I
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 16 de setembro de 2003)
Boa parte do público que está fazendo de Lisbela e o prisioneiro talvez não saiba que se trata de uma peça com mais de 40 anos, que foi montada no início dos anos 1960 pela Companhia de Tônia Carreiro (e cuja publicação ocorreu originalmente em 1964). Mais ainda: Osman Lins, seu autor, faleceu há um quarto de século, após ter escrito alguns dos melhores textos da nossa literatura: os romances O fiel e a pedra, Avalovara e especialmente A rainha dos cárceres da Grécia; textos curtos como os de Nove Novena, além de A ilha no espaço.
Talvez seja para marcar a data que está sendo lançada a antologia Os melhores contos de Osman Lins, com um preço superestimado com relação ao seu número de páginas (os textos escolhidos vão da página 31 à página 199!): 32 reais!!!???
Para dizer a verdade, a seleção feita por Sandra Nitrini é uma das mais fracas e discutíveis da já tradicional série da Global, pois ela se limitou tão somente às duas únicas coletâneas que o grande escritor pernambucano publicou: Os gestos (de 1957, atualmente em editada pela Moderna) e Nove Novena (de 1966, agora no catálogo da Companhia das Letras).
Realmente temos que concordar que, entre os 13 textos da primeira e os 9 da segunda, era difícil fazer uma seleção, pois todos são praticamente impecáveis. Se ela escolheu seis de cada uma e poderia ter escolhido outros, é uma questão de preferência. Mas por que não se ampliou o leque, pensando-se na significação que isso teria na recepção atual da sua obra, e foram incluídos textos de acesso mais difícil, como o caso de Missa do Galo, no qual ele reescreveu o célebre e extraordinário conto de Machado de Assis; ou ainda seu derradeiro texto, ainda inédito em livro (só saiu na revista de literatura “Travessia” da Universidade Federal de Santa Catarina, salvo engano), Domingo de Páscoa?
Grave, também, é a não-inclusão de A ilha no espaço (também editado pela Moderna). Atento aos rumos da indústria cultural, Osman Lins aproveitou-se da brecha que havia na programação da Globo nos anos 1970, os famosos Casos Especiais, para ampliar seu público. Dos três que escreveu (os outros foram publicados na sua forma de roteiro: Marcha Fúnebre & Quem era Shirley Temple?), o melhor, o mais intrigante, baseava-se num texto antigo, também dos anos 1960, A ilha no espaço, que ele reescrevera várias vezes e que me parece crucial para a compreensão das preocupações da sua obra.
Apesar desses percalços, o que está em Melhores Contos é da mais alta qualidade. Não se espere, porém, algo leve e divertido feito Lisbela e o prisioneiro. Os brevíssimos e perfeitos (de uma perfeição quase gélida) contos de Os gestos são todos calcados em experiências de incomunicabilidade e frustração, desde o velho que está na cama, incapaz de falar, tendo que se contentar com migalhas sensoriais e com reminiscências (o conto-título) até o velho que conversa com o corpo da esposa que morreu e que já pressente a própria morte em vida, sendo isolado e infantilizado pelos parentes que lhe restam (Elegíada), passando por esposas incompreendidas e reprimidas (Cadeira de balanço & O vitral), e jovens sufocados pelo mundo provinciano (A partida).
Tudo permeado pelo patriarcalismo do Nordeste. Pois é incrível como um escritor tão experimental quanto Osman Lins (ainda nem tanto a essa altura) deixa penetrar a realidade brutal do mundo patriarcal, de uma forma tão poderosa quanto a que se vê em Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, ou na recente adaptação de Walter Salles Jr. para Abril despedaçado.
Se o padre de Retábulo de Santa Joana Carolina quer se proteger da “impregnação das coisas”, o maravilhoso autor de A rainha dos cárceres da Grécia faz justamente o contrário. Embora os textos de Os Gestos nos passem uma sensação paralisante de inutilidade, da gratuidade do viver, como constata a esposa de Vitral, que deseja um retrato que imortalize o momento. Seu marido replica: “Não é possível guardar a mínima alegria. Em coisa alguma. Nenhum vitral retém a claridade”. Ela agarra o braço dele “a sentir que um júbilo quase angustioso jorrava de seu íntimo. Compreendeu que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. Que este instante me possua, me ilumina e desapareça, pensava. Eu o vivi. Eu o estou vivendo. Sentia que a luz do sol a trespassava, como a um vitral”.
