MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

17/04/2014

A DANÇA DOS CONTRÁRIOS: a trilogia “Os nossos antepassados”, de Italo Calvino

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 25 de abril de 1993)

– notas e anexos são todos de 2014

Numa batalha, o Visconde de Terralba é dividido ao meio por uma bala de canhão. Uma metade volta à terra natal e comete as maiores atrocidades. Anos depois aparece a outra metade e aí…

Aos 12 anos, para contrariar o pai, o Barão de Rondó sobe nas árvores e resolve não mais descer. Passam-se anos, ele cumpre sua decisão à risca, mas não deixa de se envolver nos acontecimentos de sua época, até que surge um balão e aí…

Um cavaleiro se apresenta ao exército de Carlos Magno, porém não há nada sob a armadura, somente uma poderosa vontade de lutar, vontade inconveniente que se intromete na vida de todos e gera muita confusão, principalmente quando insiste na virgindade de uma donzela cujo filho, entretanto, entra em cena e aí…

Essas são as insólitas situações da trilogia Os nossos antepassados, de Italo Calvino (1923-1985), que, com o lançamento (pela Companhia das Letras) este mês do último volume, O cavaleiro inexistente, reaparece completa nas nossas livrarias, vinte anos depois de uma outra tradução circular no Brasil[1]. Escrita nos anos 1950, é uma obra-prima da ficção, pois trata praticamente de todos os assuntos que sempre interessaram ao ser humano.

Calvino orquestra uma dança das ideias contrárias que formaram o homem como ele é ainda hoje (pelo menos, o ocidental). Embora a trilogia pare no limiar da Revolução Industrial e aborde basicamente o mundo feudal e rural, o próprio título indica que nós somos herdeiros de tudo o que está ali contado. E muito bem contado. O grande escritor italiano tem um estilo luminoso e maleável, cheio de vivacidade, humor, misturando fábula e realismo-chão, discussões filosóficas profundas e o desbocamento popular que faz o sabor da literatura e do cinema italiano.

O primeiro volume, O visconde partido ao meio, narrado pelo sobrinho do herói-vilão, instaura o compasso dessa dança e conta como é mais difícil viver (dentro das nossas rotinas e padrões) sob a inspiração do “Bem” absoluto do que sob o jugo do “Mal” absoluto, já que a parte quixotesca do Visconde atrapalha os lucros o que é mais imperdoável para o senso comum do que a tirania.

   O barão nas árvores (título chocho, quando “O barão empoleirado” seria mais engraçado e fiel ao espírito do autor[2]) é narrado pelo irmão do protagonista, homem comum, quase medíocre, e o contraste dos destinos de ambos é que dá um tom comovente, o mais “humano” entre os três, e o único que apresenta uma situação estranha, mas não fantástica. Nele aparece Voltaire como personagem; ao saber que o barão é uma pessoa civilizada que prefere viver nas árvores, ele afirma: “Outrora somente a Natureza criava os fenômenos vivos, agora é a Razão”.

O cavaleiro inexistente é, possivelmente, o mais genial e arrojado estilisticamente. Narrado por uma freira em clausura que depois se revela uma das personagens principais, tem um final surpreendente, que ao mesmo tempo se contrapõe à desilusão do primeiro volume e à resignação do segundo, e as antecipa, uma vez que transcorre num tempo anterior ao deles. Só não se diz aqui porque é feio contar o fim dos livros, e esse vale a pena descobrir sozinho. E aí…

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TRECHO SELECIONADO

– de O visconde partido ao meio:

“Mas de todas as partes começavam a chegar notícias de uma dupla natureza de Medardo. Crianças perdidas no bosque eram trazidas, cheias de medo, pela metade do homem, com sua muleta, que as levava pela mão de volta às suas casas e as regalava com flores e guloseimas; pobres viúvas eram por ele ajudadas a carregar lenha; cães mordidos pelas vespas eram curados, donativos misteriosos eram encontrados pelos pobres no peitoril de suas janelas e nas soleiras de suas casas, árvores frutíferas atingidas pelo vento eram reparadas e fincadas novamente no chão antes mesmo que seus proprietários tivessem posto o nariz fora da porta (…) de repente começaram a aparecer no céu andorinhas com as patilhas atadas por fibras de árvores, ou com as asas grudadas e coladas; e em todo um bando de andorinhas assim ligadas entre si que voavam juntas e com prudência, como se fossem convalescentes de um hospital de pássaros, e, inverossimilmente, se dizia que o próprio Medardo era o médico que assim as tratava…” (na versão de Joel Silveira, 1970).

