

“Esther entra com uma pilha de panos de pratos. Ela olha para as meninas, depois olha para mim. Devo estar pálido. Devo parecer completamente perdido, porque ela balança a cabeça e estala a língua. Guarda os panos em uma gaveta. Sussurra alguma coisa no ouvido de Alex e então caminha direto na minha direção. Dou um passo para trás, mas ela agarra minha cabeça e me puxa contra os seios. Fito seu peito, horrorizado, mas depois me entrego, e pela primeira vez choro de verdade, como se só agora percebesse o que está acontecendo com minha esposa, comigo e com essa família. Minha esposa não vai voltar, minha esposa não me amava, e tenho de cuidar das coisas daqui pra frente.” (Os descendentes)
“Portanto, meu receio não era apenas de virar minha mãe, eu temia ser mãe. Tinha medo de me tornar aquela âncora segura e estacionária que fornece a plataforma para a abordagem de mais um jovem aventureiro, cujas viagens eu talvez inveje e cujo futuro ainda não tem amarras nem mapas. Tinha medo de virar aquela figura arquetípica na soleira da porta—desmazelada, meio gorda—que acena adeuses e manda beijos quando uma mochila é posta no porta-malas; que enxuga os olhos com o babado do avental sob a fumaça do cano de escape; que se vira, desolada, passa o trinco na porta e vai lavar os poucos pratos que restaram na pia, sob um silêncio que pesa sobre a cozinha como um teto caído (…) Eu tinha verdadeiro pavor de ter um filho… Eu morria de medo de um confronto com o que poderia vir a ser uma natureza fechada, pétrea, de um confronto com meu próprio egoísmo e falta de generosidade, com o poder denso e tardio do meu próprio ressentimento. Por mais intrigada que estivesse com o ´virar da página´, sentia-me mortificada com a perspectiva de me ver irremediavelmente encurralada na história alheia…” (Precisamos falar sobre o Kevin)
É necessário esclarecer que, ao colocar como “leituras em espelho” Precisamos falar sobre o Kevin & Os descendentes, não estou equiparando-os em termos de qualidade.
Os descendentes está longe de ter o quilate literário, a complexidade e a autoridade moral de Precisamos falar sobre o Kevin (mesmo porque é um livro que apresenta os acertos e erros típicos de um primeiro romance), mas os dois se tangenciam ao privilegiar os polos paterno (no caso do primeiro) e materno (no caso do segundo) como eixo estruturador das narrativas em primeira pessoa; além disso, ambos foram material de origem para versões cinematográficas de 2011, agora exibidas no Brasil.


O LIVRO DO PAI
(resenha publicada de forma mais condensada em A TRIBUNA de Santos em 21 de fevereiro de 2012)
Assim como as novas capas nacionais de Precisamos falar sobre o Kevin e O espião que sabia demais, a de Os descendentes (a tradução de Cássio de Arantes Leite para The descendants, EUA-2003) reproduz o cartaz do filme e representa uma decisão bem mais deletéria porque, ao contrário dos demais, o romance de estreia de Kaui Hart Hemmings é mais frágil literariamente e pode ser facilmente engolido pelo prestígio (superestimado, a meu ver) da versão cinematográfica de Alexander Payne, a qual, aliás, é bastante fiel às linhas gerais da trama.
Quem narra é Matt King: ele e sua numerosa família (em termos de primos dos mais diversos graus) são descendentes de uma princesa havaiana nativa e um missionário americano e possuem uma quantidade apreciável de terras cobiçadas pela especulação imobiliária. Matt detém o poder de bater o martelo a respeito do comprador adequado. Esse lado da história, com raízes na própria história do Havaí (“…agora me pego relutando em abrir mão disso—da terra, da próspera relíquia de nossa tribo, dos mortos. A última terra possuída por havaianos terá ido embora, e eu terei minha participação nisso. Mesmo que a gente não pareça havaiano, mesmo que nossa constante recombinação tenha apagado a evidência de nossa etnicidade, protraindo nossos rostos achatados, alisando nosso cabelo pixaim, mesmo que a gente aja como haoles, frequentando escolas particulares e clubes,sem dominar muito bem o inglês pidgin, minhas filhas e eu somos havaianos, e essa terra é nossa…”), é o que mais me interessou, mas não é suficientemente desenvolvido nem pela autora nem pelo roteiro do filme (no qual ela faz uma participação rápida, como funcionária do protagonista), tanto que a resolução final de Matt King não convence e parece uma solução de compromisso politicamente correta.
A trama se volta mais para a perplexidade dele em cuidar das filhas problemáticas com a esposa em coma, após um acidente de barco (“Olho para minhas filhas, completos mistérios, e por um breve momento tenho a horrível sensação de que não quero ficar sozinho no mundo com essas duas meninas. Estou aliviado por não terem me perguntado do que eu mais gosto nelas”), que se complica com o veredicto médico: ela não recuperará a consciência e deixou instruções explícitas para não ser mantida viva por aparelhos. Pior ainda: descobre que Joanie (no filme, Elizabeth) estava apaixonada por outro e pretendia deixá-lo. Resolve, então, procurar o amante, e aí parte em viagem com as filhas e o amigo/namorado/ficante, sabe-se lá o quê (de qualquer forma, um tipo meio Débi & Lóide), da mais velha, o que dá ao desenrolar da narrativa um ar de Pequena Miss Sunshine (um grupo familiar disfuncional jogado no mundo, que mesmo assim descobre que a família ainda é a unidade básica com que contamos para enfrentar essa realidade que vivemos) mesclado com A família Savage (filme que poderia ter sido dirigido por Payne, e parece ter sido marcado pelos filmes anteriores dele, e que toca num ponto nevrálgico em Os descendentes: como a mortalidade nos ronda, mesmo disfarçada em rotinas hospitalares, detalhes burocráticos, documentação, arranjos práticos—é uma das qualidades da história, tanto no livro de Hemmings quanto na adaptação de Payne).


