MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

29/05/2018

A IMPRUDÊNCIA MAJESTOSA DE PHILIP ROTH

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 29 de maio de 2018)

Já disse que John Updike e Philip Roth eram o Tolstói e o Dostoiévski da literatura americana. Updike se foi há alguns anos, seu “outro” judaico morre agora, aos 85 anos, deixando uma obra vasta e majestosa, da qual nenhuma resenha daria conta. Por isso, escolhi o meu favorito entre tantos títulos marcantes (“O complexo de Portnoy”, “O Ghost Writer”, “Pastoral Americana”, “O avesso da Vida”, por exemplo).

Um dos aspectos fabulosos de “O TEATRO DE SABBATH”, é o fato de o romance ter 544 páginas e toda a história praticamente ser contada nas primeiras cinquenta. O leitor fica a se perguntar o tempo todo: como Roth vai dar conta do recado? (Preencher e rechear as páginas que faltam) e, quando dá por si, leu o texto inteiro deliciado e maravilhado com o virtuosismo do genial escritor norte-americano.

“O TEATRO DE SABBATH” mostra um artrítico ex-titereiro (isto é, manipulador de fantoches) judeu que é a chaga da cidadezinha chamada Madamaska Falls, na Nova Inglaterra. Aos 64 anos, tem uma esposa alcoólatra e uma voluptuosa, opulenta amante, a qual descobre estar com câncer. E principalmente uma reputação de obscenidade.

Quando Drenka (a amante) morre, Sabbath passa a ir diariamente até o seu túmulo masturbar-se (e descobre que outros amantes de Drenka fazem o mesmo). Nesse ínterim, recebe a notícia da morte de um ex-conhecido do mundo teatral, em Nova Iorque. Ele hesita em ir ou não prestar suas homenagens, até que, após um confronto com a atual esposa, a cerimônia fúnebre torna-se uma perspectiva atraente. E é a partir daí que Roth, como romancista, mostra que tinha todos os trunfos na manga, e pode jogar à vontade com as informações que já fornecera ao leitor, sobre o passado do seu protagonista.

Nada, absolutamente nada, é desperdiçado no livro. Tudo oferece chance para cenas brilhantes e impagáveis, na qual Sabbath destila sua sexualidade politicamente incorreta e afrontosa. Nunca convide Sabbath para passar a noite em sua casa, leitor. Ele pode ocupar seu tempo vasculhando a roupa íntima das suas filhas, masturbando-se com as calcinhas delas ou fazendo propostas indecentes à sua esposa.

Demolindo a caretice e o conformismo triunfantes nos tempos modernos (e que se acreditava terem sido deixados para trás), a obra-prima de Roth faz com que Sabbath sempre fique no limite do intolerável, do inconveniente, do inapropriado. Herói de uma incipiente contracultura, nos anos 50, ele é um desconforto ambulante na década de 90, uma espécie de Rei Lear da sexualidade (não faltam alusões shakespearianas em “O TEATRO DE SABBATH”), despojado de tudo a não ser do seu pênis. Que continua dando trabalho a todos, ao dono e as pessoas que lidam com ele.

O maravilhoso em Philip Roth é que ele nunca cai na autoindulgência com a sexualidade masculina (tal como um Charles Bukowski). Seu talento corrosivo não poupa o próprio discurso libertário e abusado do sexômano sexagenário, que, mesmo assim, vem trazer uma lufada de ar fresco e um tempero picante, com sua degradação e sua inconveniência, a nossos tempos de “sexo seguro” (e tudo o mais totalmente inseguro e líquido): “Sem esposa, sem amante, sem tostão, sem profissão, sem casa… e agora, para coroar tudo isso, em fuga. Se não fosse velho demais para voltar para o mar, se seus dedos não estivessem aleijados, se Morty tivesse sobrevivido e Nikki não fosse louca, ou se ele mesmo não fosse louco também, se não houvesse guerra, loucura, perversidade, doença, estupidez, suicídio e morte, existiria alguma chance de Sabbath estar em uma situação bem melhor”.

Como o narrador mesmo nos diz, “os 64 anos de vida de Sabbath o haviam, muito tempo antes, liberado da falsidade do bom senso”. Sabbath possui “o talento que um homem arruinado tem para cometer imprudências… o poder de ser alguém que nada mais tinha a perder”.  Tanto é, que perto do final, quando desistiu de cometer suicídio (para o qual estava se preparando boa parte da narrativa), por motivos que só uma leitura desse romance obrigatório (como tantos outros de Philip Roth) pode esclarecer, ao provocar o filho de Drenka, um policial, para que ele o execute, ele se resume da seguinte forma: “Sou um cara imprudente. Para mim, também é uma coisa inexplicável. Isso substituiu praticamente tudo o mais na minha vida. Parece constituir o único objetivo do meu ser”. Melhor para nós, leitores.

