MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

26/11/2010

“digamos… para comodidade narrativa”

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2011/11/18/um-terrivel-obstaculo-o-centenario-de-sob-os-olhos-do-ocidente-de-joseph-conrad/

https://armonte.wordpress.com/2011/11/18/joseph-conrad-medo-da-anarquia-politica-e-reconhecimento-da-anarquia-interior/

https://armonte.wordpress.com/2011/11/18/o-marido-era-o-culpado-mesmo/

https://armonte.wordpress.com/2010/10/29/o-romance-das-ilusoes-de-joseph-conrad-marlow-mar-e-memoria/

https://armonte.wordpress.com/2010/10/29/as-margens-derradeiras-aprisionados-pelo-inacreditavel/

https://armonte.wordpress.com/2010/10/31/o-fim-da-linha-para-a-aventura/

(publicada originalmente em 12 abril de 2008 em  A TRIBUNA de Santos, como resenha comemorativa dos quinze anos da minha coluna semanal)

CONRAD E A ERA NAPOLEÔNICA

Há exatamente cem anos, Joseph Conrad reuniu seis histórias numa coletânea chamada A Set of Six. Uma delas, a mais famosa, O Duelo, enfim encontra-se  traduzida no Brasil, trinta anos depois de sua bonita adaptação cinematográfica (Os Duelistas) ter revelado o estreante diretor Ridley Scott, que realizaria depois dois marcos do cinema, Alien, o oitavo passageiro e Blade runner, para depois, bem, depois…[1]

O grosso da ação se passa durante as guerras napoleônicas, no início do século XIX. Um tenente truculento e plebeu, Feraud (do sul da França), é procurado por um oficial da mesma patente (e nascido no norte, entre outras diferenças polarizadoras), o fidalgo D´Hubert, sob ordens superiores, devido a um duelo irregular com um civil que poderia virar escândalo. Ao ser detido por D´Hubert, Feraud o responsabiliza pessoalmente pela “injustiça” que estariam cometendo contra ele. A partir daí, conforme o tempo vai passando (começam a trama com 26 anos e os acompanhamos até os 40) e vão subindo de patente (até que a derrocada do império e o exílio de Napoleão arruínem a carreira de Feraud), eles se enfrentam em diversas oportunidades, com um interregno de insólita camaradagem em terras russas, num dos momentos mais penosos do exército francês.

Ninguém compreende a razão da pendenga. E se o rancor move Feraud (que fica nos calcanhares do adversário, para se igualar a ele em qualquer promoção), o sentimento de honra que faz com que D´Hubert sempre consinta nas convocações dos padrinhos para os confrontos, é a camada mais superficial para algo mais irracional e primordial.

O duelo contínuo entre ambos é um exemplo da convulsão social da França pós-revolucionária, já que a situação os iguala, o plebeu e o fidalgo. O tio da noiva de D`Hubert (um nobre do ancien régime) não compreende por que ele tem de se deixar arrastar por um sujeito que é “ninguém” (Não há qualquer razão terrena para um D´Hubert se acanalhar por causa de um duelo com uma pessoa dessa extração… essa gente não existe). Resposta: “O senhor não imagina como esse duelo é terrível para mim. E não há modo de livrar-me dele”.  

 O Duelo é mais uma volta do parafuso no fascínio de Conrad pelos dilemas cavalheirescos, e a aproximação perversa que ele fazia da honra com o descrédito e a infâmia (temas recorrentes em Lord Jim, Chance- A força do acaso ou Nostromo). De certa forma, ele se serve da mobilidade social da era napoleônica para enquadrar suas obsessões. Jorge Luis Borges, em Tema do Traidor e do Herói, uma das suas melhores e mais fantasmáticas Ficções (que, entretanto, gerou um filme muito talentoso de Bertolucci, A estratégia da aranha[2]), diz que imaginou “este argumento, que talvez escreva… Faltam pormenores, retificações, ajustes; há zonas da história que ainda não me foram reveladas; hoje, 3 de janeiro de 1944, vislumbro-a assim. A ação transcorre num país oprimido e tenaz: Polônia, Irlanda, a República de Veneza, algum Estado sul-americano ou balcânico… Digamos (para comodidade narrativa) Irlanda; digamos 1824.” Conrad fez o mesmo, mas envolveu sua fábula obsessiva com tantos detalhes realistas e com tal sentimento de época que sua “comodidade narrativa” quase nos engana completamente, assim como a do Tolstói de Khadji-Murát.

ADENDO de 2010:

Salvo engano, há atualmente três versões brasileiras de The duel: a de Julieta Cupertino para a Revan, a que foi comentada na resenha acima, a de André de Godoy Vieira, publicada pela L&PM com o título Os duelistas, decerto por causa do filme, e a de Cláudio Figueiredo (creio que a primeira delas), a qual aparece na antologia Mestre de Armas, publicada pela Companhia das Letras (em abril de 2007), e que reúne seis histórias que orbitam em torno da questão do duelo: além da de Conrad, histórias de Arthur Schnitzler, Maupassant, Heinrich von Kleist, Turguêniev e Nabokov.

