MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

18/01/2014

DE CU PRA LUA: sabores e dissabores da obra de João Ubaldo Ribeiro

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“Diabo,  quem manda na pessoa é a pessoa –não  é a pessoa que manda na pessoa? Não, nem sempre, e por isso se diz  ´ninguém se faz´, pois ninguém se faz mesmo, já nasce com sua natureza.”

      Minha reação inicial diante de um título como O Albatroz azul, foi de desagrado (mesmo porque ele tem uma das capas mais feias dos últimos anos), mais ou menos como a que tive com O Voo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende; este último, porém, apesar do título “pitoresco” e “folclórico”, revelou-se um dos melhores romances desta década. E o novo de João Ubaldo Ribeiro?

O protagonista é Tertuliano, macróbio morador da Ilha de Itaparica e filho de Juvenal Peixoto do Amaral Viana Botelho Gomes, deixado pelo pai, o português viúvo Nuno Miguel (que enriquecera no Brasil, todavia sempre se manteve saudoso da pátria), aos cuidados dos padrinhos. Após a morte do marido, a madrinha Ia Cencinha (cuja relação com Juvenal faria as delícias de um Freud: “E haveria a cerimônia em que ela se tornaria novamente madrinha dele, por assim dizer mãe duas vezes, e ele receberia o sacramento, seria um homem completo, um homem casado… No dia do casamento,  quem vai te dar teu banho sou eu, tua madrinha que te criou, desde menino que não te dou um banho e esse vai ser o último que vou poder te dar, porque depois de casado já não fica bem, já passam a deitar vistas maldosas, disse ela com o olhar fixo nele, e ele ficou um  momento sem saber o que dizer ou como se mexer”) permite ao afilhado que coabite alternadamente com as duas filhas, Catarina e Albina.

Nuno Miguel, à morte em Portugal, convoca o filho à sua presença, ou trazendo uma esposa legítima ou então preparado para um matrimônio acertado pelo pai. Ia Cencinha, com medo de perder o patrimônio do compadre, decide que Juvenal deve legalizar sua união com uma das filhas. A escolhida é a mais “ajuizada” e cordata, Catarina, em detrimento da rebelde e opiniática Albina, a mãe de Tertuliano. Acontece que Juvenal tem especial predileção por esse filho, e ele e a madrinha resolvem então que, a partir do casamento com Catarina e os trâmites com o pai moribundo, Tertuliano passará a ser filho da esposa legítima e não da verdadeira mãe.

Só que ele se recusa a ceder aos desejos do pai e acarreta uma cisão no arranjo que a madrinha criara (“Que família mais sólida podia existir?, se pergunta ela a certa altura). O resultado: a banda de Albina (que morre de desgosto) se torna pária, pobre e bastarda. E Tertuliano, mesmo respeitado e venerável, evita tocar no assunto. Até que sua uma das suas filhas, que sempre pariu meninas, está grávida novamente e ele recebe a inspiração de que dessa vez, contrariando os prognósticos até da experimentada parteira, virá um neto e que este terá um destino glorioso. Tanto que Tertuliano se azafama para lhe dar um nome de santo digno: Raymundo Penaforte. O vaticínio parece se cumprir quando, na hora do parto, o neto nasce de bunda, em plena lua cheia, fazendo valer o famoso dito dos nascidos de cu pra lua… Mas talvez o avô, que fora privado da vida que devera ter, tenha de pagar com a própria existência o destino do neto…

Como se vê, não falta engenho à trama de O Albatroz azul (e que personagem é Ia Cencinha!) e o estilo de João Ubaldo Ribeiro está tão afiado, que nos imerge até nas minudências (nada enfadonhas) da escolha do nome do neto de Tertuliano. Cada fio é amorosamente entretecido pelo dono de uma das melhores prosas da nossa literatura. Mesmo assim, como acontece amiúde na sua obra, a coisa desanda e o resultado decepciona.