 

12/07/2011

O SÁTIRO QUE RI À SOCAPA E O DESTINO QUE RI POR ÚLTIMO


A meditação tragicômica sobre a falibilidade de Mordecai Richler

(resenha publicada de forma mais condensada em A TRIBUNA de Santos, em 12 de julho de 2011)

“Acompanhar o que aconteceu com todo mundo é  que me levanta do estado de decrepitude em que me encontro…”

    (Mordecai Richler, A Versão de Barney)

 

Em 1995, Philip Roth publicou uma de suas obras-primas (e o livro dele que me é mais caro), O teatro de Sabbath, que tem como protagonista uma espécie de Rei Lear da sexualidade: sexagenário, continua a causar escândalo com episódios de incontinência, tidos como sórdidos e inconvenientes (a amante morre de câncer e ele vai todos os dias até o seu túmulo masturbar-se, por exemplo). Sabbath possui o “talento que um homem arruinado tem para cometer imprudências”, e ele mesmo afirma, a respeito dessa “imprudência” politicamente incorreta: “Para mim também é uma coisa inexplicável. Isso substituiu praticamente tudo o mais na minha vida. Parece constituir o único objetivo do meu ser”[1].

Mais ou menos na mesma época, Sabbath ganhou um “irmão  espiritual”, por assim dizer, em infâmia sublime e provocação à caretice chapada contemporânea: o personagem-título de A Versão de Barney (Barney´s Version, publicado originalmente em 1997, e traduzido por Luciano Vieira Machado, para a Companhia das Letras, em 2008[2]), cuja versão cinematográfica—batizada no Brasil de Minha versão do amor—foi exibida por apenas uma semana em Santos (é claro, não se trata de nenhum Se beber não case, daí a indiferença do público).

Trata-se de um virtuosístico e exuberante exercício da primeira pessoa e da sua não-confiabilidade: Barney Panofsky escreve a história da sua vida (ou a “carnificina”, como ele mesmo diz) porque um desafeto antigo, o escritor Terry McIver, numa autobiografia a ser lançada, traça dele uma imagem infame e acintosa. Embora politicamente incorreto e afrontoso em seu comportamento geral (e de uma generosidade ímpar em assuntos financeiros, em decorrência do seu temperamento “bon vivant), ou seja, “falhando” muito ou, como se diz por aí, “pisando na bola” Barney quer refutar a versão de McIver, a maneira malevolente com que ele o caracterizou,  mas se depara com o emaranhado da sua memória, já prejudicada pelos indícios do Alzheimer (ao longo do texto, temos intervenções do filho dele, Michael, “corrigindo” lapsos e erros factuais):

“—(…) Quero que você procure um neurologista. Você precisa fazer alguns exames.

__ De cabeça?

__ Temos de eliminar algumas possibilidades. Pode ser que seja apenas cansaço. Ou uma perda de memória benigna, não muito incomum em homens de sua idade.

__ Ou então um tumor no cérebro?

__Por favor, não vamos tirar conclusões desagradáveis antes da hora Mora sozinho, Sr. Panofsky?

__ Sim, por quê?

__ Estou só perguntando.

   No dia seguinte, no começo da tarde, entrei na biblioteca d McGill e li num livro de referência:

   Quando Alzheimer (1907) descreveu a doença que hoje tem o seu nome, considerava-a uma forma atípica de demência… Há relatos de casos de hereditariedade, tanto dominante quanto recessiva… Do ponto de vista histopatológico, o mal de Alzheimer é indistinguível da demência senil…

   Oh, meu Deus. Kate. Saul. Michael. O que é que eu fiz, Miriam?