II
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de setembro de 2003)
A Global lançou OS MELHORES CONTOS DE OSMAN LINS, seleção que reúne narrativas de dois livros, Os gestos (1957) e Nove Novena (1966).
Na seção passada, comentei os contos selecionados do primeiro, faltando os seis do segundo. E embora tenha criticado a seleção feita por Sandra Nitrini, por causa de certas omissões, é uma questão de justiça salientar que a disposição dada aos textos de Nove Novena (diferente da do livro) ajuda o leitor a perceber a crescente complexidade da proposta ficcional do grande escritor pernambucano, morto tão prematuramente.
O primeiro selecionado, Os confundidos (um pouco inferior a outros, excluídos, como O ponto no círculo ou Achados e perdidos), por exemplo, mostra a questão da incomunicabilidade entre casais—um dos temas dominantes em Os gestos—de uma forma inovadora, ainda que seja o mais “fácil” dos textos de Nove Novena: um casal discute seus problemas num diálogo aparentemente simples, mas no qual as vozes acabam por se confundir, como nota muito bem a organizadora na sua introdução: há “alternância entre oito segmentos de diálogos e sete trechos descritivo-narrativos, expondo a organização geométrica e equilibrada do texto. Esse aspecto fica mais evidente, quando se percebe o jogo entre a transparência do discurso do diálogo e o registro inusitado das marcações teatrais, que oscila entre os polos da definição e indefinição”. O texto não permite muitas vezes saber quem faz uma ação: “Um de nós levantou-se, ou irá ainda levantar-se, entreabrir a cortina, olhar a noite”.
A cada texto selecionado, a experimentação se radicaliza: em Conto barroco, há três possibilidades narrativas para a situação do matador que vem executar um “serviço” e se envolve com a amante do homem que deve executar, uma das quais mostra como ela acaba sendo a vítima; em O pássaro transparente, a alternância entre a primeira e a terceira pessoa compõe uma trajetória de frustração do protagonista, que assume o destino do pai como patriarca da família, quando imaginava que seria aquele que romperia o círculo (ironicamente, quem faz isso é a sua amada da juventude, ao se tornar uma artista, que pinta justamente o quadro que dá título à narrativa).
Nos 20 fragmentos de Pastoral, o narrador, Baltasar, mostra sua condição de pária no sítio do pai até mostrar sua própria morte (e o seu velório: “estirado na mesa, sem velas, dedos cruzados, a pele de raposa cobrindo-me as virilhas. Sentados e mudos, nos lugares de sempre, meu pai, Joaquim e meus irmãos, rodeiam-me… Talvez com remorso, talvez com alívio, pois nunca mais verá este seu filho, que em nada se parece com ele e que, todos os dias, fazia-o recordar a mulher que foi capaz de deixá-lo, meu pai contempla-me”), ao tentar impedir que sua égua acasale com um garanhão, numa tentativa patética de negar o atavismo reiterado pelo universo patriarcal.
Mas os grandes destaques de MELHORES CONTOS são os dois textos desafiadores, onde as personagens ganham símbolos identificadores, ao invés de nomes, para marcar sua intervenção: Pentágono de Hahn & Retábulo de Santa Joana Carolina. No primeiro, uma elefanta de circo (a Hahn do título) serve de convergência para cinco personagens, os quais representam fases diferentes da existência. E no segundo, quase que unanimamente considerado o mais perfeito entre os textos de Osman Lins (e olha que ele escreveu depois os belíssimos Avalovara * A rainha dos cárceres da Grécia), o leitor descobre o que é, de fato, a morte e vida Severina na trajetória da professorinha primária viúva que tenta sobreviver com seus diversos filhos em meio à miséria nordestina,e nessa luta inglória toca a transcendência e a santida, em meio à “impregnação das coisas”.
Joana Carolina diz, no oitavo “mistério” (entre os 12 que compõem a narrativa), que é uma lei sua “agir sempre como se o impossível não fosse”. Ao que parece, era o lei de Osman Lins como escritor.