“Contudo, começavam a chegar notícias de vários lugares sobre a dupla natureza de Medardo. Crianças perdidas no bosque eram alcançadas pelo meio-homem de muleta e, apavoradas, eram levadas por sua mão até em casa e dele recebiam figos e filhós; pobres viúvas eram ajudadas por ele ao transportarem molhos de lenha; cães mordidos por víboras eram tratados, presentes misteriosos eram encontrados pelos pobres nos peitoris das janelas e nas soleiras das portas, árvores frutíferas arrancadas pelo vento eram endireitadas e escoradas antes que os proprietários saíssem de suas casas (…) Contudo, agora começavam a aparecer no céu andorinhas com as patinhas enfaixadas e presas a talas, ou com as asas coladas ou emplastadas; havia todo um bando de andorinhas cuidadas desse modo que voavam juntas e com prudência, como se fossem convalescentes de um hospital de passarinhos, e, coisa inacreditável, comentava-se que o próprio Medardo era o médico delas…” (na versão de Wilma Freitas Ronald de Carvalho, 1988)

“Mas começaram a chegar notícias de várias fontes sobre uma natureza dupla de Medardo. Crianças perdidas no bosque, cheias de medo, eram abordadas pelo homem de muleta, que as conduzia para casa pela mão e lhes oferecia figos e bolinhos fritos; viúvas pobres eram ajudadas por ele a carregar lenha; cães picados por cobras eram tratados, presentes misteriosos eram encontrados pelos pobres nos parapeitos e nos portais, árvores frutíferas arrancadas pelo vento eram replantadas e fixadas em seus canteiros antes que os proprietários pusessem o nariz fora da porta (…) Contudo, agora podiam ser vistas no céu andorinhas com as patas enfaixadas e amarradas com gravetos de apoio ou com as asas coladas e com curativos; havia um bando de andorinhas assim ataviadas que voavam com prudência todas juntas, feito convalescentes de um hospital de passarinhos, e inverossimilmente dizia-se que o próprio Medardo era o médico…” (na versão de Nilson Moulin, 1996)

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– de O barão rompante/O barão nas árvores:

“Naqueles dias Cosimo costumava desafiar frequentemente as pessoas que estavam lá embaixo, no chão. Desafio de pontaria, de destreza, talvez para mostrar suas possibilidades e tudo o que podia fazer lá em cima. Desafiou os pequenos ladrões para atirar pedras. Estavam naqueles lugares próximos à Porta Capperi, no meio dos barracos dos pobres e dos vagabundos. Cosimo praticava com as pedras, quando viu aproximar-se um homem a cavalo, alto, um tanto curvo, envolto num manto negro. Reconheceu logo nosso pai. A garotada fugiu e as mulheres olhavam da porta dos seus casebres (…)

__ Que belo espetáculo estais dando! —começou o pai, em tom amargo— Muito digno de um gentil-homem! (Havia-lhe dado o tratamento de vós, como costumava fazer nas repreensões mais graves, mas agora tal tratamento tinha um sentido de distância, de afastamento.)

__ Um gentil-homem, senhor meu pai, continua sendo um gentil-homem quer esteja no chão, quer esteja em cima das árvores—respondeu Cosimo; e acrescentou imediatamente: —Se ele, é claro, comporta-se bem.

__ Uma boa sentença—admitiu, gravemente, o Barão—mas o fato é que, não faz muito, roubaste cerejas de um dos nossos inquilinos…” (na versão de Joel Silveira, 1971)

“Naqueles dias, Cosme muitas vezes desafiava quem estava no chão, desafios de pontaria, de destreza, inclusive para testar suas possibilidades, até onde conseguia chegar estando lá em cima. Desafiou os moleques para o jogo de malha. Encontravam-se naqueles lugares próximos da Porta das Alcaparras, entre os barracões dos pobres e dos vagabundos. De uma azinheira seca e despojada, Cosme estava jogando malha, quando viu aproximar-se um homem a cavalo, um tanto curvado, envolto num manto negro. Reconheceu seu pai. O bando se dispersou; das entradas das barracas as mulheres ficaram observando (…)

__ Que belo espetáculo ofereceis!—começou o pai, amargamente—É de fato digno de um gentil-homem! (Tratara-o por vós, como fazia nas críticas mais graves, mas então aquele uso teve um sentido de distância, de afastamento)

__ Um gentil-homem, senhor pai, merece esta condição tanto na terra como em cima das árvores—respondeu Cosme. E logo acrescentou: —Se se comporta corretamente.

__Uma sentença justa—admitiu gravemente o barão—, contudo, agora mesmo, estáveis a roubar ameixas a um arrendatário…” (na versão de Nilson Moulin, 1993)

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-de O cavaleiro inexistente:

“Para contar como desejaria, seria preciso esta página branca se iriçasse de rochedos vermelhos, se reduzisse a uma areia fina e espessa, cheia de pedras, e nela crescesse uma vegetação de zimbros. No meio, onde serpenteia um caminho mal traçado, farei passar Agilulfo, ereto em sua sela, a lança em riste. Mas não é tudo este campo, pois esta página deveria ser, ao mesmo tempo, a cúpula do céu estendida sobre papel, tão baixa que no espaço entre folha e céu haja apenas espaço para um voo de corvos grasnantes. Com a pena, deverei conseguir riscar a folha, mas cm leveza, porque no prado deve figurar o percurso do rastejar de uma cobra invisível, e o barco atravessado por uma lebre que agora se faz visível, para, fareja em redor com os seus pequenos bigodes, e logo desaparece.

