MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

27/02/2018

Destaque do Blog: “Sonhos Tropicais”, de Moacyr Scliar: segunda parte

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 27 de fevereiro de 2018)

Comecei na semana passada um comentário sobre “SONHOS TROPICAIS”, de Moacyr Scliar, ressaltando o contraste entre o comportamento da população de agora e da 1904 com relação à vacina da febre amarela. Naquela época, eram maioria os analfabetos, os quais não faziam ideia do que era vírus, micróbios, bactérias e sentiam profunda desconfiança da ação governamental (eu, que tenho certo grau de instrução, alimento desconfiança similar, por mais irracional que pareça). Estaremos mais esclarecidos ou mais submissos?

É preciso dizer que, embora um grande médico, Oswaldo Cruz não possuía sensibilidade social e isso abriu caminho para medidas draconianas: suas brigadas sanitárias podiam invadir casas e vacinar à força. Ele era tão impopular que o romance relata que, na hora de sua morte, em 1917, houve manifestações comemorativas.

Afirmei na semana passada que a narrativa custa a engrenar, mas assim que aparece em cena o presidente Rodrigues Alves, ela cresce muito. Aliás, boa parte da “revolta da vacina” foi para certos grupos políticos uma oportunidade de depor o presidente apelidado de Soneca: “ – E se houver distúrbios? – Insiste Leocadio. Vicente suspira. – Bem, aí começamos a caminhar sobre areia movediça. Um pouco de distúrbio, uma ou outra cabeça quebrada, nada disto fará mal; ao contrário, nos dará o apoio da imprensa. O que temos de evitar é cutucar a fera com a vara curta. Enquanto a questão for a polícia, tudo bem. Mas, se entrar o Exército, se for decretado o estado de sítio, estaremos numa situação muito difícil: não sei se conseguiremos manter a resistência. Provavelmente perderemos a iniciativa para os elementos mais extremados, os bandos, as quadrilhas. Portanto, vamos nos restringir às reivindicações mais óbvias: melhor moradia, melhor transporte, melhores salários. Além, claro, do fim da vacinação obrigatória, que afinal motivou tudo”.

Mais adiante: “—Não sou eu, doutor. É o meu menino, de sete anos. É que ele… foi vacinado. Ontem. Eu não sabia, a mulher agarrou ele e levou lá onde estão vacinando. Quando eu soube, fiquei furioso – mas já era tarde. Agora me diga, doutor – o que é que eu posso fazer? Tem perigo? Vicente baixa a cabeça, reflete um instante. – Não – diz por fim. – Não tem perigo. Não se preocupe, não vai acontecer nada. O homem franze a testa. – Desculpe, doutor, mas estava assistindo à reunião aqui da porta, e entendi que os senhores vão fazer uma campanha contra a vacinação… – É verdade. Mas por razões políticas, não médicas. Entende? Não, ele não está entendendo. – Olhe aqui – diz Vicente –, no fundo não temos nada contra a vacina. Daqui a alguns anos, todo mundo será vacinado, e ninguém falará disso. Mas agora nós temos de atacar a vacinação – porque partindo da revolta do povo podemos mudar a sociedade, entendeu? ”.

É assombroso como há 25 anos, “SONHOS TROPICAIS” mostrava as falcatruas cariocas e nacionais. Vejam está fala de Rodrigues Alves: “—Espero que o senhor não me interprete mal, doutor Oswaldo. Há quem acuse os empreiteiros de favorecerem a corrupção, por causa de suas tradicionais colaborações às caixinhas dos políticos. Devo lhe dizer que, naturalmente, eu não aprovo tal políticos… Não se progride, doutor Oswaldo, sem demolir e sem construir – e como fazê-lo, sem empreiteiros? Às vezes, as propinas que dão têm como exclusivo objetivo azeitar um pouco a emperrada máquina estatal”.

Em tempo: uma personagem secundária, a judia polonesa Ester, vítima do tráfico sexual, ganhou realce na versão cinematográfica dirigida por André Sturm.