Nas suas primeiras e memoráveis obras, como Sargento Getúlio (1971), Vila Real (1979)  Livro de Histórias (1981) havia um equilíbrio entre prosa e fabulação que nunca mais foi alcançado. Viva o Povo Brasileiro (1984) e O sorriso do lagarto (1989) são experiências ambiciosas, importantes, todavia  irregulares, com altos e baixos (mais os últimos que os primeiros, a meu ver).  Depois, parecia que ele havia capitulado à mistura exotismo-erotismo-esoterismo, à literatura sestrosa dos trópicos consumida pelo primeiro mundo, e equivalente às telenovelas regionais, no muito longo e muito fraco O feitiço da ilha do pavão (1997), e se tornado um escritor de segunda. A força parecia ter voltado (e de fato, a maior parte do livro é impressionante) com Diário do farol (2002). Nas últimas páginas, infelizmente, parece ter baixado a proverbial preguiça baiana, um ritmo à Dorival Caymmi e o final do romance se mostrava apressado, desinteressante, chocho.

O mesmo efeito se observa em O albatroz azul. Preparação magnífica, cada capítulo um esmero, num estilo que nos faz pensar que, como Raymundo Penaforte, Ubaldo nasceu de bunda pra lua, ungido para a literatura como poucos. De repente, ele se cansa, termina abruptamente o livro, e ficamos pensando no destino truncado de Tertuliano. E a forçadíssima e pobre metáfora do albatroz azul parece um (Paulo) coelho tirado de uma cartola de onde se esperava que saíssem coisas mais interessantes.

Será que João Ubaldo Ribeiro nunca mais vai se interessar em escrever um livro até o fim e nos dar um romance “completo”?  

(a resenha acima foi  publicada originalmente em  A TRIBUNA de Santos, em 08 de dezembro de 2009)

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JOÃO, O BALDO

   Existe um tipo de best seller brasileiro para exportação,cuja fórmula foi fornecida pela obra de Jorge Amado e que repousa na ambientação histórica e regionalista (a modernidade urbana não deve fazer parte dos nosso universo, a não ser em forma de favela e banditismo), e na qual a libido aflora mais forte do que o poder e a religião.

João Ubaldo Ribeiro, em O feitiço da Ilha do Pavão nos dá um típico representante dessa literatura made for gringo, destinada a aliviar o tédio de países nórdicos, germânicos ou saxões,  com paisagens exuberantes, costumes exóticos e tipos femininos calientes. A ostra e o vento.

    O feitiço da Ilha do Pavão mostra uma ilha na costa da Bahia, de difícil aceso, e que por isso mesmo consegue se manter mais ou menos ao largo do poder da Coroa Portuguesa (a ambientação é colonial) e do clero, cultivando as maiores virtudes do Novo Mundo: a miscigenação das raças, o sincretismo religioso e a liberalidade de costumes. Há um vilão, o chefe de armas da principal vila da ilha, Borges Lustosa, contudo o homem mais poderoso, o Capitão Cavalo, é democrático e imparcial, o próprio homem “cordial”, “se recusando a meter-se em questões que considerava dependentes da vontade dos envolvidos, ou seja, para ele a maior parte das coisas da vida”.

Apesar da ambição e das intrigas de Borges Lustosa, o principal contratempo da história acaba sendo a impossibilidade do filho do Capitão Cavalo, Iô Pepeu, de realizar seu desejo físico pela negra Crescência, uma vez que esta se recusa a dizer certas palavras sem as quais o membro do mancebo não levanta.

Vicissitudes sexuais à parte (a ostra ficará ao vento, enfim, eis o grande suspense), há um trunfo esotérico na concepção da Ilha do Pavão (já pensou, leitor, no frisson lá fora: exotismo, erotismo e esoterismo num mesmo livro?): o Capitão Cavalo descobre uma esfera que consegue  deter o tempo e controlar o futuro. E a ilha se torna “enfeitiçada”, uma rival da Avalon de Marion Zimmer Bradley. Como todos se lembram, as brumas de Avalon nada mais eram do que o estado ambíguo do santuário druida: ele ao mesmo tempo está e não está no mundo, podendo ser visto ou não.

Graças ao Capitão Cavalo e seus amigos, acontece o mesmo com a Ilha do Pavão, a qual, assim, mantém-se a salvo das mazelas européias. E o leitor pode se deitar numa rede e espreguiçar-se gostosamente, pois tudo está bom quando acaba bem. Eta, bem bom… Nada de inquietações, só um pouquinho de agitação que é bom como tempero, mas que tudo fique mesmo na chanchada e no deboche. Que os gringos não pensem que sob os céus brasileiros haja desassossego metafísico ou dúvidas existenciais. Nada disso, basta que haja mulher pelada e o resto é silêncio.