   Cada coisa se move na página lisa sem que se veja nada, sem que nada mude em sua superfície, da mesma maneira como, no fundo, tudo se move e nada muda na rugosa crosta do mundo, porque há só camada dessa mesmíssima matéria, exatamente como a folha na qual escrevo, uma camada que se contrai e se aglomera em formas e consistências diversas em várias tonalidades de cores, mas que, no entanto, pode representar-se espalmada sobre uma superfície plana, mesmo nos seus aglomerados pilosos ou emplumados ou nodosos como uma carapuça de tartaruga, e uma tal pilosidade ou plumagem ou nodosidade às vezes parecem se mover, ou melhor, são cambiantes de relações entre as várias espécies dispostas em volta da camada de matéria uniforme, sem que substancialmente nada deixe o seu lugar. Podemos dizer que o único que certamente cumpre uma finalidade em meio a tudo isso é Agilulfo, e não falo do seu cavalo, não falo da sua armadura, mas de qualquer coisa de solitário, de preocupado consigo mesmo, de impaciente, que está viajando a cavalo dentro da armadura…” (na versão de Joel Silveira, 1970)

“Para escrever como gostaria, seria preciso que esta página branca se tornasse dura de rochas avermelhadas, se desfizesse numa areiazinha espessa e pedregosa, e aí crescesse uma densa vegetação de zimbros. No meio, onde serpenteia um caminho irregular, faria passar Agilulfo, ereto na sela, de lança em riste. Mas além de paisagem rupestre essa página deveria ser ao mesmo tempo cúpula de céu achatada aqui em cima, tão baixa que no meio só haveria lugar para um voo grasnante de corvos. Com a pena eu teria de chegar a incidir sobre a folha, mas com leveza, pois o prado deveria surgir sendo percorrido pelo deslizar de uma serpente invisível na grama, e o bosque atravessado por uma lebre que agora desemboca na clareira, se detém, fareja ao redor com os bigodes curtos, já desapareceu.

     Cada coisa se move na página lisa sem que se veja nada, sem que nada mude em sua superfície, como no fundo tudo se move e nada muda na crosta rugosa do mundo, pois só existe uma extensão da mesma matéria, exatamente como a página em que escrevo, uma extensão que se contrai e se decanta em formas e consistências diversas e em vários matizes mas que ainda pode se representar espalmada numa superfície plana, inclusive em seus aglomerados pilosos, cheios de penugens ou nodosos como um casco de tartaruga, e tal pilosidade, penudez ou nodosidade às vezes parece que se mexe, ou seja, há mudanças das relações entre as várias qualidades distribuídas na dimensão da matéria uniforme ao redor, sem que nada se desloque substancialmente. Podemos dizer que o único que de fato efetua uma deslocação aqui é Agilulfo, não digo o seu cavalo, não digo a sua armadura, mas aquele algo sozinho, preocupado consigo mesmo, impaciente, que está viajando a cavalo dentro da armadura…” (na versão de Nilson Moulin, 1993).

 

 

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[1] A verdade é que há uma certa imprecisão informativa na resenha acima. A Companhia das Letras lançou em 1993 O barão nas árvores & O cavaleiro inexistente. Só em 1996, apareceu pela editora O visconde partido ao meio (como os outros, traduzido por Nilson Moulin). Eles foram reunidos numa volume único, Os nossos antepassados, em 1997.

Mas à época em que eu escrevia, ainda podia se encontrar nas livrarias uma versão de Wilma Freitas Ronald de Carvalho para O visconde partido ao meio, publicada pela Nova Fronteira (1988). É nesse sentido que me refiro à trilogia reaparecer completa.

Tive a sorte pessoal de, após ler um texto alentado sobre Italo Calvino no Suplemento Cultural (publicado aos domingos) do Estadão, descobrir numa papelaria Se um viajante em uma noite de inverno, e logo a seguir, num sebo, os três volumes da trilogia na edição da Expressão e Cultura, todos em versão de Joel Silveira: O visconde partido ao meio e O cavaleiro inexistente (1970), O barão rompante (1971). As bases de uma paixão pelo autor italiano, e ainda talvez por isso, meus títulos favoritos.

VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2010/11/28/o-leitor-aventureiro-de-italo-calvino/

e também:

https://armonte.wordpress.com/2010/11/28/sintonia-e-focalizacao-em-marcovaldo-e-palomar/

Quanto ao original italiano, Il visconte dimezzato apareceu em 1952; Il barone rampante, em 1957; Il cavalieri inesistente, em 1959. Como trilogia, I nostri antenati, em 1960.