20/02/2018

Destaque do Blog: “Sonhos Tropicais”, de Moacyr Scliar: PRIMEIRA PARTE

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 20 de fevereiro de 2018)

“Há uma outra doença que, esta sim, se constitui em desafio: a febre amarela. Na última década do século XIX, a doença causou mais de vinte mil óbitos no Brasil. Na Europa – isto te envergonha profundamente –, agências de navegação anunciam viagens diretas à Argentina, sem passar pelos focos de febre amarela no Brasil. A febre amarela está nos matando, matando nossa economia. E nem sequer se tenta controlar a doença, cujo mecanismo de transmissão é desconhecido”. (Moacyr Scliar, “SONHOS TROPICAIS”).

Quem tenha testemunhado a histeria coletiva e as filas imensas para tomar a vacina contra a febre amarela (sem contar o assassinato de macacos) em lugares onde é escassa a possibilidade de epidemia, não pode imaginar que a população tenha já se revoltado contra a vacinação, ocasionando uma guerra civil com mortes e bombardeios. Esses acontecimentos do século passado são relatados em “SONHOS TROPICAIS” (1992).

Como leitor tenho problemas com a obra de Moacyr Scliar para mim, seu aclamado “A mulher que escreveu a bíblia” é um desperdício de uma ideia genial num texto rasteiro. Disseram que “A vida de Pi”, de Yann Martel, romance profundo e filosófico, era plágio de um livro de Scliar, “Max e os felinos”, uma alegoria bonitinha e mediana.

Mesmo “SONHOS TROPICAIS”, muito melhor, apresenta aspectos discutíveis. O narrador é um médico fracassado e beberrão que conta a história de Oswaldo Cruz, de uma forma que parece estar sempre o interpelando (“Como vês, Oswaldo, não tenho a menor dificuldade em falar sobre tua vida. Meus conhecimentos a respeito são admirados até pelo portuga do botequim ali na esquina; depois de uns tragos, começo a contar a história de tua vida, que ele escuta admirado: mas você sabe tudo sobre esse Oswaldo Cruz! ‘Você’, Oswaldo; não ‘o senhor’, e muito menos ‘o doutor’. Ignorará que sou médio? Talvez. Mas não ignora que sou chegado a um trago, e isto automaticamente extingue as reverências). O romance custa a engrenar e só cresce após a volta de Cruz ao Brasil. Até lá, é uma chatice.

13/12/2012

Leituras em espelho: MAX E OS FELINOS e VIDA DE PI

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 24 de julho de 2012)

Há dez anos, uma controvérsia cercou a premiação de A vida de Pi (Life of Pi, 2001) com o Booker Prize, o mais prestigiado da língua inglesa: o livro de Yann Martel plagiara  Max e os felinos (1981), de Moacyr Scliar? Em ambos, o jovem sobrevivente (um alemão fugindo do nazismo rumo ao Brasil, em Scliar; um indiano, cuja família administrava um zoológico e que resolve emigrar para o Canadá, em Martel) de um naufrágio, protagonista do relato,  tinha de conviver num bote salva-vidas com um felino imponente (um jaguar, no autor brasileiro; um tigre-de-Bengala, no canadense).

Scliar procurou afastar a embaraçosa acusação de plágio e revelou-se melindrado mais porque Martel o citara entre as pessoas a quem agradecia numa nota (“a centelha de inspiração devo-a ao sr. Moacyr Scliar”), sem explicar o porquê e nem citar Max e os felinos (aliás, Martel, demostrando uma inabilidade campeã, para não dizer desagradável, afirmava nem ter lido o texto e apenas  conhecer seu enredo através de uma resenha negativa, considerando um desperdício ideia tão boa e tão mal aproveitada).

Bem, passou-se uma década, Scliar faleceu em 2011 e mesmo sob suspeita, A vida de Pi ganhou não apenas uma, mas duas traduções brasileiras: a primeira pela Rocco, e uma recente, feita por Maria Helena Rouanet para a Nova Fronteira (embora, no geral, esta nova versão seja mais bem-acabada, prefiro várias soluções da anterior,  mais crua e objetiva, de Alda Porto, mas é questão de gosto). E podemos verificar com mais serenidade as duas questões principais levantadas pelo incidente: se há de fato plágio, e qual dos dois é mais interessante —ou  haveria uma equivalência de qualidade?