O desperdício de O feitiço da Ilha do Pavão está no fato de que o domínio lingüístico que João Ubaldo Ribeiro demonstra da sintaxe colonial faz o leitor sonhar, a princípio, com algo como um Memorial do Convento brasileiro. Só que Saramago não se limitou apenas a utilizar um linguajar de época saboroso. O feitiço da sua linguagem  parece que condensou a essência de uma época.

Embora nem de longe irregular e cansativo como Viva o povo brasileiro (1984), o romance da Nova República  tancredista (e que, já que estamos na terra da chanchada e do deboche, acabou sarneysista), o novo romance de João, o Baldo da ficção brasileira, vem comprovar que a fórmula Xica da Silva, a receita Mandacaru, pode funcionar na televisão. Em livro, avultam a gratuidade e o apelo fácil.

(a resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em  15 de janeiro de 1998)

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21/04/2011

garotos saudáveis; mulheres moribundas e um “manual de disponibilidade”…

“Nunca me bastou ter sido feliz. Não acredito nas coisas mortas e confundo não ser mais com nunca ter sido”; “Toda alegria nos espera sempre, mas quer sempre o leito vazio, ser a única, e que cheguemos a ela como um viúvo”.

O leitor de hoje pode não acreditar, contudo trechos como esses tiveram enorme impacto e influência na França (e no mundo sob sua influência) no século XX, inclusive em autores do calibre de Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Simone de Beauvoir. O livro ao qual pertencem, O IMORALISTA, completa em 2002 seu centenário, e foi uma das duas obras (a outra é Os frutos da terra. 1897) de André Gide (1869-1951) que serviram para várias gerações como uma espécie de manual de disponibilidade e fervor pela vida, de se deixar arrastar pelas circunstâncias como antídoto às convenções sufocantes. Literariamente, Gide tem coisa melhor para oferecer: A sinfonia pastoral, o delicioso e inquietante Os subterrâneos do Vaticano, sua obra-prima Os falsos moedeiros, sua autobiografia Se o grão não morre.

Os frutos da terra era um poema em prosa, ao gosto do pós-Simbolismo. O IMORALISTA instaurou uma fórmula que se tornou marca registrada da literatura francesa: o relato-exame de consciência, em primeira pessoa, sóbrio, clássico, exato, ainda que enfocasse temas muitas vezes polêmicos e subversivos. O narrador, Michel, condena a “beleza já transcrita, perfeitamente interpretada”, e o leitor tem a liberdade de tomar isso como uma ironia, pois é a essência do estilo de André Gide tal como ficou cristalizada pela história literária.

Michel é casado com Marceline, embora sinta impulsos homoeróticos que desabrocharão plenamente no norte da África, em contato com meninos árabes. Veja o leitor como as coisas mudam: há cem anos, as relações de um francês adulto e reprimido com garotos adolescentes do Terceiro Mundo eram vistas (descontando-se a ousadia temática e sexual) como uma libertação pessoal, positiva, tirando a máscara de uma civilização hipócrita e repressiva. Hoje em dia, ninguém conseguiria (a não ser racionalizando muito) abstrair o lado sórdido desse “manual de disponibilidade”, que parece altamente condenável, não pela questão homossexual, mas pelo que hoje se descortina da pedofilia e do turismo sexual: quantos europeus como Michel não temos por aí, desreprimindo-se com garotos e garotas miseráveis de um Terceiro Mundo que se tornou bem mais amplo do que o evocado pela aventura pessoal de O IMORALISTA.

Contudo, isso fica para as avaliações politicamente corretas, no que têm de bom e de ruim. Mais chocante, para mim, é a narração da doença de Marceline, que ocupa boa parte do texto e funciona como o “último entrave” do marido. Parece que é preciso, para que Michel viva de fato, que ela morra, e tem de ser uma morte dolorosa, lenta, como uma depuração, cuja crueldade parece uma vingança psicológica, a evidenciar-se em passagens como a seguinte: “Nunca ela fora nem me parecera mais bela. A doença havia sutilizado e quase extasiado suas feições”!!!??? Com os meninos, a descoberta do prazer; com a mulher, a exaltação de uma beleza moribunda!

