Éramos manipuladores de rejeitos… fazíamos a cosmologia dos rejeitos… O lixo é uma coisa religiosa. Sepultamos os rejeitos contaminados com sentimentos de reverência e terror”.

Nick é um personagem enigmático, que assassinou um homem e foi parar num reformatório, sendo doutrinado por jesuítas (ele também possui, supostamente, a bola da partida de 03 de outubro). Seu irmão, Matt, pensando sobre ele, chega à seguinte conclusão: “Quando Nick morrer, uma equipe de metafísicos examinará a caixa preta dele… mas nada garante que  vão encontrar a menor pista que seja”.

Nick e Matrt são personagens fabulosos. Esse é outro mistério de Don DeLillo: como um autor que trabalha com um mundo fantasmagórico e insubstancial pode criar personagens tão incríveis? Já em Ruído Branco, o protagonista (contaminado por uma nuvem tóxica que infesta a região onde mora) e sua família eram inesquecíveis.

Em SUBMUNDO, além dos irmãos Shay, temos Klara Sax, a artista plástica conceitual, com a qual Nick teve um envolvimento aos 17 anos, quando ela ainda era uma dona de casa, esposa do professor de xadrez de Matt, o comovente sr. Bronzini, que termina a vida solitário no Bronx, com sua irmã meio esclerosada, enquanto Klara (aos 70 anos) e seguidores fiéis pintam um cemitério de aviões no deserto. Temos a esposa de  Nick, Marian, que tem um caso com o sócio dele e que considera o marido “demoníaco”, procurando desvendar seu estranho passado. Temor Cotter, o garoto negro que, na versão de DeLillo, ficou  inicialmente com a bola do jogo, mas temos principalmente seu pai, Max Martin, cuja história atravessa o romance como contraponto da inversão temporal realizada pelo maior  dos escritores norte-americanos.

Temos Ismael, o grafiteiro, que além de pichar vagões, também faz incursões homoeróticas no subterrâneo-submundo do metrô, temos a já citada irmã Edgar; temos até um psicopata, o qual assassina pessoas nas estradas do Texas…

III

Paulo Francis, com a superficialidade que lhe era peculiar nos últimos anos, saudou em  1988 A fogueira das vaidades, de Tom Wolfe, com as seguintes palavras: “Nenhum filme ou jornal de tevê tem ou seguiu remotamente, o alcance desta obra, que estabeleceu a primazia da literatura sobre outros meios de comunicação”. A meu ver, Wolfe nem de longe conseguiu isso, mas talvez Francis já estivesse pressentindo que SUBMUNDO estava vindo por aí e encaixar-se-ia perfeitamente nas suas palavras

04/07/2012

2 de junho de 1910: o centenário do suicídio de Quentin Compson

“O fato de eu ter conseguido movimentar os meus personagens no tempo com sucesso prova, pelo menos para mim, que a minha teoria, no sentido de que o tempo é uma  condição fluida que não tem existência a não ser momentaneamente em manifestações individuais, está correta. Foi não existe, existe apenas é. Se foi existisse, não haveria dor ou tristeza…”

                                 (William Faulkner)

“…você não pode fazer nada nós somos malditos não é culpa nossa será que a culpa é nossa…” (William Faulkner, O SOM E A FÚRIA)

“Life´s but a walking shadow, a poor player

Tha struts and frets his hours upon the stage,

Ant then is heard no more; it is a tale

Told by an idiot, full of sound and fury,

Signifying nothing.”  (William Shakespeare, Macbeth)

2 de junho de 1910. Essa data aparece no início da segunda das quatro partes que compunham originalmente O SOM E A FÚRIA (The sound and the fury 1929, e pensar que ele tinha apenas 32 anos quando o livro foi publicado!), e que foram acrescidas anos mais tarde com um “Apêndice”.

E a segunda parte do livro é justamente o último dia de vida de Quentin Compson. Aí vemos exercitar-se a técnica chamada stream of counsciousness, o fluxo de consciência. Será um dia, o derradeiro, mas será um dia de todos os dias, um dia no qual  caleidoscopicamente se agregam cenas, recordações, associações, assim como Joyce praticou em Ulisses e Virginia Woolf em Mrs. Dalloway & Ao farol.