[2] O fato é que não dá para comparar nenhuma solução brasileira à expressividade dos títulos originais de Il visconte dimezzato nem Il barone rampante (a solução para este, em Portugal, é uma pândega para ouvidos brasileiros: “O barão trepador”), que me perdoe O barão rompante, melhor no entanto que O barão nas árvores.

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Italo Calvino

28/11/2010

sintonia e focalização em MARCOVALDO E PALOMAR

(resenha publicada em A TRIBUNA em 22 de novembro de 1994)

     A certa altura de Seis propostas para o próximo milênio, de Italo Calvino (1923-1985), na conferência sobre a rapidez, o grande escritor italiano discute a complementaridade entre dois seres mitológicos, ambos filhos de Júpiter: Mercúrio e Vulcano, o primeiro representando a sintonia com o mundo, a participação no coletivo; e o segundo representando a focalização, isto é, a concentração em si mesmo.

     Essa dupla disposição ajuda a entender outros dois maravilhosos livros de Calvino, os quais, publicados em épocas diversas, são bem similares: Marcovaldo ou As estações na cidade, de 1963 (que, aliás, foi lançado na Itália como obra juvenil!), e Palomar, de 1983, respectivamente traduzidos por Nilson Moulin e Ivo Barroso.

    Seus protagonistas vivem a dicotomia sintonia-focalização de maneira mais complexa: ambos procuram focalizar sua atenção para conseguir uma sintonia com um mundo invisível (talvez a verdadeira “natureza”, esta palavra que é um saco de gatos, onde se coloca de tudo um pouco), esmagado pelas aparências, um mundo que pulsa sob as convenções, o espaço urbano e a destruição causada pela ação humana.

     Marcovaldo é um livro engraçadíssimo. E italianíssimo, se me permitem a tautologia. Lembra filmes de Vittorio de Sica, de Pasolini, de Fellini, Monicelli, Wertmüller ou Scola, ou seja, tem aquela mágica alquimia entre a crítica social, o patético e o ridículo, o cômico que beira a chanchada e uma imponderável poesia, que nos faz amar Umberto D, Cabíria, Brancaleone, os vitteloni, o quinteto irreverente, Mimi, o metalúrgico, os feios, sujos e malvados, e Mamma Roma. E amar Marcovaldo, esse carregador italiano, miserável, cheio de filhos, que procura uma impensável e impossível vida natural na cidade.O que engendra episódios deliciosos como o que apresenta o conselho de um médico da Previdência para o tratamento de reumatismo: areia. A única areia limpa que Marcovaldo descobre está numa barcaça. Ele pede aos filhos que o cubram para a efetivação do “tratamento” e eles afastam-se para brincar. A barcaça desamarra-se e lá vai nosso herói soterrado rio abaixo. Há ainda o episódio do coelho que ele rouba do hospital e que (como cobaia que era) está contaminado por uma doença religiosa. Ou os cogumelos que nosso ingenuamente ladino carregador descobre, maravilhado, num canteiro e os quais vai colher, com toda a família, indo todos parar no pronto-socorro, intoxicados.

       Palomar não é tão anedótico nem apresenta uma ternura tão explícita pelo seu protagonista, mas o senhor Palomar é no fundo um Marcovaldo mais culto, mais abstraído das contingências humanas (segue um pouco uma tradição intelectal  em que a figura mais ilustre é  M.Teste, embora a criação de Paul Valéry  este jamais tivesse o calor humano e a simpatia do personagem do autor italiano), porque o livro é mais abertamente filosófico, destilando as muitas experiências de Calvino entre a ficção e o ensaio.

    O senhor Palomar focaliza um ponto no mundo para tentar limpar, depurar sua percepção: uma única onda na praia, o seio nu de uma moça, as constelações no céu,  o vôo migratório dos estorninhos, sem nenhuma noção preconcebida. Parece insípido? Experimente, leitor, para ver o que é estilo, o que é humor refinado. Se trinta anos separam o carregador Marcovaldo do senhor Palomar, o mesmo homem brilhante os criou, e uma das delícias de Palomar é a confusão que ele cria à sua volta com suas “pesquisas”.

    Com esses dois livros belíssimos, a Companhia das Letras continua a publicação da obra de um escritor verdadeiramente fascinante, como já provaram O barão nas árvores, O cavaleiro inexistente, As cidades invisíveis, O castelo dos destinos cruzados ou a sua obra-prima suprema (publicada pela Nova Fronteira numa tradução esplêndida de Margarida Salomão,  que me apresentou ao universo calviniano), Se um viajante numa noite de inverno[1]. Sempre com um mistura da qual podemos tirar a fórmula nas Seis propostas:

     “Assim como a melancolia é a tristeza que se tornou leve, o humor é o cômico que perdeu peso corpóreo… e põe em dúvida o eu e o mundo, com toda a rede de relações que os constituem”.