   (…) O primeiro sintoma é a perda de memória. A dona de casa perde a costura, deixa queimar a torrada e se esquece de um ou dois produtos quando vai às compras. O profissional esquece reuniões ou então hesita de forma embaraçosa em meio a uma palestra, incapaz de encontrar a palavra certa. Nada mais grave pode ser observado durante um ano ou mais, porque o lento progresso da doença…

__Morty, sou eu. Desculpe-me ligar em sua casa. Posso falar com você um minuto?

__ Sim, claro. Deixe-me desligar a televisão.

__ É Alzheimer, não é?

__ Não temos certeza.

__ Morty, a gente se conhece há séculos. Não vá me sacanear.

__ Tudo bem. É uma possibilidade (…)

__ Tenho de organizar as minhas coisas, os meus negócios, Morty. Quanto tempo ainda tenho?

__ Se for Alzheimer, o que ainda não passa de mera hipótese, os lapsos de memória vão e vêm, mas eu diria que você tem um ano antes de…

__ Ficar totalmente gagá?”

      O que ajuda a estruturar o ir-e-vir das reminiscências panofskyanas (além de informações, como a do nome dos sete anões, do nome do escorredor de macarrão, que vão e voltam na narrativa, como mantras para não se afundar no trágico torpor mental do Alzheimer), antes de ele “ficar totalmente gagá”, é que cada parte do romance gira em torno de uma das suas três ex-esposas:

– a primeira, Clara, uma artista que se suicidou em Paris e depois de sua morte tornou-se objeto de culto de feministas agressivas (para as quais Barney é uma besta-fera)[3]; “A jovem que vem me entrevistar é a locutora da Lesbos FM—uma emissora estudantil da Universidade McGill—cuja tese de doutorado é sobre Clara. Houve visitas, cartas e questionários de feministas de lugares distantes como Tel Aviv, Melbourne, Cidade do Cabo e aquela cidade da Alemanha onde Hitler tomou de assalto o Parlamento, sabe? Foi lá que aquele primeiro britânico que não largava o guarda-chuva esteve para prometer a paz na Terra. Diabo, diabo, diabo. É a cidade que tem aquele famoso festival de cerveja. Polsner?  Molson´s? Não. O nome se parece com o daquele homenzinho de ´O mágico de Oz´. Ou o nome do autor daquele quadro ´O Berro´. Munch. MUNIQUE.  Enfim, o que quero dizer é que as admiradoras de santa Clara são legião e têm duas coisas em comum: elas me consideram uma abominação e não entendem que Clara tinha a mais viva antipatia pelas outras mulheres, porque lhes disputavam a atenção dos homens…”

-uma insuportável patricinha (que se tornará uma megera vingativa), e que ele só mencionará como a Segunda Sra. Panofsky: “Sim, a Segunda Sra. Panofsky era uma digna representante desse grupo tão injuriado, a princesa judia-americana… Quando a conheci, ela já tinha vivido num kibutz, se formara em psicologia na McGill e estava trabalhando com crianças com problemas mentais no Hospital Geral Judaico. Elas a adoravam. Ela as fazia rir. A Segunda Sra. Panofsky não era uma má pessoa. Tivesse se casado com uma pessoa de princípios, e não com alguém que fingia ser isso, hoje seria um modelo de esposa e mãe. Não seria uma velha feia, gorda e rabugenta, fascinada por cristais e outras picaretagens new age…”;

-e enfim, o amor de sua vida, Miriam, a qual o deixou devido aos seus excessos e para se tornar companheira de um sujeito “do bem” (para utilizar essa odiosa expressão da moda, da mesma linha de “qualidade de vida” e “sustentabilidade”, entre outras), e a quem ele tem a esperança patética de reconquistar. “Mas minha mulher não morrera, estava apenas ausente. Temporariamente ausente. Ela está naquela cidade, acho que Ontário. Não, Ottawa. A cidade com a Sala Príncipe Artur, lembram-se? Pois é. Ainda não estou totalmente maluco. Lembro-me até de como se escorre espaguete. É com aquele troço que tenho numa prateleira da cozinha. Os anões são sete. Quem está aí para o nome deles? Lillian Kraft não escreveu O homem na camisa Brooks Brother. Ou terno. Seja lá o que for. Foi Mary McCarthy. Peguei o telefone, comecei a discar… e parei. Não lembrava o número de Miriam.”

Como não podia deixar de ser no universo do admirável escritor canadense (como sabem os leitores de Joshua então e agora), há um escândalo envolvendo a vida de Barney: foi acusado de assassinar seu melhor amigo (na época do casamento com a patricinha, que tinha dormido com ele). O corpo nunca foi achado e, mesmo inocentado, essa suspeita sempre pairou sobre nosso anti-herói. Diga-se de passagem, a solução do caso é um dos mais sublimes achados de A Versão de Barney.