Paradoxalmente, nessa parte específica, O IMORALISTA perde um pouco do seu estilo rígido e clássico demais, adquirindo um ritmo entrecortado e “balbuciante”, por assim dizer, que resulta ainda muito eficaz e expressivo, cem anos depois: “A viagem continua à noite, Marceline tosse… Ah! não parará mais de tossir! Penso na diligência de Sousse…Parece-me que eu tossia melhor; ela faz tantos esforços… Como parece fraca e mudada, assim na sombra, eu mal a reconheceria. Como suas feições estão chupadas! Seriam assim mesmo os dois buracos negros das narinas? Ah, ela tosse horrivelmente. É o resultado mais evidente dos seus cuidados. Tenho horror à simpatia, todos os vestígios se ocultam nela; só devíamos simpatizar com os fortes. Ah! realmente ela não agüenta mais! Não chegaremos logo?… Que faz ela! Toma o lenço e o leva aos lábios, volta a cabeça… Que horror! Será que vai cuspir sangue?”

 Resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 27 de agosto de 2002, ano do centenário de “O imoralista”

19/12/2010

O homem sem qualidades quando jovem

“Agora vocês têm um pensamento ou uma sensação, e quase ao mesmo tempo aparece um outro diferente, como se espocasse do nada. Se prestarem atenção podem até sentir, entre dois pensamentos, um instante em que tudo é absoluta escuridão”.

Quando Clarice Lispector estreou na literatura (em fins de 1943), muita gente viu nela uma espécie de Virginia Woolf brasileira ou aproximou-a do James Joyce de Retrato do artista quando jovem. Eu  sempre a achei mais próxima de outro grande autor, o austríaco Robert Musil, cujo primeiro livro (do qual foi tirado o trecho acima), o agora centenário O jovem Törless se parece bastante com os romances iniciais de Clarice, ao fingir utilizar um veículo narrativo tradicional apenas para que a estranheza não fosse absoluta (e também há o fato de os dois artistas ainda serem muito jovens).

Esses dois criadores geniais fingiam que eram narradores quando, na verdade, eram educadores de uma nova percepção e sensibilidade do leitor. Quanto à afinidade, basta citar um trecho de O Lustre (que Clarice publicou aos 26 anos, mesma idade de Musil ao lançar a história das perplexidades do aluno Törless), de 1946:

“E também sabia vagamente, quase como se inventasse, que dentro daquele intervalo havia ainda outro instante, pequeno, pálido e plácido, sem ter no seu interior nenhuma das coisas que ela estava vendo…” Ou então: “enquanto durava este segundo, de olhos fechados, rosto cauteloso e móvel, ela perscrutou-o longamente, mais longamente que o próprio segundo, sentindo-o então vazio, grande como um mundo não-povoado… Mas a visão da manhã apenas quisera faiscar dentro dela e seria inútil tentar enxergar o vazio de outro mundo.”

Musil: “Via por trás das pálpebras cerradas uma confusão de coisas acontecendo…via pessoas de um modo como nunca as vira, nunca as sentira. Mas via sem ver, sem imaginar, sem formar imagens, como se apenas sua alma as visse, eram tão nítidas que sua presença insistente atravessou-o milhares de vezes; no entanto, como se parassem no limiar de um umbral intransponível, recuaram assim que ele procurou palavras para dominá-las.”

É o mundo que subjaz sob as palavras e o pensamento que importa em O jovem Törless, ainda mais do que a história do adolescente que, num internato, envolve-se numa teia de crueldade, sadomasoquismo e perversão com outros dois colegas (Reiting e Beineberg) para atormentar um colega fraco e submisso, Basini (muitos viram nessas relações juvenis um prenúncio da mentalidade nazista, calcada na aniquilação do outro).

Musil propõe de forma poderosa o internato como microcosmo social, com suas grandes opressões e pequenas crueldades, mas é preciso reconhecer que esse importante aspecto foi o que mais ficou datado, de tanto que essa ambientação foi explorada, antes e depois. Basta lembrar que em 1888, Raul Pompéia já traçava um quadro definitivo do microcosmo que um internato pode ser da sociedade, em O Ateneu.

Na sua maior realização, um dos livros supremos do século XX, O homem sem qualidades (para ser mais exato, “O homem indefinido”), Musil abdicará de todas as amarras tradicionais, incluindo o sentido de “acabamento” (o texto ficou inconcluso). Mas é obrigatório para o apaixonado por literatura o convívio com o homem sem qualidades, que se sente possuidor de “um sentido a mais do que as outras pessoas, só que ainda incompleto), em sua versão juvenil, a qual embaraça professores e educadores com suas perguntas. Pois, como diz seu colega Beineberg, “depois delas ninguém encontra o caminho de volta”.