Acho que, não obstante a deselegância de Martel ao se referir a Scliar e à maneira como aproveitou a “centelha de inspiração”, não há plágio algum porque a situação do náufrago no bote com um animal feroz não é o ponto central de Max e os felinos. Scliar narra a trajetória de vida de Max Schmidt, na qual vários representantes felinos desde a sua infância simbolizam e exteriorizam forças contra as quais ele tem de se haver (o autoritarismo do pai, o nazismo, a adaptação ao solo brasileiro). Trata-se de um texto correto e simpático, com essa boa sacada do jaguar a bordo, contudo sem grandes voos. De certa forma, sim, um desperdício (como tantos outros que Scliar cometeu em sua carreira).

Em compensação, A vida de Pi é  fora do comum. E é Martel quem aproveita integralmente as possibilidades que a convivência entre um ser humano e uma “fera” num espaço exíguo comporta.

Para começar, ele criou uma voz narrativa irresistível, a de Pi Patel (seu apelido é uma alusão ao famoso número representado pela letra grega  ,do qual ele se apropriou para que não ridicularizassem seu nome) e, a partir dela, construiu um romance filosófico poderoso. Recordando sua existência e suas pesquisas espirituais (queria ser ao mesmo tempo devoto do hinduísmo, cristão e muçulmano) e, após o naufrágio,  convivendo com Richard Parker (o nome dado ao tigre), ele faz o leitor enfrentar pesadas questões teológicas, as quais, em última instância, colocam em xeque a existência de uma Providência Divina, a questão da indiferença da natureza ao nosso destino individual, a irredutível diferença dos animais com relação a nós, que tentamos tanto antropomorfizá-los, torná-los parecidos conosco, e a questão-limite da sobrevivência: como ficam nossos valores éticos e nossas regras e rituais diante do bruto fato de que temos de viver dia a dia. Estamos longe, aqui, das águas rasas de Max e os felinos.

Pi alega ter convivido “duzentos e vinte e sete dias” com Richard Parker (há episódios que nos remetem aos romances juvenis de aventura, a Robinson Crusoé, que “recheiam”, é claro, esses dias narrados com minúcia e uma beleza atordoante, como a caracterização do “tráfego” sob a água: “Eu contemplava aquele tumulto urbano como alguém observando uma cidade de um balão de ar quente. Era um espetáculo maravilhoso, que inspirava reverente admiração. Com certeza é o que deve parecer Tóquio na hora do rush” ).

Colocado contra a parede por profissionais que apuram  o naufrágio, ele acaba narrando uma outra versão, mais realista, mais sórdida, talvez mais terrível porque envolve o território humano tão somente.

Mas A vida de Pi não se reduz a uma alegoria, em que os animais representam determinadas atitudes e qualidades, num disfarce habilidoso. A originalidade desse romance extraordinário é conseguir que acreditemos inteiramente na versão que Pi construiu para si, para sobreviver (no sentido psíquico) à sua experiência-limite, de tal maneira ela é eficaz em todos os seus componente narrativos. Talvez porque seja mais saudável acreditar em fábulas. Com elas pelo menos aprendemos algo.

ANEXO- Cenas de Naufrágio:

“Uma noite Max acordou com a sensação de que algo anormal ocorria a bordo. Os animais estavam mais agitados do que de costume. Sentou na cama. Sim, alguma coisa estranha estava acontecendo: ouvia o ruído de passos apressados, um confuso vozerio. Vestiu-se rapidamente, saiu—e neste momento as luzes se apagaram. Na semi-obscuridade via vultos correndo de um lado para outro. O que está acontecendo? –perguntou, mas ninguém lhe respondia. Dirigiu-se para o convés—e só então notou que o navio estava adernado, e que continuava adernando rapidamente (…) o navio estava afundando. Os barcos  desciam rapidamente, e logo não havia mais ninguém a bordo. Assustado, Max correu para a amurada:

__ Não me deixem aqui.

   Inútil: os barcos s afastavam rapidamente. Ah, traidores, berrou Max. De repente percebia tudo. O Germania jamais deveria chegar a seu destino, aquele naufrágio estava planejado desde o início (…) Canalhas, rosnou Max—mas agora não podia perder tempo, o Germania afundaria em minutos. Correu à popa e ali—milagre—encontrou um pequeno escaler (…)