O que é difícil de acreditar é que, em meio a uma negociação tão complexa, importante e badalada, as empresas que fizeram ofertas deixem Matt tão livre, leve e solto para confrontar seus fantasmas pessoais, sem pressão de qualquer tipo.
Mesmo assim, apesar de deixar a desejar neste e em vários aspectos e ficar próximo da banalidade em seu terço final (“Deixo que ele se vá junto com os meus antigos costumes. Todos nós deixamos que ele se vá, bem como o que éramos antes disso, e agora somos só nós três, para valer…”), o romance, como um todo, é bem melhor que o filme (ainda que este não seja um mau filme, só não é o grande filme que as premiações—e os trabalhos anteriores de Payne—nos autorizavam aguardar) e Matt é um narrador que apresenta lampejos e percepções que valem a leitura (“É absurdo quanta coisa se espera que os pais de hoje saibam. Venho de uma escola de pensamento onde a ausência do pai é algo com que se pode contar. Hoje em dia, vejo todos os homens com bolsas camufladas para troca de fraldas e os bebês pendurados em seus peitos como pequenas figuras de proa de um navio. Quando eu era um pai novo, lembro que minhas filhas meio que me incomodavam, por serem bebês, e todo mundo em volta correndo para atender suas necessidades”).



Por isso mesmo, posso afirmar que George Clooney (eu sei, eu sei que ele é bonito, charmoso, engajado nas boas causas e quase todo mundo—mulheres, especialmente—acham que ele é sedutor e carismático) esvaziou o personagem de qualquer traço marcante com sua inexpressividade (para mim, uma constante na sua carreira de ator); no elenco, diga-se de passagem, só o veterano Robert Forster consegue deixar um traço memorável como o sogro truculento. Tirando essa limitação intransponível de Clooney enquanto intérprete, quem no entanto acredita seriamente que alguma esposa vai traí-lo com Matthew Lillard, o Salsicha dos filmes do ScoobyDoo, que ressurge em versão marombada?!!! Aí, já não estamos mais no Havaí e sim no território do país das maravilhas e do chapeleiro louco, no “mondo bizarro” cantado pelos Ramones (pelo menos foi a minha primeira impressão: pensando melhor, como Payne é um diretor nada bobo, a escolha desse ator pode significar—e nunca teremos a resposta, só a suspeita, com uma mulher em coma e logo em seguida falecida—o nível de desespero a que uma esposa—com um pé no alcoolismo—pode chegar ao lado de um marido complacente e basicamente insatisfatório [1], ainda que com a estampa de George Clooney).