(resenha publicada em 29 de julho de 2006, devido ao centenário do livro de Musil, e baseada numa versão anterior, publicada em 17 de setembro de 1996)

21/10/2010

A luz e a sombra de Sartre

(resenha publicada em 18 de junho de 2005)

    Para comentar o centenário do nascimento de Jean-Paul Sartre (que ocorrerá no dia 21 deste mês) fica-se na dúvida: que obra escolher ? São tantas, e  tantas são apaixonantes, até as obras de filosofia como O ser e o nada… E Sartre ainda continua a ser publicado, diga-se o que se quiser sobre o declínio de sua influência,  os livros mais inesperados ganham contínuas reedições, como Que é a literatura ?  Para homenageá-lo, seria preciso falar de ambos, do teatro, de  A náusea, dos contos de O muro,  da magnífica trilogia, Os caminhos da liberdade, da qual tantos não gostam, de As palavras, de  Questão de método, de textos das  diversas Situações, do belíssimo roteiro-que-não-foi-filmado, Freud, além da alma, do livro sobre Jean Genet, de A esperança agora

    Caminho mais fácil: comentar um livro a respeito dele e que justamente tem a ambição de fazer frente a todas as vertentes sartreanas: O século de Sartre (Nova Fronteira), publicado por Bernard-Henri Lévy na virada do milênio. Lévy vai tão fundo  que acaba por nos dar a impressão de fazer a Sartre o que este fez a Genet e tantos outros, ao estudar suas biografias e obras, precipitando seu eleito “no buraco negro do seu próprio pensamento. É a desventura de Genet, esmagado pela homenagem que ele lhe presta, canibalizado, reduzido a nada e quase parando de escrever, ou seja, de existir, após a publicação de São Genet, esse livro-mausoléu onde le meio que o enterrou vivo… longe de ser um acidente… esse beijo da morte é um dos modos normais de sua relação com os artistas que admira”.

      O nó da questão:  Sartre escreveu São Genet, canibalizou seu objeto de estudo, mas era Sartre, e um escritor muito mais importante do que seu colega. O que era exatamente Bernard-Henri Lévy antes de O século de Sartre ? O mais famoso e vendido dos chamados “novos filósofos” que apareceram na década de 70. Qual foi sua contribuição como pensador? Segundo Michel Winock, no fabuloso O século dos intelectuais,  mereceria um estudo especial a desproporção evidente entre a importância da sua obra e a freqüência com que aparece na tevê  (deve-se lembrar que o próprio Lévy tem um livrinho, Elogio dos intelectuais). No entanto, até que ele revelou certo talento como romancista em O diabo na cabeça e Os últimos dias de Charles Baudelaire.

    Com nó ou sem nó: O século de Sartre é a mais incrível surpresa dos últimos anos. Todos os pontos importantes são esmiuçados, os textos são percorridos com arrepiante minúcia (ainda que a análise peque, às vezes, por uma certa grandiloqüência). Qualquer leitura é sempre redutora, qualquer tipo de  citação poda, mutila, cria um contorno fácil demais ? Nada disso, a sensação é de que o leque Sartre abre-se cada vez, e nunca se esgota. Ele nos resgata a eminência do mais famoso intelectual do século XX, e como ela é constituída por suas próprias qualidades, pelo clima da época e por equívocos, mostra as influências omitidas, tanto literárias (Gide, por exemplo, enquanto ele proclamava Joyce, Kafka e John dos Passos), quanto filosóficas (Bergson, enquanto ele proclamava Husserl e o nazista Heidegger), como ele  pirateava pensamentos e pastichava estilos (moderno, portanto). Acaba com a velha baboseira da filosofia enfraquecer a força do romance sartreano (e finalmente alguém faz justiça a Caminhos da liberdade enquanto obra-prima da ficção), o que não o impede de ser injusto com o teatro praticado por ele (apesar de fazer uma magnífica leitura de Bariona, a primeira peça, ainda amadora). 