Pena que chega tarde demais para seu protagonista, que afunda no torpor mental anunciado. E a comédia humana poderosa que foi se desenhando ao longo das mais de quinhentas páginas termina, ao transformar em destino trágico a trajetória de Barney, por desvelar sua face de tristeza iniludível diante da certeza da nossa mortalidade e da fragilidade da nossa condição absurda.

Como Margaret Atwood, num bonito necrológico[4] (do qual me aproveitei para fisgar o sub-título deste texto), salientou de forma lapidar: A Versão de Barney é uma “meditação tragicômica sobre a falibilidade”: “Ainda tenho pendurado na parede, acima da lareira, um daqueles bicos-de-pena de Clara, torturados e saturados de detalhes. Ela mostra um estupro coletivo de virgens. Uma orgia. Gárgulas  e gnomos brincando. O sátiro que ri à socapa, desenhado à minha imagem, puxa pelos cabelos uma Clara nua. Ela está de joelhos, e eu forço minha entrada em sua boca, aproveitando o momento em que ela grita. Já me ofereceram duzentos e cinqüenta mil dólares por esse quadro encantador, mas anda me faria separar-me dele. Ao contrário do que parece, sou mesmo um velho tolo e sentimental”.

Ficção de primeira.

 


[1]Utilizo aqui a tradução de Rubens Figueiredo (Companhia das Letras, 1997).

[2]   A edição tem uma capa de que gosto muito, de  Mariana Newlands. No geral, a tradução é boa, só chamo a atenção para  algumas soluções esquisitas e desajeitadas: por exemplo, “restaurante de auto-serviço”, nas págs. 112 e 302 (quem usa esse termo?); na pág. 124 numa descrição do  policial O´Hearne, aparece “um duro da Warner Brothers” (não seria “um cara durão”?; mesmo porque “duro” tem a acepção por aqui de “sem grana”);na pag. 280, numa manchete de jornal: “Suspendida  a condicional de pena..’ (suspendida?!); e há os casos que podem ser  uma brincadeira do autor, um jogo de gato e rato referencial, já que muitos lapsos e erros do narrador são corrigidos pelo filho de Barney em notas de rodapé, e no entanto há vários outros que não o são, então fiquei na dúvida quanto ao texto traduzido em determinadas passagens, talvez injustamente.

E a questão de uso de termos “estranhos”, pelo menos para mim, pode ser exemplificada na seguinte passagem (de resto, maravilhosa): “Pensando bem, de todo modo estas memórias cheias de divagações encerram um ensinamento: nunca diga a verdade. Na hora do aperto, minta  feito um tira-dentes [?]. Ao longo de toda  esta minha vida cheia de equívocos,  consegui sair de todo tipo de enrascada graças a mentiras, pequenas, grandes ou enormes.  Na primeira em que disse a verdade, fui acusado de assassinato.  Na segunda, perdi minha felicidade. ..” (p.493).

[3] “Clara, que desprezava as outras mulheres, gozando de uma fama póstuma de mártir feminista. Eu, que ganhei uma modesta notoriedade como o porco-chauvinista que a traiu, e ainda por cima talvez um assassino…”

[4] “Diógenes de Montreal”, publicado originalmente em 4 de julho de 2001 e recolhido na coletânea Buscas Curiosas (Rocco).

11/07/2011

O LEITE DERRAMADO (nada é desperdiçado em O TEATRO DE SABBATH)

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/03/16/resenhas-rotharianas-1-o-animal-agonizante-e-o-escritor-tambem/

https://armonte.wordpress.com/2013/03/16/resenhas-rotharianas-2-fantasma-sai-de-cena-mas-nao-o-escritor/

https://armonte.wordpress.com/2011/07/11/destaque-do-blog-adeus-columbus-de-philip-roth/

Um dos aspectos fabulosos de O TEATRO DE SABBATH (EUA, 1995),de Philip Roth, é o fato de o romance ter 497 páginas (na edição da Companhia das Letras, em inspirada tradução de Rubens Figueiredo) e toda a história praticamente ser contada nas primeiras cinqüenta. O leitor fica a se perguntar o tempo todo: como Roth vai dar conta do recado (preencher e rechear as páginas que faltam)e, quando dá por si, leu o texto inteiro deliciado e maravilhado com o virtuosismo do genial escritor norte-americano.