 

ANEXOS

Trecho de Marcovaldo: a estação é o inverno e o capítulo se chama “O bosque na rodovia”. Os  filhos de Marcovaldo, tiritando de frio, após a leitura de um livro que falava de um menino, filho de um lenhador, que saía com o machado para cortar lenha no bosque,  resolvem sair à procura de um bosque para encontrar a madeira que os aqueceria a todos:

“Nas margens da rodovia, os meninos viram o bosque: uma densa vegetação de árvores estranhas cobria a vista da planície. Tinham os troncos finos, finos, retos ou oblíquos; e copas achatadas e amplas, com formas as mais estranhas e as mais estranhas cores, quando um carro passou e iluminou-as com os faróis. Ramos em forma de dentifrício, de rosto, de queijo, de mão, de navalha, de garrafa, de vaca, de pneu, constelados por folhagens de letras do alfabeto.

__ Viva!- disse Michelino—Isto é um bosque!

    E os irmãos observavam encantados a lua despontar entre aquelas sombras estranhas.

__ Como é bonito…

    Michelino lembrou-lhes logo o objeivo pelo qual tinham ido até ali: a lenha. Assim, abateram uma arvorezinha em forma de flor de prímula amarela, cortaram-na em pedaços e levaram-na para casa (…)

    Naquela noite, fora denunciado o fato de que na rodovia um bando de moleques andava derrubando os cartazes de publicidade.”

Trecho de Palomar:

“O senhor Palomar decide que doravante procederá como se estivesse morto, para ver como o mundo se comporta sem ele. Em pouco tempo se dá conta de que entre ele e o mundo as coisas não estão mais como antes; se antes achavam que esperavam algo um do outro,ele e o mundo, agora já nem se record do que haviam de esperar, de bom ou de mau, enm por que essa espera o mantinha em perpétua agitação ansiosa.

    O senhor Palomar deveria conseqüentemente experimenta uma sensação de alívio, não tendo mais que indagar o que o mundo lhe prepara, e deveria também perceber o alívio do mundo por não ter mais que se preocupar com ele. Mas até mesmo a expectativa de saborear essa calma é o bastante para deixar o senhor Palomar ansioso.

    Em suma, estar morto é menos fácil do que se poderia pensar. Em primeiro lugar, não se deve confundir estar morto com não existir, condição que ocupa também a interminável extensão de tempo que precede ao nascimento, aparentemente simétrica com a também ilimitada que se segue à morte. Na verdade, antes de nascer fazíamos parte das infinitas possibilidades de vida que poderiam ou não realizar-se, enquanto mortos já não podemos nos realizar nem no passado…nem no futuro…

       (…) Antes, por mundo ele entendia o mundo mais ele; agora se trata dele mais o mundo sem ele.

     O mundo sem ele significaria para ele o fim da ansiedade?”


[1] A companhia das Letras depois lançou sua própria tradução de Se um viajante numa noite de inverno..

O leitor-aventureiro de Italo Calvino

     Se um viajante numa noite de inverno, fora do povoado de Marbork, debruçando-se na borda da costa escarpada, sem temer o vento e a vertigem, olha para baixo onde a sombra se adensa, numa rede de linhas que se entrelaçam (numa rede de linhas que se entrecruzam), no tapete de folhas iluminadas pela lua, ao redor de uma cova vazia, que história espera seu fim lá embaixo?

      Essa é uma das questões que povoam o vertiginoso SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO (Se una notte d’inverno un viaggiatore , 1979), de Italo Calvino(1923-1985), um dos romances centrais do século XX. Ele já havia sido lançado no final de 1982 (e tive a sorte de “descobri-lo” logo a seguir) pela Nova Fronteira, numa inesquecível tradução de Margarida Salomão, e agora volta numa versão de Nilson Moulin pela Companhia das Letras.

    Nessa verdadeira poética da leitura,o herói é o Leitor, que compra o livro chamado “Se um viajante numa noite de inverno”, num primeiro capítulo que por si só já vale o romance, e descobre, após algumas páginas, que, por um erro de encadernação, a leitura não pode ser continuada. Indo atrás de um exemplar sem defeito, acaba conhecendo uma Leitora, e ambos se envolvem num emaranhado de textos interrompidos cuja leitura é impossível prosseguir.

      O que parecia, a princípio, um inocente erro editorial, toma as proporções de uma conspiração mundial orquestrada por um tradutor, Ermes Marana, líder de uma organização que cria textos apócrifos, a partir de línguas exóticas (cimério, címbrio), distantes (japonês), ou, num ato de ousadia extrema, bem próximas (é o caso de textos do escritor irlandês Silas Flannery).

   Por que ele, ex-namorado de Ludmilla (a Leitora), perpetra tais atentados contra a Leitura?

