(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 25 de abril de 1993)
– notas e anexos são todos de 2014
Numa batalha, o Visconde de Terralba é dividido ao meio por uma bala de canhão. Uma metade volta à terra natal e comete as maiores atrocidades. Anos depois aparece a outra metade e aí…
Aos 12 anos, para contrariar o pai, o Barão de Rondó sobe nas árvores e resolve não mais descer. Passam-se anos, ele cumpre sua decisão à risca, mas não deixa de se envolver nos acontecimentos de sua época, até que surge um balão e aí…
Um cavaleiro se apresenta ao exército de Carlos Magno, porém não há nada sob a armadura, somente uma poderosa vontade de lutar, vontade inconveniente que se intromete na vida de todos e gera muita confusão, principalmente quando insiste na virgindade de uma donzela cujo filho, entretanto, entra em cena e aí…
Essas são as insólitas situações da trilogia Os nossos antepassados, de Italo Calvino (1923-1985), que, com o lançamento (pela Companhia das Letras) este mês do último volume, O cavaleiro inexistente, reaparece completa nas nossas livrarias, vinte anos depois de uma outra tradução circular no Brasil[1]. Escrita nos anos 1950, é uma obra-prima da ficção, pois trata praticamente de todos os assuntos que sempre interessaram ao ser humano.
Calvino orquestra uma dança das ideias contrárias que formaram o homem como ele é ainda hoje (pelo menos, o ocidental). Embora a trilogia pare no limiar da Revolução Industrial e aborde basicamente o mundo feudal e rural, o próprio título indica que nós somos herdeiros de tudo o que está ali contado. E muito bem contado. O grande escritor italiano tem um estilo luminoso e maleável, cheio de vivacidade, humor, misturando fábula e realismo-chão, discussões filosóficas profundas e o desbocamento popular que faz o sabor da literatura e do cinema italiano.
O primeiro volume, O visconde partido ao meio, narrado pelo sobrinho do herói-vilão, instaura o compasso dessa dança e conta como é mais difícil viver (dentro das nossas rotinas e padrões) sob a inspiração do “Bem” absoluto do que sob o jugo do “Mal” absoluto, já que a parte quixotesca do Visconde atrapalha os lucros o que é mais imperdoável para o senso comum do que a tirania.
O barão nas árvores (título chocho, quando “O barão empoleirado” seria mais engraçado e fiel ao espírito do autor[2]) é narrado pelo irmão do protagonista, homem comum, quase medíocre, e o contraste dos destinos de ambos é que dá um tom comovente, o mais “humano” entre os três, e o único que apresenta uma situação estranha, mas não fantástica. Nele aparece Voltaire como personagem; ao saber que o barão é uma pessoa civilizada que prefere viver nas árvores, ele afirma: “Outrora somente a Natureza criava os fenômenos vivos, agora é a Razão”.
O cavaleiro inexistente é, possivelmente, o mais genial e arrojado estilisticamente. Narrado por uma freira em clausura que depois se revela uma das personagens principais, tem um final surpreendente, que ao mesmo tempo se contrapõe à desilusão do primeiro volume e à resignação do segundo, e as antecipa, uma vez que transcorre num tempo anterior ao deles. Só não se diz aqui porque é feio contar o fim dos livros, e esse vale a pena descobrir sozinho. E aí…
TRECHO SELECIONADO
– de O visconde partido ao meio:
“Mas de todas as partes começavam a chegar notícias de uma dupla natureza de Medardo. Crianças perdidas no bosque eram trazidas, cheias de medo, pela metade do homem, com sua muleta, que as levava pela mão de volta às suas casas e as regalava com flores e guloseimas; pobres viúvas eram por ele ajudadas a carregar lenha; cães mordidos pelas vespas eram curados, donativos misteriosos eram encontrados pelos pobres no peitoril de suas janelas e nas soleiras de suas casas, árvores frutíferas atingidas pelo vento eram reparadas e fincadas novamente no chão antes mesmo que seus proprietários tivessem posto o nariz fora da porta (…) de repente começaram a aparecer no céu andorinhas com as patilhas atadas por fibras de árvores, ou com as asas grudadas e coladas; e em todo um bando de andorinhas assim ligadas entre si que voavam juntas e com prudência, como se fossem convalescentes de um hospital de pássaros, e, inverossimilmente, se dizia que o próprio Medardo era o médico que assim as tratava…” (na versão de Joel Silveira, 1970).