    Esmiuça o anti-totalitarismo radical do primeiro Sartre (cujas balizas principais são A náusea e  O ser e o nada, mas também aproveita de forma magistral vários textos  circunstanciais) para contrapô-lo ao segundo Sartre que se colocou a serviço do stalinismo (numa fase em que os intelectuais  já saltavam fora do barco) e, posteriormente, do maoísmo, e que passará a renegar sua obra até chegar ao ponto de condenar radicalmente o ato de escrever como uma doença adquirida na infância, uma quimera que destruiu sua vida, por influência do avô, em As palavras. Tudo pela causa do povo, de uma humanidade futura, ele, que afirmara que  “a existência precede a essência”  e que, por isso, jamais poderia acreditar numa abstração desse tipo.

    Nesses descaminhos da liberdade, a última surpresa do velho pensador, já cego, meio que desacreditado até por sua  “família”, ou seja, o grupo de amigos-discípulos liderados por Simone de Beauvoir (e Lévy nos faz repensar o até agora insuspeito relato do “declínio” de Sartre em Cerimônia do Adeus): sob a influência de um homônimo do autor de O século de Sartre, o ex-maoísta radical, o judeu-egípcio Benny Lévy (conhecido como Pierre Victor), a inclinação para o pensamento judaico. Mas a morte chegou antes de se verificar a extensão da nova mudança de rota, aquela anunciada de modo tão simples e comovente quando Benny Lévy pergunta: “Recomeça-se tudo? Recomeça-se aos 75 anos?” “É claro”.

30/07/2010

Minhas amigas Elinor, Marianne e Emma

I

                Entre as muitas razões da importância de Jane Austen está o fato de ela ter sido um dos autores que deram ao romance a forma que vigora até hoje. Ela e Stendhal moldaram a narrativa onde tudo decorre do caráter dos personagens principais, mesmo quando tolhidos pelas convenções.

             Já o título do primeiro romance de Austen publicado (em 1811), Razão e Sentimento, indica o caráter das suas heroínas, as irmãs Dashwood, Elinor e Marianne. Elinor ama com sensatez e resignação Edward Ferrars, que se encontra preso a um compromisso anterior (com uma tola); Marianne ama impulsiva e insensatamente Willoughby, o qual parece ter escapado das grandes histórias românticas, mas que se mostra muito pouco à altura desse papel, preferindo—de forma um tanto desonrosa e quase fatal para a Dashwood sentimental—casar com outra moça, possuidora de um grande dote.

           Pois esse é um problema central no livro. Na Inglaterra da época, as mulheres podiam herdar renda, nunca propriedades. Elinor, Marianne, a irmã caçula e a mãe são praticamente expulsas de sua casa, uma grande propriedade, após a morte do sr. Dashwood, pelo meio-irmão, e vão morar num chalé. Isso não quer dizer que elas fiquem na miséria. Quer dizer que elas assumem a condição de mulheres sem dote, o que, no seu nível social, é uma desgraça equivalente, principalmente porque faz diminuir vertiginosamente a possibilidade de casamento, a grande meta da mulher de então.

           São notáveis s diálogos de Razão e Sentimento. Também impressiona a cada leitura como ela consegue dar vida aos personagens que cercam as duas irmãs-antípodas, caso de Fanny, esposa do meio-irmão e irmã de Edward; da casamenteira e ruidosa mrs. Jennings; de Lucy Steele, a moça que ata a liberdade do amado de Elinor. Só que ainda assim o livro é um tantinho arrastado, e sempre me pareceu uma primeira versão (pois os temas são parecidos), bem mais crua, de  Orgulho e Preconceito, que eu não hesitaria em colocar em qualquer lista de melhores romances de todos os tempos (embora também seja tentado a fazer o mesmo com Mansfield Park).

            Falta, por exemplo, além da amplitude, um personagem masculino do gabarito de mr. Bennet, o pai das heroínas de Orgulho e Preconceito, sem falar no herói dessa obra-prima (mr. Darcy), para não falar do maravilhoso mr. Knightley de Emma.

          Mesmo assim, há momentos inesquecíveis em Razão e Sentimento, como o debate entre John, o meio-irmão, e Fanny, a respeito do montante exato que ele deveria dar a elas em cumprimento à promessa feita ao pai. Ao longo da discussão, o valor vai baixando até terminar em nada. Dá quase para imaginar Machado de Assis deliciando-se com a cena.

           Já houve um a tradução anterior do livro, por Dinah Silveira de Queiroz. A da Nova Fronteira foi realizada por Ivo Barroso. Lançada no início dos anos 80, reaparece agora para pegar carona nas indicações ao Oscar da adaptação cinematográfica de Ang Lee (traduzida como Razão e Sensibilidade) que achei mais para mediana do que para brilhant, apesar dos melhores esforços (no roteiro e na interpretação) da eternamente aflita Emma Thompson, embora às vezes certos filmes ganhem numa revisão [1].