O LIVRO DA MÃE
(resenha publicada de forma mais condensada em A TRIBUNA de Santos, em 07 de fevereiro de 2012)
Quando Lionel Shriver veio em 2010 ao Brasil, para a FLIP, Precisamos falar sobre o Kevin (a ótima tradução de Beth Vieira & Vera Ribeiro para We need to talk about Kevin, 2003) já tivera 15 mil exemplares vendidos por aqui. Eu me pergunto, contudo, quantos compradores ficaram realmente satisfeitos com a leitura dessa obra-prima da ficção (provavelmente o mais importante romance da primeira década deste século), uma vez que se faz de tudo para vinculá-la a uma temática específica: o fenômeno das matanças em escolas (é o que faz o Kevin do romance, doze dias antes do massacre de Columbine).
Geralmente, os livros são exaltados ou por seu aspecto formal ou por seu assunto. A ênfase sempre recai sobre um ou outro pólo. Da minha parte, acho esse vezo lamentável, especialmente no caso de uma autora como Shriver, por razões que, espero, ficarão claras ao longo do meu texto.
A narrativa é estruturada através das cartas que a mãe de Kevin, Eva Khatchadourian (descendente de armênios), redige para o marido (o qual também foi assassinado), durante aquele período profundamente desmoralizador da recontagem de votos na eleição norte-americana de 2000. E nelas não encontraremos qualquer vestígio daquelas irritantes e hipócritas “histórias de superação” que nos mostram reis que superam sua gagueira ou adolescentes afro-americanas que sofrem abuso sexual e doméstico, além de bullying na escola, e mesmo assim conseguem sucesso na vida. Não há nenhuma lição positiva, nenhuma “mensagem” a tirar de Precisamos falar sobre o Kevin. Pelo contrário, através da voz peculiaríssima de Eva (que pode se irmanar a outras vozes inigualáveis como a de Riobaldo de Grande sertão: veredas, Humbert Humbert de Lolita ou Holden Caufield de O apanhador no campo de centeio, só para citar algumas; e é absolutamente inusitado que o alicerce dreiseriano, de combatividade e admoestação, que admiro em Zola, Tolstói, Lawrence ou Doris Lessing tenha se plasmado na voz de um personagem, o que dá uma característica original à autora de Precisamos falar sobre o Kevin dentro dessa linhagem: talvez por ter adotado a persona da Mãe ela pôde realizar esse feito único), Shriver lança um terrível anátema contra a civilização norte-americana e o os chamados “valores familiares”.


Eva reconhece no filho logo cedo a sociopatia. Mas como toda a cultura à sua volta é regida por estereótipos, que vão do amor materno inato ao desejo de etiquetar e rotular cada distúrbio, como se a infelicidade pudesse ser domada e virar um atributo social com nomes como “depressão pós-parto”, “transtorno do déficit de atenção”, “bipolaridade” etc, enfim toda essa a enxurrada de modismos (e bobajadas) psiquiátricos e pedagógicos que enfrentamos na atualidade, ela se vê isolada no seu diagnóstico íntimo e implacável do filho, entrando em rota de colisão com o próprio marido, que nada vê de anormal em Kevin, e o cria com toda a complacência que caracteriza a relação pais e filhos na sociedade de consumo (e depois as pessoas se surpreendem que os afetos tradicionais tenham ficado cada vez mais esgarçados): “Não que Kevin não tivesse tudo em abundância, já que você o enchia de brinquedos (…)Talvez a sua generosidade tenha saído pela culatra ao forrar o salão de jogos com o que devia parecer um mar de plástico; e talvez ele soubesse que presentes comprados em lojas eram fáceis para nós, que éramos ricos, e portanto, por mais caras que essas tranqueiras fossem, continuavam sendo baratas…”
E é uma pena que a rara combinação de altíssima realização estética com o que só posso chamar de autoridade moral (e é por isso que não me lembro de nenhum romance contemporâneo ter me abalado tanto, com a exceção de Desonra, de J. M. Coetzee[2]) não tenha sido captada pela versão cinematográfica de Lynne Ramsay. Optando por uma narrativa não-linear, ela passa longe do registro impiedosamente cirúrgico do original e transforma tudo numa espécie de tormento psicológico expressionista, numa atmosfera que sacrifica, em primeiro lugar, a descrição da dinâmica familiar e reduz todos que não são Eva e Kevin a caricaturas grotescas (o que não acontece no romance, com certeza [3]). Além disso, apesar de tanto Jasper Newell quanto Ezra Miller serem perfeitos como Kevin em diferentes fases, precisamos falar sobre o que há de discutível na caracterização de Tilda Swinton: atriz de presença magnética em cena, ela peca pela falta de sutileza, está sempre tão intensa em todos os momentos, é tudo tão dramático no seu olhar, que se tem a intuição de que não precisava dos feitos de Kevin para carregar a mesma dramaticidade exagerada[4]. Como não há progressão na história, tal como contada no filme, quem não leu o romance nunca percebe quando se cristaliza o processo implacável que a torna “mãe do ignóbil Kevin Khatchadourian é quem sou agora, uma identidade que significa mais uma das vitórias de nosso filho…”



