(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de agosto de 1997)
O narrador de AUTOS DE MORALIDADE [Morality Play, em tradução de Beatriz Horta] é um padre de 23 anos, Nicholas Barber, que está vagando por uma floresta, após fugir da sua diocese e de um marido traído, e encontra um grupo de atores mambembes. Um dos atores da trupe morreu e Nicholas toma seu lugar. A preocupação de enterrar o companheiro faz com que eles entrem numa cidade onde acaba de acontecer um crime: um garoto de 12 anos foi estrangulado pela filha de um tecelão.
Por causa da falta de dinheiro, os atores resolvem encenar uma peça na cidade, um daqueles famosos autos, comuns na Idade Média (a história de passa no século XIV), espetáculos onde as virtudes e pecados da humanidade eram representados alegoricamente, e nos quais a moral era extraída da Bíblia.
Não atraem muito público com a primeira peça que encenam e a fome os ameaça. Martin, o líder, convence seus parceiros a cometer uma ousadia, quase uma blasfêmia: representar o crime que ocorrera na localidade.
O problema é que, fazendo isso, eles descobrem que a filha do tecelão jamais poderia ter assassinado realmente o menino. Pior ainda, apontam para o verdadeiro assassino, já que ele pertence à nobreza feudal. Ao fugirem dos enredos conhecidos e da moral bíblica pré-estabelecida, ao criarem uma peça a partir da realidade imediata, eles se lançam no desconhecido, como intui Nicholas: “… se dermos nosso próprio sentido à peça, Deus vai nos obrigar a responder às nossas próprias dúvidas”.
O século XIV vem sendo utilizado insistentemente como paralelo para a nossa época. Foi o caso de O nome da rosa, de Umberto Eco, do livro da historiadora Barbara Tuchman, Um espelho distante, ou do filme Navigator, de Vincent Ward, embora nenhum deles tenha chegado à eminência de Bergman nas suas obras-primas com ambientação medieval, O sétimo selo & A fonte da donzela. A tônica, em todos, é mais ou menos a mesma: um clima de apocalipse moral, num mundo dominado pela violência, pela insegurança e pela peste (a qual sempre parece castigo de Deus, semeando uma ideia de Juízo Final).
Nesse sentido, AUTOS DE MORALIDADE não inova muito. O interesse pelo romance (publicado em 1995 na Inglaterra) cresce quando se percebe que Barry Unsworth transporta para o medievo um fenômeno comum dos nossos dias: a espetacularização da vida comum. O grupo reformula em seu auto (que vai se modificando a cada dia, com as novas informações que os autores recolhem em suas andanças pelos arredores) o que está se passando na cidade, assim como a mídia contemporânea reconstrói e distorce a realidade quase que imediatamente.
Tal liberdade choca profundamente Nicholas, pois o relato o apresenta num período de sua vida em que ele confronta, dentro de si, o condicionamento religioso a que foi submetido e os dados da experiência que vai adquirindo ao embarcar no destino da trupe teatral. São as suas reações “ingênuas” que permitem ao leitor perceber vida e espetáculo confundindo-se no jogo cênico: “Tudo isso foi inventado e feito por Martin… Já sabíamos que a peça e a vida que existia fora dela não ficavam bem separados na cabeça dele; sabíamos também que ele esperava salvar a moça, mas achávamos que era uma esperança inútil”.
Movimentando-se num universo em que a Justiça Divina cedeu lugar às dúvidas e interrogações humanas, num ambiente em que tudo é mascarado, não apenas o mundo dos comediantes (é por isso que várias vezes no livro os torneios entre cavaleiros são comparados a espetáculos teatrais), Nicholas acaba por sentir necessidade da justiça humana representado pelo magistrado do rei, que solucionará o mistério. Ao procurá-lo, contudo, ele tem a maior lição no seu célere aprendizado pelo mundo profano: o magistrado salva a todos, o grupo e a filha do tecelão, não para instaurar a justiça e a verdade, mas tão somente para limitar o poder do senhor feudal que domina a região e ameaça o rei. A justiça usada como forma de chantagem e de pressão.
Aliás, talvez seja a maior frustração (o melhor termo talvez fosse angústia) de uma sociedade em que não há mais valores religiosos como fundamento: o fato de não se poder acreditar na justiça constituída pelo consenso dos cidadãos. Se pensarmos que uma juíza dos nossos dias pode atenuar um ato criminoso como o de queimar um ser humano vivo por diversão, desqualificando-o como crime hediondo, realmente é oportuno o confronto que Unsworth faz entre as expectativas de Nicholas e o colapso—ou perversão—da noção (e do uso) da justiça, em seu romance.
E Nicholas descobre, ao final, quando lhe oferecem a chance de voltar a ser padre, que deseja continuar como ator, perder-se nas máscaras, já que nada é seguro, nem mesmo a identidade pessoal, como descobriu na cidade onde, tal qual no Hamlet de Shakespeare, uma peça serviu como “denúncia”, como ratoeira para consciências culpadas.E essa denúncia-ratoeira, por sua vez, serviu apenas como lance no jogo de xadrez entre poderosos. Como avisa o próprio narrador, “deixo aos que me leem a tarefa de tirar uma conclusão no final—se a dádiva desta cidade foi para o bem ou para o mal”. Pois num mundo em que tudo se corrói e entra em colapso, os autos de moralidade se transformam fatalmente em autos de ambiguidade.