Para o leitor da época (e para muitos ainda hoje, apesar da água que passou por debaixo da ponte), O SOM E A FÚRIA devia causar uma estranheza total: a primeira parte também se baseia na técnica do fluxo de consciência, mas ainda tem a complicação de ser a mente de um deficiente mental, Benjy (na verdade, era Maury, mas trocaram o nome), o irmão caçula de Quentin (há mais dois, Jason e Candance, isto é, Caddy). A mente de Benjy é perfeita para a anulação do tempo e fazer o é predominar sobre o foi. Tanto que a narrativa começa com sua angústia ao ouvir um jogador de golfe (num campo que era o “seu pasto”, no qual gostava de passear, e que foi vendido) chamando o seu caddie (o fâmulo do golfe), por associação trazendo à sua mente a irmã, Caddy, que devido às suas transgressões sexuais teve de se afastar (engravidou de um, casou com outro, o qual descobriu a trapaça e anulou o casamento). Além dessa associação, caddie-Caddy, há dois Jasons na narrativa (o pai e o filho-vilão, por assim dizer) e duas personagens chamadas Quentin (o irmão suicida e a filha ilegítima de Caddy, que será criada sem amor, assim como Benjy, pela avó, pelo tio e, ao fim e ao cabo, pela criada negra, Dilsey, a verdadeira mãe da família).

O centro dramático da parte dessa primeira parte (no dia 7 de abril de 1928,aniversário do personagem, que faz 33 anos, com idade mental de 3), além do pungente desamparo da condição de Benjy, é sem dúvida a cena (em 1898) em que as crianças Compson (uma das várias famílias sulistas ilustres que foram decaindo a partir da derrota infligida pela Guerra de Secessão) tentam espreitar o velório da avó: nesse mundo “edênico”, onde a família ainda possui propriedades e distinção, antes de se consumar a derrocada, a morte parece ser proibida e os adultos não informam as crianças que a avó doente (que mimava especialmente Jason e o deixava dormir com ela) morreu. Caddy então sobe numa árvore para ver o que se passa na casa, e os outros têm a visão das suas calcinhas enlameadas (porque estavam brincando perto do rio). Faulkner mesmo afirmou que seu quarto romance (os anteriores foram Pagamento de soldado, Mosquitos & Sartoris) “começou com um quadro mental… representava os lamacentos fundilhos das calcinhas de uma menina em uma árvore, da qual ela podia ver, através de uma janela, onde o funeral de sua avó estava sendo realizado”. Essa imagem também é a de Caddy cristalizada na mente de Benjy: sempre menina, sempre protetora e destemida com relação a ele, sempre “cheirando a árvore” (tanto que quando ela coloca perfume, ele não reconhece seu cheiro e começa a berrar e chorar; aliás, o choro e o berro recorrentes de Benjy são frisados de uma maneira angustiante na narrativa). E na mente dele, a visão da menina descendo a árvore às escondidas (na verdade, trata-se da sobrinha, Quentin, que está escapulindo da casa) faz com que ele a confunda com a irmã, que há muito cresceu e se afastou. Como diz Frederic J. Hoffman no seu estudo sobre a obra faulkneriana, “as limitações absolutas da capacidade de Benjy de separar uma coisa da outra, um tempo do outro, significam que estamos num mundo fixo fora do tempo e de mudanças… Benjy é incapaz de ver Caddy como uma pessoa que mudará, envelhecerá e existirá de acordo com o tempo. De certa forma, Benjy deseja um mundo simples, o mundo mais ou menos fixado quando ele tinha três anos de idade…”

Além disso, a imagem das “calcinhas enlameadas” aponta para a nódoa, a mancha, a marca sexual que pesa sobre Caddy, e que será o tema da segunda parte, em que Quentin, que foi para Harvard, não consegue se conformar com a perda da virgindade da irmã (ele mesmo continua virgem) pela qual tem um sentimento incestuoso. Também há algo a evocar obsessivamente Caddy para Quentin: é o cheiro das madressilvas, que se ligam à idéia de sexo, um cheiro sexual que o persegue nesse dia de perambulações (“e ondas de madressilva subindo no ar”), onde ele encontrará uma menininha suja (envolvendo-se numa situação equívoca, pois o pai, um imigrante italiano, o agride e o denúncia às autoridades policiais nas imediações de Cambridge, afirmando que ele tentara raptá-la; na verdade, ele comprara uns pães doces para a menina miserável e ela o seguira por toda parte; com o que sabemos hoje da preferência de Faulkner por lolitas, pelo que sabemos do passado de Quentin com Caddy, nós podemos dizer que o “equívoco”, já que nada acontece, não deixa de conter as possibilidades sexuais imagináveis, mesmo porque o tempo todo Quentin chama a menina de “maninha”). A desgraça de Quentin foi saber que a irmã deixou de ser virgem. Ele ainda tenta confrontar o sedutor, Dalton Ames, mas faz um papel ridículo e ainda tem de ouvir:

“olha não faz sentido levar a coisa tão a sério você não tem culpa garote se não fosse eu seria outro qualquer

você já teve irmã já

não mas são todas umas vagabundas”

Quentin ainda tenta fazer um pacto de suicídio com a irmã, que não leva a cabo, e tenta fazer dos dois seres marcados, contando ao pai de possíveis relações incestuosas, mas nada consegue. E vai para Harvard para viver esse dia, agora centenário, em que tem de enfrentar o Tempo (simbolizado pelo relógio do avô que ganhara e o qual quebra, mas que continua a tiquetaquear mesmo sem os ponteiros: ou seja, não há horas, não há cronologia, mas apenas o Tempo puro): “Era o relógio do meu avô, e quando ganhei de meu pai ele disse Estou lhe dando o mausoléu de toda esperança e todo desejo… Dou-lhe esse relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste seu fôlego tentando conquistá-lo.”