     Austen fascina porque suas histórias românticas tinham uma malícia oculta, como se risse às escondidas de tudo o que oprimia as mulheres. Pena que atualmente as melhores tramas envolvam porquinhos rosados.[2]

 

(resenha publicada, de forma ligeiramente diferente, em 19 de março de 1996)

 


[1] Foi o que aconteceu com este filme, que depois revi vezes sem conta em canais a cabo. Hoje em dia o acho muito melhor, ágil, cheio de malícia e charme, nos momentos certos. Ainda me incomoda a inadequação de uma parte do elenco: acho Emma muito velha para o papel, Kate Winslet mais enjoada do que representante do lado “emoção” da vida, Hugh Grant está desastroso no papel de Edward. O resto do elenco, porém, está supimpa, impecável.

[2] Esse final se deve ao fato de que um dos concorrentes ao Oscar de filme (Razão e Sensibilidade seria teoricamente o favorito, pois ganhara o Globo de Ouro) era Babe, o porquinho atrapalhado. Mas nenhum dos dois levou, e sim Coração Valente, de Mel Gibson. Os outros candidatos eram lastimáveis: Apolo 13 e o horroroso O carteiro e o poeta.

II

    Nos últimos tempos, o cinema vive uma febre de adaptações de obras clássicas. Só para citar algumas:  As afinidades eletivas (pelos irmãos Taviani), Retrato de uma senhora (por Jane Campion), as costumeiras adaptações de Shakespeare… Até o cinema brasileiro embarcou na onda, com as produções em andamento de uma adaptação de Os sertões e outra de O triste fim de Policarpo Quaresma. Mas a autora da moda (embora tenha morrido em 1817,aos 41 anos) é Jane Austen.

     Além do oscarizado (pelo menos levou o prêmio de roteiro adaptado) Razão e Sensibilidade, é interessante notar que Emma (1816), uma de suas quatro obras-primas[1], e cuja tradução (de Ivo Barroso) foi lançada recentemente pela Nova Fronteira, deu origem a dois filmes: uma versão modernizada, muito bacana e cativante, Clueless- As Patricinhas de Beverly Hills, e uma versão fiel à época pré-vitoriana, a qual deve estar de olho no Oscar do próximo ano, mas que já peca pela escolha da protagonista, Gwyneth Paltrow, uma das estrelinhas mais sem-graça aparecidas nesta década[2].

      A personagem-título de Emma nos é apresentada como “bela, inteligente e rica, senhora de uma confortável mansão e excelente disposição de espírito”. Morando numa região rural, Highbury, com poucas e selecionadas relações, a sua principal ocupação, fora cuidar do pai, é “arranjar” casamentos.

      Sua imaginação e perspicácia estão sempre prontas a “compor” casais. Isso acontece após o sucesso do primeiro investimento nesse sentido, o enlace da governante, miss Taylor com o simpático vizinho mr. Weston. Só que as próximas investidas casamenteiras de Emma serão cada vez mais desastradas e desencontradas com os fatos. A principal vítima delas é uma garota bela, tola e de nascimento duvidoso, Harriet [3], a quem escolhe como “protegida”. Emma a faz desprezar seu primeiro pretendente, o fazendeiro simplório Robert Martin, e procura uni-la a mr. Elton, o pároco, o qual se revela um arrivista enfatuado (e depois se casa com uma mulher igualmente enfatuada). Depois procura atrair para a amiga Frank Churchill, o qual mantém uma relação secreta, esperando apenas que a tia, da qual depende, morra, para assumir o noivado com a principal rival de Emma na região, Jane Fairfax.

    E quando Harriet “decide-se” por alguém, Emma descobre que é justamente o homem que ela própria ama, mr. Knightley, o maior oponente dos planos casamenteiros e das conclusões a respeito das pessoas em geral da intrometida garota.

