MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

26/11/2013

Destaque do Blog: NOVEMBRO DE 63, de Stephen King

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“Tem algo funcionando, certo? Em algum lugar do universo (ou atrás dele), uma grande máquina faz tique-taque e gira as suas engrenagens fabulosas…”

“(…) dei uma última olhada no Book Depository. Ele me olhava. Não tive dúvidas. É claro que terminaria ali, eu fora idiota de imaginar outra coisa…”

(trechos de Novembro de 63)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de novembro de 2013)

Li bastante Stephen King no correr dos anos em que os títulos que persistem como referência na sua obra eram lançados no Brasil: The Shining-O iluminado, Zona Morta, O Cemitério, It-A Coisa e aquele que considero um de seus dois maiores romances: The Stand-A dança da morte (os dois primeiros ainda tiveram fantásticas versões cinematográficas, assim como Carrie, Christine, e A Metade Negra, todos pertencentes a essa primeira fase).

A seguir, um longo intervalo de desinteresse: por um lado, a conclusão de que (com as devidas exceções) ele melhor armava as suas fábulas do que as resolvia, estragando, por exemplo, O Iluminado e O cemitério; por outro, um excesso de títulos, livros incrivelmente volumosos, e o mais das vezes com adaptações para cinema e televisão tão ruins que não instigavam a conhecer o material original, mesmo porque o autor estava comprometido com as produções dessa lixarada; sendo assim, como levá-lo a sério?

E então me caiu nas mãos Sob a Redoma: como expliquei na semana passada, todos os defeitos de King estão ali presentes, porém mitigados e até redimidos pela criação de um universo ficcional autônomo e poderoso. O entusiasmo por essa leitura me fez embarcar de pronto em Novembro de 63 [que comento na tradução de Beatriz Medina], cujo lançamento no Brasil coincide com os 50 anos do mítico assassinato de John F.  Kennedy. No embarque, porém, levava na mala reservas quanto à possibilidade de funcionar, ou mesmo apresentar alguma novidade, uma narrativa de 700 páginas em 1ª. pessoa (Sob a Redoma se movimentava entre o ponto de vista de diversos personagens) narrando uma viagem no tempo.

Jake Epping frequenta um trailer de lanches de má-fama quanto à origem da carne que serve (os preços são baratos demais). Ele descobre que o dono, Al Templeton, é um viajante do tempo através de uma passagem (que pode estar em vias de desaparecer) na minúscula despensa do estabelecimento. Toda vez que se volta dessas excursões pretéritas só se passaram dois minutos (o viajante, entretanto, envelheceu durante o período transcorrido “do outro lado”).

Sempre se pisa no passado na mesma data (9 de setembro de 1958) e Al viveu ali os 5 anos que o separavam do crime de Lee Harvey Oswald, com o intuito de salvar o presidente, mas foi derrotado pela idade e pelo câncer de pulmão. Ele confia a missão ao ainda jovem Jake (35 anos); este, além de Kennedy, espera salvar a família do zelador da escola, Harry Dunning, massacrada na noite de Halloween de 1958 (em Derry, a mesma cidadezinha com atmosfera maligna de It-A Coisa).

Enquanto vigia ao longo desses 5 anos os movimentos de Oswald (repatriado, depois de um período na Rússia, trazendo uma esposa de lá, a quem maltrata), Jake atua como o professor de high school e candidato a escritor George Amberson, em Jodie, próxima a Dallas. E apesar do título do romance (no original, lançado nos EUA em 2011, com a data fatídica: 11/22/63) e das tremendas ressonâncias simbólicas (paranoicas e conspiratórias) da morte do presidente, o que faz de Novembro de 63 uma obra-prima (é o outro romance maior de Stephen King, junto com o já referido A dança da morte), que não faz feio junto aos melhores romances de Joyce Carol Oates, Philip Roth, Cormac MacCarthy ou E. L. Doctorow, além da inspirada “voz” narrativa de Jake (um triunfo do veterano escritor) é justamente a imersão do narrador nas vidas dessas duas localidades, Derry e Jodie (a parte da narrativa em que espreita a família Oswald numa quase favela de Fort Worth, e depois em Dallas também é sensacional)[1].

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Nós, leitores, praticamente vivemos com ele esses anos todos. É de assombrar a vividez com que esses lugares e os mais diversos personagens, entre reais e imaginários (que a princípio seriam mera preparação para o evento crucial) nos mergulham num painel histórico-afetivo (mas nada mistificatório quanto ao passado[2]) memorável.

Só tenho duas reclamações dignas de nota: uma delas é que, num romance tão inteligente e tão evocativo, não era preciso trazer à baila o batidíssimo “efeito-borboleta” e aquele indefectível exemplo (a borboleta batendo asas e provocando um terremoto)[3]. As próprias “harmonias” (a compensação de um evento modificado pelo viajante do tempo numa similaridade), tão minuciosamente exploradas, bastariam por si sós (Al acreditava que cada vez que se voltava para o passado, tudo voltava a um ponto zero, e aparentemente é assim—mas ele não poderia estar mais enganado, como Jake descobre[4]); a outra, é contra todas as páginas com as atividades afirmativas do professor George que me lembraram a xaroposa Glee (ou seja, a high school como preparação para um show da vida metafórico).