    O TEATRO DE SABBATH mostra um artrítico ex-titereiro (isto é, manipulador de fantoches) judeu que é a chaga da cidadezinha chamada Madamaska Falls, na Nova Inglaterra. Aos 64 anos, tem uma esposa alcoólatra e uma voluptuosa, opulenta amante, a qual descobre estar com câncer. E principalmente uma reputação de obscenidade: já fora preso, nos anos 50, em Nova Iorque, por desnudar o seio de uma moça num espetáculo de rua, e é execrado por assediar uma universitária, tendo idade para ser seu avô.

Quando Drenka (a amante) morre, Sabbath passa a ir diariamente até o seu túmulo masturbar-se (e descobre que outros amantes de Drenka fazem o mesmo). Nesse ínterim, recebe a notícia da morte de um ex-conhecido do mundo teatral (do qual Sabbath desertara há muito tempo, após o desaparecimento da primeira esposa), em Nova Iorque. Ele hesita em ir ou não prestar suas homenagens, até que, após um confronto com a atual esposa, a cerimônia fúnebre torna-se uma perspectiva atraente. E é a partir daí que Roth, como romancista, mostra que tinha todos os trunfos na manga, e pode jogar à vontade com as informações que já fornecera ao leitor, sobre o passado do seu protagonista.

Nada, absolutamente nada, é desperdiçado no livro. Tudo oferece chance para cenas brilhantes e impagáveis, na qual Sabbath destila sua sexualidade politicamente incorreta e afrontosa. Perto dele, Larry Flint é um rapaz bem-comportado. Nunca convide Sabbath para passar a noite em sua casa, leitor. Ele pode ocupar seu tempo vasculhando a roupa íntima das suas filhas, masturbando-se com as calcinhas delas ou fazendo propostas indecentes à sua esposa.

Demolindo a caretice e o conformismo triunfantes nos tempos modernos (e que se acreditava terem sido deixados para trás), a obra-prima de Roth faz com que Sabbath sempre fique no limite do intolerável, do inconveniente, do inapropriado. Herói de uma incipiente contracultura, nos anos 50), ele é um desconforto ambulante na década de 90, uma espécie de Rei Lear da sexualidade (não faltam alusões shakesperianas em TEATRO DE SABBATH), despojado de tudo a não ser do seu pênis. Que continua dando trabalho a todos, ao dono e as pessoas que lidam com ele.

O maravilhoso em Philip Roth é que ele nunca cai na auto-indulgência com a sexualidade masculina (tal como um Charles Bukowski). Seu talento corrosivo não poupa o próprio discurso libertário e abusado do sexômano sexagenário, que, mesmo assim, vem trazer uma lufada de ar fresco e um tempero picante, com sua degradação e sua inconveniência, a nossos tempos de “sexo seguro” (e tudo o mais totalmente inseguro e líquido): “Sem esposa, sem amante, sem tostão, sem profissão, sem casa… e agora, para coroar tudo isso, em fuga. Se não fosse velho demais para voltar para o mar, se seus dedos não estivessem aleijados, se Morty tivesse sobrevivido e Nikki não fosse louca, ou se ele mesmo não fosse louco também, se não houvesse guerra, loucura, perversidade, doença, estupidez, suicídio e morte, existiria alguma chance de Sabbath estar em uma situação bem melhor”.

Philip Roth é um autor na tradição salutar de um Céline, do tipo que, sendo um rei na prosa como é, ainda assim investe boa parte do seu talento em jogar tudo aquilo que tem de ser jogado na ventilador.

Desde O legado de Humboldt (1975), de outro grande judeu, Saul Bellow, não havia um herói tão enredado em trapalhadas e tão envolvente nos escombros da sua vida afetiva e estrepolias sexuais. Como o narrador mesmo nos diz, “os 64 anos de vida de Sabbath o haviam, muito tempo antes, liberado da falsidade do bom senso”. Sabbath possui “o talento que um homem arruinado tem para cometer imprudências.. o poder de ser alguém que nada mais tinha a perder”.  Tanto é, que perto do final, quando desistiu de cometer suicídio (para o qual estava se preparando boa parte da narrativa), por motivos que só uma leitura desse romance obrigatório (como tantos outros de Philip Roth) pode esclarecer, ao provocar o filho de Drenka, um policial, para que ele o execute, ele se resume da seguinte forma: ‘Sou um cara imprudente. Para mim, também é uma coisa inexplicável. Isso substituiu praticamente tudo o mais na minha vida. Parece constituir o único objetivo do meu ser”. Melhor para nós, leitores.

(resenha publicada originalmente  em 28 de outubro de 1997, em A TRIBUNA de Santos)

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