   “Ermes Marana —desde sempre, porque seu gosto e talento o impeliram a isso, mais ainda depois que sua relação com Ludmilla entrou em crise— sonhava com uma literatura composta exclusivamente de obras apócrifas, de falsas atribuições autorais, de imitações, contrafações e pastiches. Se essa idéia conseguisse impor-se, se uma incerteza sistemática quanto à identidade de quem escreve impedisse o Leitor de abandonar-se com confiança —confiança não tanto no que é contado, mas na voz misteriosa que conta —,talvez nada mudasse no exterior do edifício da literatura. Mas, por baixo, nos alicerces, lá onde se estabelece a relação entre o leitor e o texto, algo mudaria para sempre. Então Ermes Marana não mais haveria de sentir-se abandonado por Ludmilla quando ela estivesse absorta na leitura; entre o livro e ela sempre se insinuaria a sombra da mistificação, e ele, identificado com cada uma das mistificações, teria confirmada sua presença”.

     É lógico que não se consegue abordar plenamente um empreendimento complexo e virtuosístico como SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO numa resenha. Pode-se arriscar afirmar, porém, que seu tema central é: qual o lugar da leitura no mundo? Sendo reduzido o espaço da liberdade na nossa organização social (quando não na própria organização existencial), como a aventura da leitura, essencialmente marcada pela liberdade, pode ter ainda algum sentido?

     Mesmo quando uma história narra o destino limitado de seu personagem, ou uma trama que se apresenta como um jogo de cartas marcadas, ela abre para o leitor um labirinto, pois, como afirmou Paul Auster, num dos textos da Trilogia de Nova York, o que importa numa história é a sua relação com outras histórias. É o que realiza primorosamente o grande escritor italiano naquela que é talvez sua maior obra (afirmação temerária, se lembrarmos que ele é autor da genial trilogia Os nossos antepassados, composta por Visconde dividido ao meio, O Barão nas árvores e O cavaleiro inexistente; e autor também de Marcovaldo, As cidades invisíveis, O castelo dos destinos que se cruzam, Palomar…).

     Só que Calvino nunca perde de vista a tensão entre liberdade e possibilidades infinitas, de um lado, e aprisionamento e circunstâncias irrevogáveis, de outro, tensão que alimenta até as histórias interrompidas que o Leitor e Ludmilla tentam prosseguir, como se pode verificar, por exemplo, nas reflexões do protagonista de “Olha para baixo, onde a sombra se adensa” (a quinta história), descontando-se o aspecto paródico de que o texto se reveste:

     “A conclusão a que levam todas essas histórias é que a vida de cada pessoa é única, uniforme e compacta como um cobertor enfeltrado cujos fios não podem ser separados. E assim, se por acaso ocorre de deter-me num detalhe qualquer de um dia qualquer como a visita de um cingalês que pretendia vender-me uma ninhada de crocodilos recém-nascidos… posso ter a certeza de que nesse episódio insignificante está implícito tudo aquilo que vivi, todo o meu passado, os múltiplos passados que tentei inutilmente deixar para trás, todas as vidas que se consolidam numa só —a minha, que continua também neste lugar, o qual resolvi não mais deixar, esta casinha com quintal num subúrbio parisiense, onde instalei meu viveiro de peixes tropicais, um comércio tranqüilo, que obriga a uma vida estável como eu nunca tive, pois os peixes não podem ser negligenciados nem um dia sequer…”

    Calma, leitor, tudo parece extremamente sério e inquietante (e é), entretanto SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO é uma imensa brincadeira, uma brincadeira no sentido mais prazeroso da palavra, como só um autor com a luminosa inteligência de Calvino poderia proporcionar. Que outro autor poderia inventar, para interromper a leitura de um livro, um ataque de um grupo de jovens que acredita em OVNIS e que é levado a crer que naquele exemplar, justamente naquele, encontram-se indicações de extraterrestres para a Humanidade? Ou inventar uma cena em que um personagem vai procurar outro num cemitério e pergunta ao coveiro: “Procuro o senhor Kauderer”. E o coveiro responde: “O senhor Kauderer não está. Mas como o cemitério é a casa dos que não estão, pode entrar”,

 resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 28 de dezembro de 1999

 

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16/05/2010

Destaque do blog: O DIA DA CORUJA, de Leonardo Sciascia

O INIMIGO MORTAL DAS PALAVRAS OCAS (ou o insólito cruzamento Rulfo-Borges)

INTRODUÇÃO

Mesmo entre os maiores ficcionistas,  poucos poderiam aspirar ao adjetivo “irretocável”, a uma essencialidade quase que absoluta da expressão. Os nomes que me vêm à mente de imediato, nesse sentido, são o mexicano Juan Rulfo, autor de Pedro Páramo & Chão em Chamas, e o bem mais prolífico italiano Leonardo Sciascia (1921-1989), de quem eu li pelo menos quatro obras-primas que posso considerar irretocáveis: Il giorno della civetta- O dia da coruja (1961), Il Consiglio  d´Egitto- O Conselho do Egito (1963), A ciascuno il suo- A cada um o seu (1966) e Il contesto- A trama  (1971).