Se Benjy é percepção, Quentin é concepção. O perceptivo e o conceitual exigem a mesma coisa: que Caddy não mude, que a família permaneça naquele estado “edênico” de prosperidade, com seus pastos, suas plantações, seus negros, sua grande casa. Concordo com Hoffman, quando ele diz: “Quando o paraíso do mundo da sua infância falha, Quentin tenta converter o pecado de Caddy em incesto para contê-lo dentro de um mundo fixo que ele pode controlar. Ele mudará um paraíso para um inferno, para que seja seu próprio”.

    No “Apêndice” que Faulkner escreveu anos depois, lemos a respeito de Quentin: “…amava não o corpo da irmã, e sim algum conceito de honra dos Compson sustentado de modo precário e (como ele bem sabia) apenas provisório pela membrana mínima e frágil de seu hímen, tal como uma réplica em miniatura do imenso globo terrestre se equilibra no focinho de uma foca treiada… amava a idéia do incesto que não viria a cometer e sim algum conceito presbiteriano de castigo eterno: ele, e não Deus, desse modo lograva lançar-se a si próprio e a irmã no inferno, onde poderia protegê-la para sempre e mantê-la intacta para todo sempre em meio ao fogo eterno”.É mole?

O CENTENÁRIO DE UMA DATA –MARCO DA FICÇÃO

Amanhã, uma das datas mais célebres da literatura mundial se torna centenária: em 2 de junho de 1910, Quentin Compson, um dos personagens do clássico O som e a fúria (The sound and the fury, 1929, em tradução de Paulo Henriques Britto para a CosacNaify), ainda a obra mais conhecida de William Faulkner aqui no Brasil, se suicidou na Universidade de Cambridge, incapaz de continuar carregando em seu íntimo o fardo de decadência e derrotismo fatalista do “Deep South” em geral e da sua família em particular.

Com Sartoris, seu romance anterior, Faulkner nos apresentava o condado de Yoknapatawpha, no Mississipi, que delimitará sua ficção subsequente, com raras exceções, e que será detalhado num publicado em Absalão, Absalão!, de cuja trama Quentin é o confidente e depositário, e que termina com a citadíssima afirmação do futuro suicida: “Eu não odeio o Sul!”. Foi, contudo, com O som e a fúria que o genial escritor norte-americano tornou esse universo fictício uma referência tão absoluta quanto a Comédia Humana de Balzac. Dividido em quatro partes, retrata o empobrecimento e degeneração de uma típica e tradicional família sulista, daquelas que tiveram seu apogeu durante o regime escravocrata e com o comércio de algodão, antes da ruína trazida pela Guerra de Secessão.

Boa parte da dificuldade do livro se deve ao fato de que, nas duas primeiras partes, Faulkner adota como foco narrativo o fluxo de pensamentos de um deficiente mental, Benjy, e de Quentin no dia da sua morte… Assim, conhecemos os fatos passados de uma forma retorcida e alógica, e a cronologia aparece toda emaranhada. O ponto central é o comportamento transgressor de Caddy Compson. Para se ter uma ideia do jogo que é feito com o leitor, Benjy, o caçula da família, lembra-se da irmã fugitiva em meio a um jogo de golfe, onde quem ajuda os jogadores são os caddies, e daí a associação. Outra complicação: a filha de Caddy tem o mesmo nome do tio que se mata, Quentin.

A meu ver, O som e a fúria alcança realmente a grandeza na terceira parte (na qual parece recair na narrativa linear e tradicional), com Jason, o outro irmão, grande vilão psicológico em seu duelo de vontades com a sobrinha, com sua mistura de puritanismo, ironia demoníaca e monstruosidade. Com Jason, estamos no âmago do universo faulkneriano, o qual, aliás, privilegia tanto a linguagem quanto a arte da intriga:

     “… então voltou a lembrar-se do dinheiro outra vez, e pensou que tinha sido passado para trás por uma mulher.,uma fedelha. Se ao menos pudesse acreditar que fora o homem que o roubara. Mas o que fora roubado era justamente aquilo que compensaria o emprego perdido, algo que ele tinha adquirido com tanto esforço e risco, e que forma roubado pelo próprio símbolo do emprego perdido, e, o pior de tudo, por uma vagabundinha… Via agora que as forças opostas do seu destino e sua vontade se aproximavam rapidamente, rumo a um entroncamento que seria irrevogável…”