“Contudo, começavam a chegar notícias de vários lugares sobre a dupla natureza de Medardo. Crianças perdidas no bosque eram alcançadas pelo meio-homem de muleta e, apavoradas, eram levadas por sua mão até em casa e dele recebiam figos e filhós; pobres viúvas eram ajudadas por ele ao transportarem molhos de lenha; cães mordidos por víboras eram tratados, presentes misteriosos eram encontrados pelos pobres nos peitoris das janelas e nas soleiras das portas, árvores frutíferas arrancadas pelo vento eram endireitadas e escoradas antes que os proprietários saíssem de suas casas (…) Contudo, agora começavam a aparecer no céu andorinhas com as patinhas enfaixadas e presas a talas, ou com as asas coladas ou emplastadas; havia todo um bando de andorinhas cuidadas desse modo que voavam juntas e com prudência, como se fossem convalescentes de um hospital de passarinhos, e, coisa inacreditável, comentava-se que o próprio Medardo era o médico delas…” (na versão de Wilma Freitas Ronald de Carvalho, 1988)
“Mas começaram a chegar notícias de várias fontes sobre uma natureza dupla de Medardo. Crianças perdidas no bosque, cheias de medo, eram abordadas pelo homem de muleta, que as conduzia para casa pela mão e lhes oferecia figos e bolinhos fritos; viúvas pobres eram ajudadas por ele a carregar lenha; cães picados por cobras eram tratados, presentes misteriosos eram encontrados pelos pobres nos parapeitos e nos portais, árvores frutíferas arrancadas pelo vento eram replantadas e fixadas em seus canteiros antes que os proprietários pusessem o nariz fora da porta (…) Contudo, agora podiam ser vistas no céu andorinhas com as patas enfaixadas e amarradas com gravetos de apoio ou com as asas coladas e com curativos; havia um bando de andorinhas assim ataviadas que voavam com prudência todas juntas, feito convalescentes de um hospital de passarinhos, e inverossimilmente dizia-se que o próprio Medardo era o médico…” (na versão de Nilson Moulin, 1996)
– de O barão rompante/O barão nas árvores:
“Naqueles dias Cosimo costumava desafiar frequentemente as pessoas que estavam lá embaixo, no chão. Desafio de pontaria, de destreza, talvez para mostrar suas possibilidades e tudo o que podia fazer lá em cima. Desafiou os pequenos ladrões para atirar pedras. Estavam naqueles lugares próximos à Porta Capperi, no meio dos barracos dos pobres e dos vagabundos. Cosimo praticava com as pedras, quando viu aproximar-se um homem a cavalo, alto, um tanto curvo, envolto num manto negro. Reconheceu logo nosso pai. A garotada fugiu e as mulheres olhavam da porta dos seus casebres (…)
__ Que belo espetáculo estais dando! —começou o pai, em tom amargo— Muito digno de um gentil-homem! (Havia-lhe dado o tratamento de vós, como costumava fazer nas repreensões mais graves, mas agora tal tratamento tinha um sentido de distância, de afastamento.)
__ Um gentil-homem, senhor meu pai, continua sendo um gentil-homem quer esteja no chão, quer esteja em cima das árvores—respondeu Cosimo; e acrescentou imediatamente: —Se ele, é claro, comporta-se bem.
__ Uma boa sentença—admitiu, gravemente, o Barão—mas o fato é que, não faz muito, roubaste cerejas de um dos nossos inquilinos…” (na versão de Joel Silveira, 1971)
“Naqueles dias, Cosme muitas vezes desafiava quem estava no chão, desafios de pontaria, de destreza, inclusive para testar suas possibilidades, até onde conseguia chegar estando lá em cima. Desafiou os moleques para o jogo de malha. Encontravam-se naqueles lugares próximos da Porta das Alcaparras, entre os barracões dos pobres e dos vagabundos. De uma azinheira seca e despojada, Cosme estava jogando malha, quando viu aproximar-se um homem a cavalo, um tanto curvado, envolto num manto negro. Reconheceu seu pai. O bando se dispersou; das entradas das barracas as mulheres ficaram observando (…)
__ Que belo espetáculo ofereceis!—começou o pai, amargamente—É de fato digno de um gentil-homem! (Tratara-o por vós, como fazia nas críticas mais graves, mas então aquele uso teve um sentido de distância, de afastamento)
__ Um gentil-homem, senhor pai, merece esta condição tanto na terra como em cima das árvores—respondeu Cosme. E logo acrescentou: —Se se comporta corretamente.
__Uma sentença justa—admitiu gravemente o barão—, contudo, agora mesmo, estáveis a roubar ameixas a um arrendatário…” (na versão de Nilson Moulin, 1993)
-de O cavaleiro inexistente:
“Para contar como desejaria, seria preciso esta página branca se iriçasse de rochedos vermelhos, se reduzisse a uma areia fina e espessa, cheia de pedras, e nela crescesse uma vegetação de zimbros. No meio, onde serpenteia um caminho mal traçado, farei passar Agilulfo, ereto em sua sela, a lança em riste. Mas não é tudo este campo, pois esta página deveria ser, ao mesmo tempo, a cúpula do céu estendida sobre papel, tão baixa que no espaço entre folha e céu haja apenas espaço para um voo de corvos grasnantes. Com a pena, deverei conseguir riscar a folha, mas cm leveza, porque no prado deve figurar o percurso do rastejar de uma cobra invisível, e o barco atravessado por uma lebre que agora se faz visível, para, fareja em redor com os seus pequenos bigodes, e logo desaparece.