    Ao clarear do dia viu-se sozinho na vastidão do oceano. Enorme angústia apossou-se dele; pôs-se a chorar desabaladamente. Que triste situação. Que triste vida. Infância não de todo feliz; adolescência atormentada; fuga precipitada da pátria e agora isso, o naufrágio! Era demais. Chorava, sim, chorava e se maldizia também: por que tivera de se meter com uma mulher casada? Com um esquerdista maluco? Não sabia ele que na certa as coisas terminariam mal? (…)

   Teve então uma ideia: improvisar uma espécie de cabana com os destroços do Germania que flutuavam a seu redor. Uma grande caixa de madeira, boiando a pequena distância, parecia  adequada para isto. Com muito esforço, remou até lá.

   Puxou a caixa para junto do barco. Examinou-a e constatou que tinha, na parte superior, uma tampa fechada por um cadeado que agora, quebrado, pendia frouxo. Max retirou-o.

   Alguma coisa pulou de dentro da caixa, arremessando-o com força inaudita contra o chão do escaler. Max bateu com a cabeça, perdeu os sentidos.

   Aos poucos foi se recuperando. Abriu os olhos.

    O berro que soltou atroou os ares. Diante dele, sentado sobre o banco do escaler, estava um jaguar.” (MAX E OS FELINOS)[1]

“O navio afundou. Fez um som que parecia um monstruoso arroto metálico. As coisas ficaram borbulhando na água e, depois, desapareceram. Tudo gritava: o mar, o vento, o meu coração. Do bote salva-vidas, vi algo na água.

–Richard Parker, é você?—gritei.—Está tão difícil enxergar. Ah, se essa chuva parasse… Richard Parker? Richard Parker? É você mesmo!

   Só dava para ver a cabeça dele, que lutava para se manter na superfície.

__ Jesus, Maria, Maomé e Vishnu, que bom ver voc~e, Richard Parker! Não desista, por favor. Venha para o bote. Está ouvindo esse apito? Triiiiii! Triiiiii! Triiiiii! É isso mesmo. Nade, nade! Você é um ótimo nadador. Não são nem trinta metros.

   Ele tinha me visto. Parecia em pânico. Começou a nadar na minha direção. Ao meu redor, a água se movia furiosamente. Ali, ele parecia pequeno e indefeso.

__ Dá para acreditar no que nos aconteceu, Richard Parker? Diga que é um pesadelo. Diga que não é verdade. Diga que ainda estou na minha cabine no Tsimtsum, me virando e me debatendo, e que logo vou acordar desse pesadelo. Diga que continuo a ser feliz (…) Que Vishnu me preserve, que Allah me proteja, que Cristo me salve, não aguento isso! (…) Todas as coisas de que eu gostava na vida foram destruídas. E não mereço uma explicação? Vou ter de sofrer o diabo sem que o céu me dê qualquer justificativa? Nesse caso, de que serve a razão, Richard Parker? Ela só vale para brilhar com relação a coisas práticas: conseguir comida, roupas e um abrigo? Por que a razão não é capaz de dar respostas maiores? Por que não podemos lançar uma pergunta mais longe do que podemos alcançar uma resposta? Por que uma rede tão grande se há tão pouco peixe para pescar?” (VIDA DE PI)[2]


[1] Note-se que Scliar tem o cuidado de fazer com que Max bata a cabeça e desmaie antes de constatar a presença do jaguar no escaler, pois sempre se pode atribuir todos os episódios seguintes a uma alucinação.

[2] Assim está na tradução de Maria Helena Rouanet.A título de curiosidade, veja-se como o trecho final ficou na versão de Alda Porto:

“…Cada pequena coisa que eu valorizava na vida foi destruída. E não me dão explicação alguma? Vou sofrer o diabo sem nenhuma explicação do céu?Nesse caso, qual o propósito da razão, Richard Parker? Não é mais que brilhar nas coisas práticas da vida…a obtenção de comida, roupa e abrigo? Por que a razão não sabe dar as grandes respostas? Por que podemos lançar uma pergunta muito mais longe do que podemos receber uma resposta? Por que uma rede tão imensa, se há tão pouco peixe para pegar?”