E, por falar em Kevin, não deixa de ser engraçado que as pessoas achem amedrontador o filme de terror recente chamado Filha do Mal. Pois o terror que esse menino, cuja vida conhecemos até os 18 anos, carrega consigo é infinitamente mais devastador: “É só isso que eu sei. Que, no dia 11 de abril de 1983, nasceu-me um filho, e não senti nada. Mais uma vez, a verdade é sempre maior do que compreendemos. Quando aquele bebê se contorceu em meu seio, do qual se afastou com tamanho desagrado, eu retribuí a rejeição—talvez ele fosse 15 vezes menor do que eu, mas, naquele momento, isso me pareceu justo. Desde então, lutamos um com o outro, com uma ferocidade tão implacável que chego quase a admirá-la. Mas deve ser possível granjear devoção quando se testa um antagonismo até o último limite, fazer as pessoas se aproximarem mais pelo próprio ato de empurrá-las para longe. Porque, depois de quase dezoito anos, faltando apenas três dias, posso finalmente anunciar que estou exausta demais e confusa demais e sozinha demais para continuar brigando, e, nem que seja por desespero, ou até por preguiça, eu amo meu filho. Ele tem cinco anos para cumprir numa penitenciária de adultos, e não posso botar minha mão no fogo pelo que sairá de lá no final. Mas, enquanto isso, tenho um segundo quarto em meu apartamento funcional. A colcha é lisa. Há um exemplar de ´Robin Hood´ na estante. E os lençóis estão limpos…”
Em tempo: quem na Intrínseca teve a infausta ideia de trocar a capa brasileira original, que chamava a atenção para o livro de forma tão inquietante, para uma reprodução do cartaz do filme? É a proverbial ideia de jerico.


[1] “… também me lembrei de todas aquelas noites em que ela saía até tarde com as amigas. Terminava desabando na cama, cheirando a tequila ou vinho… Me pergunto se parte de mim não ficava contente por ela estar se mantendo entretida, permitindo que eu me concentrasse em meu trabalho, tão absorto em criar meu próprio legado, em vez de tomar de empréstimo os legados daqueles que vieram antes de mim. Sim. Parte de mim devia gostar de ficar sozinho…”
[2] Eu tenho um caderno repleto de citações copiadas de Precisamos falar sobre o Kevin, suas observações precisas, mortiferamente lúcidas. No entanto, isso seria contraproducente, pois eu poderia citar e citar e não transmitiria o poder do livro como um todo, como experiência de leitura impressionante.
[3] Não se dá nenhuma atenção, por exemplo, ao personagem-chave do marido, vivido por John C. Reilly de forma mais opaca e inexistente ainda do que o normal, mesmo para ele, um ator que não deixa marcas (o que pode ser eficaz em certo tipo de filme, porém é especialmente infeliz diante de Tilda Swinton). Como a narrativa de Eva é dirigida ao marido—que foi uma das vítimas do dia do massacre realizado por Kevin—, às vezes de maneira desleal, por ser um olhar retrospectivo e portanto “informado” , ao qual devemos ficar atentos, considero essa “ausência” desastrosa e uma falha perceptível na direção dos atores.
[4] De passagem, pelo que conheço de sua carreira, Swinton ainda está nos devendo uma caracterização em personagem “normal”, do dia a dia. Com seu histrionismo bem marcado, ela tem sido utilizada em fantasias e caracterizações bizarras: o papel-título de Orlando, o anjo de Constantine, a bruxa das Crônicas de Nárnia. Ao interpretar uma vilã do mundo empresarial, ou seja, da realidade mais prosaica, em Michael Clayton-Conduta de risco, ela também ficou a dever, muito próxima do caricatural (achei sua premiação com o Oscar bem injusta). Com certeza, ela não é nenhuma Toni Colette que transita bem tanto em constelações mais bizarras quanto no universo mais cotidiano.

