MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

01/02/2015

“Pássaros feridos” ou A que clube pertencia Colleen McCullough?

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de março de 2000, com o título “Verve aguçada de Colleen vem de longe”)

Desde o início dos anos 1990, Colleen McCullough vem publicando romances sobre a Roma Antiga: Primeiro Homem de Roma, A coroa de Ervas, Os favoritos de Fortuna. Neles, a autora australiana aparentemente alcançou novo patamar em sua carreira, com um ambicioso olhar sobre a vida privada dos romanos, os debates públicos, as apaixonantes questões políticas, o mundo da guerra. No entanto, o que mais impressiona nesses livros é a verve aguçada e exuberante na revelação de aspectos da natureza humana, os quais já existiam em Roma e que provavelmente nunca deixarão de existir.

Agora que o SBT reprisa a minissérie PÁSSAROS FERIDOS (aliás, uma pièce de résistance na sua programação), baseada no romance que tornou McCullough internacionalmente conhecida (foi publicado em 1977[1]), nada mais conveniente do que fazer uma releitura de uma obra da qual tinha uma lembrança muito boa (e Uma obsessão indecente, o livro seguinte, é melhor ainda), injustamente caracterizada como best seller. A minissérie ajudou a consolidar essa ideia falsa. Ali, a história virou um dramalhão inepto, destruído por um casal central inacreditável. Quem leu Pássaros feridos jamais poderá se conformar com a insossa Rachel Ward vivendo Meggie e o deplorável Richard Chamberlain na pele do extraordinário personagem que é o padre Ralph de Bricassart, precursor do memorável Sila, da série romana). E quem o relê agora constata que o tal “novo patamar” na carreira de McCullough também é uma ideia falsa: já estava tudo nele, o olhar ambicioso sobre a intimidade das pessoas e a vida pública e, o que é mais importante, a verve aguçada.

Um ou outro detalhe, um apelativo título extraído de uma lenda meio cafona (que estraga o parágrafo final), uma certa insistência exagerada nas reclamações femininas contra os homens, nada disso consegue enfraquecer o vigor das 650 páginas da história dos membros da família Cleary e de Drogheda, a propriedade que eles, oriundos da Nova Zelândia, administram na Austrália.

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O fio condutor é o amor entre o padre (chega a cardeal) Ralph e a única menina dos Cleary, Meggie. Eles se conhecem quando a família chega a Drogheda. Ele tem 28 anos, ela 10. Nunca deixam de pensar um no outro, apesar de ficarem separados durante longos períodos, várias vezes (uma delas, por 13 anos!). Meggie chega a ter um filho dele, Dane, mas manobra as coisas de modo que todos pensem ser filho do marido, Luke. Ralph só chega a saber da verdade aos 71 anos, quando ajuda Meggie a recuperar o corpo de Dane, que se afoga em Creta, após ordenar-se padre (e ele tem mais vocação do que o pai). Após os serviços fúnebres em Drogheda, o próprio Ralph morre diante de Meggie, já cinquentona.

Acontecem várias outros episódios trágicos na vida dos Cleary, sem contar uma seca que dura uma década inteira, e ad duas guerras mundiais: Paddy, o patriarca, morre incinerado durante uma tempestade terrível; Stu, um de seus filhos, morre esmagado por um javali, ao encontrar o cadáver do pai. É pouco? Ainda há Frank, o irmão mais velho de Meggie (que não é filho de Paddy), o qual tem uma inclinação incestuosa pela mãe, Fee (provavelmente a maior personagem de Pássaros feridos), e que, após comete um homicídio, é condenado à prisão perpétua.

O genial dramaturgo norte-americano Eugene O´Neill (1888-1953) procurou, em algumas de suas peças (por exemplo, na magnífica e difícil Electra enlutada, 1931), transportar a atmosfera das tragédias gregas para o cotidiano da era burguesa, com as maldições dos deuses caindo como um raio no seio de famílias que transgrediram leis. Tais clãs tinham uma espécie de “demônio familiar” (dáimon), provocador dessas transgressões e comportamentos desmesurados, passíveis de serem punidos pelos deuses (hybris).

O fato é que McCullough consegue fazer essa transposição da influência do dáimon e das consequências da hybris com muito mais naturalidade e sem a grandiloquência de O´Neill, em Pássaros feridos[2]. Tanto que, ao contrário do dramalhão convencional, que rege os caminhos dos best sellers, não há conciliação no final da história, não há um final feliz ou arrumadinho que redima o sofrimento. Temos uma visão final de resignação com a velhice e a brutalidade, de desolação, de fim de uma época.

Além disso, embora os diálogos do romance sejam irregulares, com altos e baixos, alguns estão entre os mais soberbos da ficção recente (penso especialmente nos diálogos entre Meggie e Fee na 5ª. Parte do livro). A narração dos sórdidos detalhes sexuais do casamento entre Meggie e Luke também é notável e certamente desconcertará quem procurar o livro para um entretenimento “romântico”. Portanto, desistam, leitores de Danielle Steel ou Rosamunde Pilcher. Colleen McCullough pertence a outro clube, que não é o da felicidade e da sorte.

VER TAMBÉM

https://armonte.wordpress.com/2015/02/02/colleen-mccullough-no-pendulo-entre-a-inspiracao-e-a-mornidao-passaros-feridos-e-a-cancao-de-troia/

 

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NOTAS

[1] THE THORN BIRDS, que comento na tradução de Octavio Mendes Cajado.

[2] Nota de 2015– Relendo hoje a resenha acima, penso que o paralelo entre O´Neill e McCullough é um pouco forçado e, sobretudo, vago, sem fazer contextualização de toda uma linhagem de autores que, no século XX, trilhou esse caminho. Mas meu objetivo naquele momento era valorizar a autora de Pássaros feridos.

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