   Que delícia ler Emma.  Apesar de aparentemente se concentrar nas pequenas trivialidades da vida quotidiana (ainda que de uma classe socialmente favorecida), é justamente daí, do poder de Austen nos transmitir a sensação da existência corriqueira, que esse romance de 180 anos atrás tira seu encanto. De fato, foi uma das maiores conquistas da ficção inglesa essa capacidade de lidar com o quotidiano de forma realista, e é uma pena que nos últimos anos tanto essa literatura como o cinema inglês tenham perdido isso na maioria das suas realizações, o senso de realidade (para utilizar um título de Graham Greene), com sua fixação decorativa no passado e obsessões intelectuais insossas e bisonhas (e a falta que faz esse dom de apreender a vida comum e torná-la significativa no cerne da sua própria banalidade e aleatoridade, pode ser comprovada na força de um filme como o magnífico Segredos e Mentiras, de Mike Leigh, para mim o grande filme deste ano de 1996).

     Mais uma vez, como em outros livros da grande escritora inglesa, são os personagens secundários que se não roubam a cena poderiam fazê-lo sem escrúpulos. Há a tagarela e simplória miss Bates, tia de Jane Fairfaz; há o pai de Emma, mr. Woodhouse, com suas pequenas e imutáveis manias e que parece emergir do mundo de Laurence Sterne. Eles podem se juntar à Fanny de Razão e Sentimento, ao Mr. Bennet de Orgulho e Preconceito e à mrs. Norris de Mansfield Park, na galeria de tipos inesquecíveis de Jane Austen. Mr. Woodhouse, cm sua indolência egoísta lembra, inclusive, Lady Bertram, irmã de mrs. Norris. São todos personagens de primeira categoria.

    Há o escorregadio Frank Churchill, que lembra os galãs duvidosos que são o interesseiro Willoughby de Razão e Sentimento, e o vaidoso Henry Crawford de Mansfield Park.

     Já  mr. Knightley é, sorry, mr.Darcy e mr. Edmund Bertram (que ficam com as heroínas de Orgulho e Preconceito & Mansfield Park), o mais expressivo e bem realizado  herói cavalheiresco de Jane Austen[4].

    Pena que a tradução de Ivo Barroso, em geral excelente, comprometa-se com soluções horríveis, como, por exemplo, nos diminutivos dos nomes próprios. Emminha!!?? Henryzinho!!??Faça-me o favor, sr. Barroso. E o bizarro deslize, muito comum, dos tradutores brasileiros manterem chance quando acaso seria o equivalente em português. Alguém fica ao sabor da chance, sr. Barroso?

    Essas considerações são mero detalhe, escarafunchações críticas. Austen escrevia para ser lida. E, em Emma, como nos demais romances, consegue envolver o leitor nas vidas distantes e ultrapassadas da comunidade de Highbury, seus moradores, seus visitantes e intrusos. Cada personagem parece criar vida diante do leitor e ter uma realidade gritante, mesmo que sua ética, seus valores e suas convenções sociais sejam letra morta. Se é em A Abadia de Northanger, publicado postumamente (em 1818), que ela parece ter conseguido o tom mais próximo do leitor atual, mais jocoso e malicioso (talvez por causa do lado satírico e paródico muito forte desse romance, que se adapta bem ao clima pós-moderno que vivenciamos), qualquer um dos seus textos consegue ser ainda um milagre de comunicabilidade e fluxo de vida. Isso é genialidade.

(resenha publicada, de forma ligeiramente diferente, em 26 de novembro de 1996)


[1] As outras são, claro, Orgulho e Preconceito, Mansfield Park & Persuasão. Mesmo assim, gosto muito de Razão e Sentimento e do paródico e delicioso A abadia de Northanger.

[2] Hoje já não implico tanto com Paltrow, embora ela nunca tenha merecido o Oscar de atriz que ganhou, e realmente sua Emma deixe a desejar. Muito melhor está a agora linda demais (mas não o era tanto à época) Kate Beckinsale, numa adaptação para a BBC. Quem está surpreendentemente péssimo no filme de Douglas McGrath é Ewan McGregor (no papel de Frank Churchill), com um visual que, segundo meu amigo Eduardo Vieira, lembra o Visconde de Sabugosa.

[3] No filme de época vivida pela maravilhosa Toni Colette e no filme moderninho por Brittany Murphy, ambas ótimas.

[4] E ele teve a sorte de ser vivido pelo irresistível Jeremy Northan no filme de McGrath (o ator da versão da BBC é correto, porém não chega aos pés). Quem está muito bem no papel correspondente, em As Patricinhas de Beverly Hills, é Paul Rudd, o qual depois faria um monte de comédias bobas., mas que era uma promessa na época.

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