Jake é um narrador tão especial[5], e viver nesses 5 anos entre 1958 e 1963 é uma experiência tão forte para o leitor, que tais minúcias nem contam. A evocação do tempo perdido ainda se dá ao luxo de apresentar um final romântico (segundo King, por sugestão do filho) absolutamente irretocável, em seu entrelaçamento do poder do efêmero e do sentimento do irrecuperável: “Por um instante tudo ficou claro e, quando isso acontece, a gente vê que o mundo mal existe. Em segredo, todos não sabemos disso? É um mecanismo de gritos e ecos que se equilibra com tanta perfeição fingindo ser rodas e engrenagens, um relógio de sonhos que toca atrás de um vidro de mistério que chamamos de vida. Atrás? Embaixo e em volta? Caos, tempestades. Homens com martelos, homem com facas, homens com armas de fogo. Mulheres que distorcem o que não podem dominar e desdenham o que não conseguem entender. Um universo de perda e horrores a cercar um único palco iluminado onde os mortais dançam em desafio às trevas…”

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/11/22/adaptacoes-de-stephen-king/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/19/sob-a-redoma-e-a-maturidade-de-um-mestre-stephen-king/

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TRECHO SELECIONADO

“Tive duas vidas no final de 1962 e no começo de 1963. A boa era em Jodie (…) A outra era em Dallas.

    Oswald e Marina voltaram. Em Dallas, a primeira parada deles foi numa lata de lixo na esquina da West Neely. Mohrenschildt os ajudou na mudança. George Bouhe não estava visível. Muitos menos os outros emigrados russos. Lee os afastara. Eles o odiavam, escrevera Al nas suas anotações, e embaixo: Era  que ele queria.

    O prédio decadente de tijolos vermelhos na rua Elbeth, 604, fora dividido em quatro ou cinco apartamentos lotados de gente pobre que trabalhava muito, bebia muito e produzia hordas de crianças catarrentas a berrar. O lugar realmente fazia o domicílio dos Oswald em Fort Worth parecer bom.

   Eu não precisava de auxílio eletrônico para monitorar o estado de decomposição do casamento deles (…) Certo dia, em novembro de 62, voltei da biblioteca e observei Lee e Marina na esquina da West Neely com a Elsbeth, gritando um com o outro. Várias pessoas (principalmente mulheres àquela hora do dia) tinham saído á varanda para observar (…) Eles discutiam em russo, mas o mais recente pomo da discórdia era bastante claro com o dedo apontado de Lee. Ela usava uma saia preta reta—não sei se naquela época já se chamavam saia-lápis—e o zíper do lado esquerdo estava meio aberto. Provavelmente só s e prendera no tecido, mas ao ouvi-lo furioso a gente ficava com a impressão de que ela estava caçando homens.

    Ela jogou o cabelo para trás, apontou June e depois fez um gesto na direção da casa que agora habitavam—as calhas quebradas pingando água preta, o lixo e as latas de cerveja no gramado careca na frente—e grito com ele:

__ Você diz mentiras alegres depois traz mulher e filha para essa pocilga!

    Ele corou até a raiz do cabelo e cruzou os braços com força sobre o peito magro, como que se quisesse ancorar as mãos e impedir que causassem danos. Poderia ter conseguido—dessa vez, pelo menos—se ela não tivesse rido e depois girado um dedo em torno da orelha num gesto que deve ser comum a todas as culturas. Ela começou a se virar. Ele a puxou de volta, esbarrando no carrinho e quase o derrubando. Então bateu com força.  Ela caiu na calçada rachada e cobriu o rosto quando ele se curvou sobre ela.

   (…)

__ Aquele homem está batendo na mulher! Vá até lá e dê um fim naquilo!

__ Não, senhora—disse eu. A minha voz estava instável. Pensei em acrescentar: Não vou me meter entre marido e mulher. Mas era mentira. A verdade é que eu não faria nada que pudesse perturbar o futuro.

__ Seu covarde—disse ela.

   Chame a polícia, eu quase falei, mas engoli bem na hora. Se essa ideia não estivesse na cabeça dela e eu a pusesse lá, também poderia mudar o rumo do futuro. A polícia veio? Alguma vez? O caderno de Al não dizia. Eu só sabia que Oswald nunca seria preso por agressão conjugal. Acho que naquela época e naquele lugar poucos homens seriam.