Abaixo uma mostra de cada uma delas:

 

O general d`Hubert foi para casa com passos largos, apressados, mas de forma alguma enaltecido por um sentimento de triunfo. Ele havia conquistado, e no entanto não lhe parecia ter ganho muito com sua conquista. Na noite anterior reconhecera de má vontade o risco de sua vida, que lhe parecia magnífica, digna de ser preservada como uma oportunidade de ganhar o amor de uma jovem. Houve momentos em que, por uma maravilhosa ilusão, esse amor já parecia ser seu e sua vida ameaçada, uma oportunidade ainda mais magnífica de dedicação. Agora que sua vida estava salva, ela subitamente perdera sua magnificência especial. Em vez disso, adquirira o aspecto especialmente alarmante de uma cilada para a exibição do seu desmerecimento.  Quanto à maravilhosa ilusão de amor conquistado, que o visitara por um momento na sagrada vigília da noite anterior—que poderia ser a sua última noite no planeta—,ele compreendia agora a sua verdadeira natureza. Fora apenas um paroxismo de amor-próprio delirante. Assim, para esse homem, a quem a vitória num duelo havia devolvido a moderação, a vida mostrou-se destituída de encanto, simplesmente porque não estava mais ameaçada”. (versão de Julieta Cupertino);

“O general D´Hubert voltou para casa a passos largos e apressados, de modo algum enaltecido pela sensação de triunfo. Saíra vitorioso e, contudo, tinha a impressão de que não lucrara muito com sua vitória. Na noite anterior, lamentara ter de arriscar uma vida que lhe parecia magnífica, digna de ser preservada, em nome da oportunidade de conquistar o amor de uma jovem. Experimentara momentos em que,  por força de uma maravilhosa ilusão, esse amor parecia já lhe pertencer, e a vida ameaçada, uma oportunidade ainda mais magnífica  de devoção. Agora que estava salva,  perdera de súbito sua especial magnificência. Em contrapartida, adquirira o aspecto  particularmente alarmante de uma cilada preparada para expor a própria indignidade. Quanto à maravilhosa ilusão de amor conquistado que o visitara por alguns instantes em meio à agitada vigília da noite—noite que bem poderia ter sido sua última na Terra—,ele compreendia agora a sua verdadeira natureza. Não havia sido mais que o paroxismo de sua vaidade delirante. De modo que para esse homem, tornado sóbrio pelo desfecho vitorioso de um duelo,  a vida afigurava-se despojada de seu encanto simplesmente por já não estar ameaçada”. (versão de André de Godoy Vieira);

“O general D´Hubert caminhava de volta para casa com passadas largas e apressadas, de modo algum animado por uma sensação de triunfo. Ele havia sido vitorioso, mas ainda assim não lhe parecia que tinha conquistado muito com sua vitória. Na noite anterior ele havia reconhecido que valia a pena preservar o risco que sua vida corria—e lhe parecia muito grande—como oportunidade para conquistar o amor de uma jovem. Ele tinha vivido momentos em que, graças a uma maravilhosa ilusão, esse amor já parecia ser seu, e sua vida ameaçada, uma oportunidade ainda mais magnífica de devoção.  Agora que estava salva, sua vida de repente tinha perdido sua grandeza especial. Em vez disso, havia adquirido a aparência, especialmente alarmante, de uma cilada para revelar o quanto era sem valor.  Quanto à maravilhosa ilusão de um amor conquistado que o havia visitado por um momento durante a agitada vigília à noite, que bem poderia ter sido sua última na Terra,  ele agora compreendia sua verdadeira natureza. Tinha sido apenas o paroxismo  de uma presunção delirante. Assim, para esse homem, tornado sóbrio  pelo desfecho vitorioso de um duelo, a vida surgia agora despida do seu encanto, simplesmente porque não estava mais ameaçada”. (versão de Cláudio Figueiredo).


[1] Confesso que não acho que o filme reproduza a intensidade e força do texto. Já não o achava o rival que diziam à altura do Barry Lindon de Kubrick, e depois de ler a novela, essa opinião se fortaleceu. Antes, porém, eu cheguei a atribuir certa ligeira tibieza da versão de Scott por conta da falta de carisma e presença de Keith Carradine, como D´Hubert, um ator que nunca me convenceu muito, principalmente quando jovem. Mas se pensarmos que no filme de Kubrick o astro é o também insosso Ryan O´Neal e isso não compromete em nada a densidade da história….

[2] Que só não é irretocável por causa daquelas esquisitices que parecem fazer parte de todos os filmes de Bertolucci, até os melhores. No caso, me incomoda a composição da personagem de Alida Valli, que em certos momentos beira o ridículo. No mais, o filme é brilhante, especialmente o final.

Blog no WordPress.com.