( a resenha acima foi  publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 01 de junho de 2010)

ANEXO

Estou lendo O SOM E A FÚRIA pela quarta vez: a primeira foi no começo dos anos 80, na tradução (que ainda considero extremamente boa) de Fernando Nuno Rodrigues, em edição pelo Círculo do Livro. Depois, descobri uma tradução portuguesa ( (de Mário Henrique Leiria &  H. Santos Carvalho, revisada por Luís de Sousa Rebelo) publicada por aqui (numa adaptação de Branca Maria Lírio de Lima,  a qual,como pode-se ver mais abaixo, não realizou grande coisa) pela Portugália Brasil e aí reli a de Nuno Rodrigues (na edição pela Nova Fronteira), comparando-as.

Entre as obras-primas de Faulkner, sempre foi a de que menos gostei (preferindo sempre Luz em agosto; Absalão, Absalão!; Enquanto Agonizo; O povoado; Desça, Moisés),principalmente por causa das duas primeiras partes (em compensação, sempre adorei as duas últimas e a figura de Jason). Foi o que enfatizei em 2004, na minha resenha semanal de “A Tribuna”, quando o reli pela terceira vez, agora na tradução do grande Paulo Henriques Britto, que saiu naquele ano pela Cosacnaify. Mas agora relendo com atenção as duas partes, e comparando as três traduções, mudei de idéia, particularmente sobre a parte de Benjy (a primeira), que achei desta vez particularmente sensacional. Ainda tenho problemas com a parte de Quentin, mas já não a acho tão derivativa assim de Joyce e de seu Ulisses. Aliás, concordo plenamente com Robert Humphrey, o grande estudioso do stream of consciousness na ficção, quando diz que Faulkner se diferencia dos outros praticantes dessa técnica porque usa um enredo principal, combinando a narrativa tradicional com o fluxo de consciência de forma magistral (para mim, ele e Thomas Mann são os maiores narradores do século XX).

Comparemos as versões (num trecho da parte de Quentin):

a de Paulo Henriques Britto (Cosacnaify):

“…continua cego  para o que está em você mesmo para aquela parte da verdade geral a seqüência de eventos naturais com suas causas que ensombrecem o cenho de todo homem até mesmo de Benjy você não está pensando na finitude está imaginando uma apoteose em que um estado mental temporário se tornará simétrico acima da carne e cônscio tanto de si próprio quanto da carne ela não vai se livrar de você não estará nem mesmo morta … acho melhor você ir para cambridge logo de uma vez… você estudar em harvard é o sonho da sua mãe desde que você nasceu e nenhuum compson jamais decepcionou uma senhora…”

 

a de Francisco Nuno Rodrigues (Círculo do Livro & Nova Fronteira):

“…ainda está cego para o que acontece em si mesmo para essa parte da verdade geral a seqüência de acontecimentos naturais e suas causas que obscurece o olho de qualquer homem até o de benjy você não está pensando em limitação você está contemplando uma apoteose na qual um estado temporário da mente se tornará simétrico acima da carne e com consciência plena dela e da carne não vai descartar você não vai nem morrer…acho que é melhor você ir logo direto para cambridge…então você vai se lembrar disto que a sua ida para harvard tem sido o sonho da sua mãe desde que você nasceu e que nenhum compson jamais desapontou uma senhora…”

a de Leiria-Carvalho (Portugália):

…mas estás cego ao que é em ti próprio para essa parte da verdade geral a seqüência de fatos naturais e as suas causas, que ensombra os sobrolhos de qualquer homem e mesmo de Benjy. Tu não estás pensando em limitação, estás contemplando uma apoteose na qual um estado temporário da mente se torna simétrico acima da carne, e consciente tanto de si próprio como da carne, nao te descartará nem sequer morrerás…creio que era melhor que fosses para Cambridge… lembrar-te-á que a tua ida para Harvard tem sido o sonho da tua mãe, desde que nasceste, e nenhum Compson desapontou ainda uma senhora…”

    Quentin será personagem de Absalão, Absalão! (1936) e após toda a experiência contada no livro, ele o encerrará com esse famoso trecho, depois que seu amigo Schreve pergunta por que ele odeia o Sul, o Deep South: “Eu não o odeio, disse Quentin rapidamente, de uma vez, sem pensar, eu não o odeio, repetiu, eu não o odeio, ele pensou, arfando no ar frio , no escuro impiedoso da Nova Inglterra, não, não o odeio! Não o odeio! Não o odeio!”

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