   Ele a arrastava pela calçada com uma das mãos e empurrava o carrinho com a outra. A velha me deu um último olhar arrasador e depois voltou com esforço para dentro de casa. Os outros espectadores faziam o mesmo. Fim do espetáculo…”

jacqueline


[1] E ainda bem que é assim, já que não sou particularmente fã da figura de Kennedy, tal como não sou entusiasta de Obama. A meu ver, ambos foram as opções aceitáveis frente ao pior, mas ficaram muito aquém da mítica em torno deles.

[2] Por exemplo, na caracterização da atmosfera de Derry: “Eu estacionara diante da drogaria e parei para examinar o cartaz na vitrine. De certo modo, ele resume melhor do que tudo o que eu sinto sobre Derry—a desconfiança azeda, a sensação de violência malcontida—embora eu ficasse lá quase dois meses e (com a possível exceção  de algumas pessoas que conheci por acaso)  não gostasse de nada ali. O cartaz dizia:

FURTAR EM LOJAS NÃO É BACANA, NÃO É UM COLOSSO, NÃO É BATUTA,

FURTAR EM LOJAS É CRIME E CHAMAMOS A POLÍCIA!”

    Outro exemplo, ainda mais eloquente:

“Na Carolina do Norte, parei para abastecer num posto Humble Oil e depois dei a volta para usar o banheiro. Havia duas portas e três placas: HOMENS estava escrito com letras cuidadosamente pintadas com estêncil numa das portas, DAMAS na outra. A terceira placa era uma seta numa vara. Apontava a encosta coberta de mato atrás do posto. Dizia DE COR. Curioso, andei pelo caminho, com cuidado para contornar alguns pontos onde as folhas oleosas de sumagre-venenoso, num verde fugindo para o marrom, eram inconfundíveis. Torci para que os papais e mamães que pudessem levar os filhos até aquelas instalações lá embaixo soubessem identificar o que eram aqueles arbustos problemáticos, porque no final dos anos 1950 a maioria das crianças usava calças curtas.

    Não havia nenhuma instalação. O que encontrei no fim do caminho foi um riachinho estreito com uma tábua atravessada em cima, sobre dois suportes de concreto dilapidado. O homem que precisasse urinar podia apenas ficar à margem, baixar o zíper e deixar sair. A mulher poderia se segurar num arbusto (supondo que não fosse urtiga nem sumagre-venenoso) e se agachar. A tábua era onde a gente se sentava se tivesse de cagar (…) Se lhe dei a ideia de que 1958 era perfeito como uma seriado de televisão, basta lembrar daquele caminho, ok? Aquele ladeado de sumagre-venenoso. E a tábua sobre o riacho…”

novembro 63

[3] Isso tudo já foi vulgarizado há 20 anos, com Jurassic Park, tanto o livro de Crichton quanto o filme de Spielberg e, depois, multiplicado em mil histórias, basta lembrar justamente do filme Efeito Borboleta ou do mais recente Contra o tempo.

No romance de King, como nos diz o narrador, o “passado resiste a ser mudado”, o que cria as compensações harmônicas: “Sentia saudades de Sadie e comecei a me preocupar com ela quase obsessivamente. Pensando melhor, pode riscar o quase. Ellie Dockerty e Deke Simmons não levaram a sério a minha preocupação com o marido dela. A própria Sadie não a levou a sério (…) Nenhum deles sabia do efeito harmônico que eu mesmo parecia criar apenas com a minha presença na Terra de Antigamente? Sendo assim, de quem seria a culpa se algo acontecesse a Sadie?”

[4] “Cada viagem cria a sua própria corda, e quando há cordas suficientes, elas se embaralham. Será que passou pela cabeça do seu amigo  por que podia comprar a mesma carne várias vezes? Ou por que as coisas que levava de 1958 nunca sumiam quando fazia a viagem seguinte?”

[5] Gosto muito da “conversa” de Jake com seu leitor, a meu ver, o produto mais apurado de King na arte de narrar, colaborando—mais do que qualquer outro elemento—para dar ao relato seu poder de “convencimento”: “Conheço o básico da ficção de suspense—tenho de conhecer, já li suspense suficiente na minha vida—e a regra básica é manter o leitor tentando adivinhar. Mas, se você já entendeu o meu personagem com base nos fatos extraordinários daquele dia, sabe que eu queria ser convencido (…) Eu tinha um emprego e era bom nele, mas se lhe dissesse que era um desafio estaria mentindo. Viajar de carona pelo Canadá com um colega depois do último ano de faculdade foi a coisa mais próxima de uma aventura que eu já vivera e, dada a natureza alegre e solícita da maioria dos canadenses, não foi tão aventurosa assim. Agora, de repente, me ofereciam a oportunidade de me tornar o personagem principal não da história americana, mas da história do mundo. Portanto, sim, sim, sim, eu queria ser convencido.”

Há colocações geniais, como na passagem em que, às vésperas do crime de Oswald, Jake se refugia na sórdida casa em que o assassino de Kennedy viveu certo tempo com a família em Fort Worth: “Eu estava sentado na sala da frente, escutando os fantasmas briguentos de gente que ainda vivia”.

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