Interessei-me por Sciascia devido a um grande filme de Francesco Rosi (que, aliás, fez um dos meus filmes favoritos, Tre Fratelli- Três Irmãos,uma das coisas mais belas feitas na virada dos anos 70 para os 80 do século passado), Cadaveri eccelenti- Cadáveres ilustres (convenhamos, um título maravilhoso), de 1976. Por sorte, na época do lançamento no Brasil da adaptação de Rosi de Il contesto, a editora Fontana e o Instituto Italiano di Cultura lançavam os três outros.  Até hoje foi a única edição brasileira, salvo engano, do melhor de todos, O Conselho do Egito (traduzido por Aurora Bernardini), magistral romance sobre imposturas e perseguições inquisitórias no século XVIII. A cada um o seu (traduzido por  Homero Freitas de Andrade) teve uma recente nova versão (por Nilson Moulin), publicado pela Alfaguara, que publicou há pouco uma nova tradução de O dia da coruja (de Eliana Aguiar), a terceira: a primeira foi a de Solange Lima Caribé da Rocha, e a segunda (de Mario Fondelli) fez parte de uma série de lançamentos sciascianos pela Rocco (entre eles, a tradução do mesmo Fondelli para A trama, que eu considero o romance que Jorge Luis Borges escreveria se ele fosse dado a alegorias políticas.[1]

I-

“Com efeito, disse o advogado Di Blasi, cada sociedade gera o tipo de impostura que, por assim dizer, lhe convém. E a nossa sociedade, que de por si é uma impostura, impostura jurídica, literária, humana (…) Nossa sociedade nada mais fez a não ser produzir, naturalmente, obviamente,a impostura oposta (…) se na Sicília a cultura não fosse, mais ou menos conscientemente, uma impostura, se não fosse um instrumento nas mãos do poder dos barões, a falsificação da realidade, da história… Pois bem, eu lhes digo que a aventura do abade Vella [um religioso com rudimentos de árabe que falsifica um Código, que na verdade era apenas uma corriqueira vida de Maomé, anunciando-o como um documento sobre os anos de domínio árabe na Sicília, e que se serve dele para chantagear toda a nobreza da região, temerosa de revelações incômodas a respeito dos ancestrais e de como adquiriram a posse da terra] teria sido impossível… Digo mais: o abade Vella não cometeu um crime, apenas montou a paródia de um crime, trocando os termos… De um crime que na Sicília se perpetra há séculos”… (O Conselho do Egito)

“… tratava-se de defender o Estado  contra aqueles que o representavam, os que detinham o poder. O Estado detido. Era mister libertá-lo. Mas ele mesmo estava em detenção: só podia tentar abrir uma rachadura no muro”… (A trama)

Em  A cada um o seu, o fabuloso  Sciascia mostra o protagonista (um corretíssimo e quixotesco professor de literatura) indo ao fórum, para obter o atestado de antecedentes que lhe facultará a licença para dirigir: “Subia as escadarias, masoquistamente desenvolvendo aquelas apreensões que são típicas do italiano que está para entrar no labirinto de uma repartição pública, ainda mais dedicada à justiça”.  

Em nenhuma região da Itália essa desconfiança com relação à justiça enquanto instituição do Estado, enquanto instância que não combina com sentimentos atávicos e milenares, é tão profunda quanto na Sicília, e esse é o tema do paradigmático  O dia da coruja: o dirigente de uma cooperativa de construção, que recusou a “proteção” dos mafiosos locais (apesar de que, oficialmente, a Máfia não existe,é como se fosse uma lenda: “existiu alguma vez um processo que tenha concluído pela existência de uma associação chamada Máfia a qual atribuir, com certeza, o mandado e a execução de um delito? Foi, alguma vez, encontrado um documento, um testemunho, uma prova qualquer que constitua uma relação segura entre um fato criminal e a assim chamada Máfia? Faltando essa relação, e admitindo que a Máfia exista, eu posso dizer-lhe que é uma associação de socorro mútuo e secreto, nada mais nada menos como a maçonaria”) é assassinado numa aldeia e o encarregado da investigação é um “continental”, o capitão Bellodi [2]. Aqueles que são intimados para prestar esclarecimento, ao conhecerem o oficial, pensam: “os continentais são gentis, mas não entendem nada”. 