Cada coisa se move na página lisa sem que se veja nada, sem que nada mude em sua superfície, da mesma maneira como, no fundo, tudo se move e nada muda na rugosa crosta do mundo, porque há só camada dessa mesmíssima matéria, exatamente como a folha na qual escrevo, uma camada que se contrai e se aglomera em formas e consistências diversas em várias tonalidades de cores, mas que, no entanto, pode representar-se espalmada sobre uma superfície plana, mesmo nos seus aglomerados pilosos ou emplumados ou nodosos como uma carapuça de tartaruga, e uma tal pilosidade ou plumagem ou nodosidade às vezes parecem se mover, ou melhor, são cambiantes de relações entre as várias espécies dispostas em volta da camada de matéria uniforme, sem que substancialmente nada deixe o seu lugar. Podemos dizer que o único que certamente cumpre uma finalidade em meio a tudo isso é Agilulfo, e não falo do seu cavalo, não falo da sua armadura, mas de qualquer coisa de solitário, de preocupado consigo mesmo, de impaciente, que está viajando a cavalo dentro da armadura…” (na versão de Joel Silveira, 1970)
“Para escrever como gostaria, seria preciso que esta página branca se tornasse dura de rochas avermelhadas, se desfizesse numa areiazinha espessa e pedregosa, e aí crescesse uma densa vegetação de zimbros. No meio, onde serpenteia um caminho irregular, faria passar Agilulfo, ereto na sela, de lança em riste. Mas além de paisagem rupestre essa página deveria ser ao mesmo tempo cúpula de céu achatada aqui em cima, tão baixa que no meio só haveria lugar para um voo grasnante de corvos. Com a pena eu teria de chegar a incidir sobre a folha, mas com leveza, pois o prado deveria surgir sendo percorrido pelo deslizar de uma serpente invisível na grama, e o bosque atravessado por uma lebre que agora desemboca na clareira, se detém, fareja ao redor com os bigodes curtos, já desapareceu.
Cada coisa se move na página lisa sem que se veja nada, sem que nada mude em sua superfície, como no fundo tudo se move e nada muda na crosta rugosa do mundo, pois só existe uma extensão da mesma matéria, exatamente como a página em que escrevo, uma extensão que se contrai e se decanta em formas e consistências diversas e em vários matizes mas que ainda pode se representar espalmada numa superfície plana, inclusive em seus aglomerados pilosos, cheios de penugens ou nodosos como um casco de tartaruga, e tal pilosidade, penudez ou nodosidade às vezes parece que se mexe, ou seja, há mudanças das relações entre as várias qualidades distribuídas na dimensão da matéria uniforme ao redor, sem que nada se desloque substancialmente. Podemos dizer que o único que de fato efetua uma deslocação aqui é Agilulfo, não digo o seu cavalo, não digo a sua armadura, mas aquele algo sozinho, preocupado consigo mesmo, impaciente, que está viajando a cavalo dentro da armadura…” (na versão de Nilson Moulin, 1993).
[1] A verdade é que há uma certa imprecisão informativa na resenha acima. A Companhia das Letras lançou em 1993 O barão nas árvores & O cavaleiro inexistente. Só em 1996, apareceu pela editora O visconde partido ao meio (como os outros, traduzido por Nilson Moulin). Eles foram reunidos numa volume único, Os nossos antepassados, em 1997.
Mas à época em que eu escrevia, ainda podia se encontrar nas livrarias uma versão de Wilma Freitas Ronald de Carvalho para O visconde partido ao meio, publicada pela Nova Fronteira (1988). É nesse sentido que me refiro à trilogia reaparecer completa.
Tive a sorte pessoal de, após ler um texto alentado sobre Italo Calvino no Suplemento Cultural (publicado aos domingos) do Estadão, descobrir numa papelaria Se um viajante em uma noite de inverno, e logo a seguir, num sebo, os três volumes da trilogia na edição da Expressão e Cultura, todos em versão de Joel Silveira: O visconde partido ao meio e O cavaleiro inexistente (1970), O barão rompante (1971). As bases de uma paixão pelo autor italiano, e ainda talvez por isso, meus títulos favoritos.
VER AQUI NO BLOG:
https://armonte.wordpress.com/2010/11/28/o-leitor-aventureiro-de-italo-calvino/
e também:
https://armonte.wordpress.com/2010/11/28/sintonia-e-focalizacao-em-marcovaldo-e-palomar/
Quanto ao original italiano, Il visconte dimezzato apareceu em 1952; Il barone rampante, em 1957; Il cavalieri inesistente, em 1959. Como trilogia, I nostri antenati, em 1960.
[2] O fato é que não dá para comparar nenhuma solução brasileira à expressividade dos títulos originais de Il visconte dimezzato nem Il barone rampante (a solução para este, em Portugal, é uma pândega para ouvidos brasileiros: “O barão trepador”), que me perdoe O barão rompante, melhor no entanto que O barão nas árvores.