E realmente, Bellodi “não entende nada”: insiste em ligar o crime à ação local da Máfia (incomodando, com isso, várias instâncias políticas: deputados, senadores) enquanto todos propõe uma explicação “passional”, como raiz desse e de outros dois homicídios (uma testemunha incauta, que vira o assassino, e um delator): “um daqueles motivos passionais que, para a Máfia e a polícia são, em proporções iguais, um grande recurso. Desde quando,no súbito silêncio do seio da orquestra, o grito ´Mataram o compadre Turiddu` tinha, pela primeira vez, estremecido o fio da espinha dos apaixonados da ópera,nas estatísticas criminais relativas à Sicília e nas combinações do jogo da loto, entre chifres e mortos assassinados estabeleceu-se uma freqüente relação. O homicídio passional se descobre rápido e logo passa a fazer parte do ativo da polícia; o homicídio passional se paga pouco, e entra portanto no ativo da Máfia.”  

Ele coloca em detenção três suspeitos, e vai juntando provas irrefutáveis, que serão refutadas entretanto através da impostura, uma palavra cara ao universo sciasciano: cidadãos respeitáveis juntam-se para fornecer álibis para os culpados.

II-

Bellodi (“com a fé de um homem que  participou de uma revolução e desta viu surgiu a Lei; a esta Lei que assegurava liberdade, justiça, a Lei da República, servia e fazia respeitar. E se ainda vestia a farda, por circunstâncias fortuitas envergada, se ainda não havia deixado o serviço para enfrentar a profissão de advogado à qual era destinado, era porque o mister de servir à Lei da República, e de fazê-la respeitar, tornava-se cada vez mais difícil”)  pertence a uma categoria recorrente nos romances de Sciascia: o herói de antemão derrotado, de ação por fim irrisória, e resignado com sua derrota, como o investigador Rogas, de A trama ou o nobre libertário e iluminista de O Conselho do Egito, Francesco Paolo Di Blasi, sem falar no iludido e incauto professor Laurana, aquele mesmo que subia a escadaria do fórum em A Cada Um o Seu, o qual, ao contrário dos outros, nem faz idéia de onde está se metendo.

O Dia da coruja é uma narrativa maravilhosa, no seu registro dos costumes, da mentalidade e do dialeto sicilianos. O preciso e calibrado estilo de Sciascia faz dele o “inimigo mortal das palavras ocas” (como Goethe se caracterizou pouco modestamente na sua Viagem à Itália, ao chegar em Veneza), estas tão celebradas na Sicília como aqui no nosso país: “Bellodi contou a história do médico de uma prisão siciliana que enfiou na cabeça que ia retirar dos presos mafiosos o privilégio de ficar na enfermaria…O médico ordenou que voltassem às dependências comuns.. Nem os agentes nem o diretor deram seqüência às determinações do médico. O médico escreveu ao ministério. E assim certa noite foi chamado à prião…os chefões o espancaram, cuidadosamente, metodicamente. Os guardas não viram o nada… O médico foi exonerado de suas funções pelo ministério, visto que seu zelo era causa de distúrbios…Como não conseguiu obter satisfação pela agressão sofrida, procurou outro chefão da Máfia que lhe desse pelo menos a satisfação de mandar espancar, na prisão para onde tinha sido transferido, um daqueles que o haviam agredido. Teve, pouco depois, a confirmação de que o culpado já tinha recebido a surra que lhe competia”. 

 

(uma parte deste post foi publicada, de forma condensada, numa resenha em “A Tribuna” publicada em 11 de maio de 2010)


[1] Aliás, Borges é citado explicitamente no texto: “Fecho os olhos e vejo um bando de aves. A visão dura um segundo, talvez até menos. Não sei quantos pássaros vi. O número deles era definido ou indefinido? O problema abrange o da existência de Deus. Existindo Deus, o número era definido, uma vez que Deus sabe quantos eram os pássaros. Não havendo Deus, o número é indefinido, pois ninguém podia contá-los. Digamos, neste caso, que eu vi menos de dez pássaros e mais de um, mas não vi nove, nem três,nem dois. Vi um número de pássaros compreendido entre dez e um, e que não é nove, nem oito, nem sete, nem seis,nem cinco  etcetera. Ese numero entero es incocebible, ergo, Diós existe. Quando a breve página toma forma na sua memória do jeito que está aqui impressa, ele procura afastá-la do pensamento e voltar a prestar atenção no que o presidente dizia: mas com a impressão de que aquele bando de pássaros, que durante um segundo ou menos tinha passado voando pelos olhos fechados de Borges, fosse muito mais real, além de mais definido, do que o homem que estava falando e qualquer outra coisa ali em volta”.

[2]  Apesar da sua alta qualidade, as traduções de Fondelli & Eliana Aguiar cometem alguns pecados contra o pitoresco siciliano, ora adotando um tom muito formal, ora abrasileirando em excesso: por exemplo, uma das coisas mais saborosas desse e outros romances de Sciascia é o fato de que a hierarquia dos carabinieri ter suboficiais com títulos pomposos como “marechal” e “brigadeiro”, o que, convenhamos, dá maior sabor à sua subalternidade.

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