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/01/08/a-shoah-e-a-fabulacao-beatriz-virgilio-de-yann-martel/

 

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21/09/2012

Leituras em espelho: Vidas passadas, Textos mal passados (segunda parte): A MULHER QUE ESCREVEU A BÍBLIA

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/07/14/leituras-em-espelho-vidas-passadas-textos-mal-passados-primeira-parte-o-robe-do-dragao/

No texto que consta como Introdução à edição pocket (pela L&PM) de Max e os felinos (uma novela absolutamente comum, sem nada de mais), Moacyr Scliar (1937-2011) comenta o suposto plágio (desmentido por ele mesmo) do seu texto cometido pelo canadense Yann Martel em A vida de Pi (este sim, um romance absolutamente fora do comum): “… o fato de Martel ter usado a ideia não chegava a me incomodar [em outro trecho lemos: “Depois de muito debate sobre o assunto o livro de Martel finalmente chegou-me às mãos. Li-o sem rancor; ao contrário, achei o texto bem escrito e original. Ali estava a minha ideia, mas era com curiosidade que eu seguia a história—boa narrativa, aliás, dotada de  humor e imaginação. Ficou claro que nossas visões da ideia eram completamente diferentes. As associações que fiz são diferentes das que Martel faz”].. Incomodava-me… a maneira pela qual tomei conhecimento do livro. De fato, não fosse o prêmio, eu talvez nem ficasse sabendo da existência da obra. No lugar de Martel eu procuraria avisar o autor. Aliás, foi o que fiz, em outra circunstância. Meu livro  A MULHER QUE ESCREVEU A BÍBLIA teve como ponto de partida uma hipótese levantada pelo famoso scholar norte-americano Harold Bloom segundo a qual uma  parte do Antigo Testamento poderia ter sido escrita por uma mulher, à época do rei Salomão. Tratava-se, contudo, de um trabalho teórico. Mesmo assim, coloquei o trecho de Bloom como epígrafe do livro—que enviei a ele (nunca respondeu—nem sei se recebeu—, mas cumpri minha obrigação)…”

   Se Harold Bloom viesse a saber que, além de aproveitar sua extravagante hipótese, o romance de Scliar ainda receberia o Jabuti, o nosso mais badalado prêmio literário, talvez ficasse impressionado e louco para ler A MULHER QUE ESCREVEU A BÍBLIA. E ficaria certamente incrédulo com a ruindade do livro, que espanta até quem nunca foi muito fã do escritor gaúcho. Diga-se de passagem, graças principalmente a essa premiação, nunca consegui levar a sério o Jabuti, tanto que se um livro sai vencedor e eu ainda não o  li, fico ressabiado, e dificilmente tenho pressa de lê-lo. É o efeito Scliar.

Agora: por que um cara desses pega uma ideia tão sensacional para assassiná-la logo de saída? Sim, porque já dou o romance por liquidado a partir do seu prólogo: nele, um “terapeuta de vidas passadas” conta como conheceu a narradora do relato principal, filha de um fazendeiro, feia, mas que causa nele um efeito de sedução inesperado nas sessões de regressão. O propósito é sarcástico, claro, a “terapia de vidas passadas” não é levada a sério, porém serve de mote para se apresente o relato principal e se aceite o “rebaixamento” do tom bíblico. Como a narrativa é contemporânea e anacrônica em relação aos tempos de Salomão, e pode ser uma fantasia pessoal da narradora, uma sublimação da sua feiúra e de seus conflitos com o pai e com os homens em geral, o “tom” já seria aceitável de cara, sem nenhum choque histórico-linguístico. Certo?

Errado. Para sobreviver (pelo menos no sentido ficcional) à tosquice da primeira parte (que, além de ser uma introdução canhestra, é MUITO RUIM enquanto texto), Scliar teria que criar uma voz para a narradora (mesmo que ela seja “não-confiável”, uma mulher contemporânea devaneando ser uma mulher da época salomônica) que nos convertesse à sua proposta, que tornasse secundária a “inverossimilhança” e “desajuste” do tom, debochado e chanchadesco, com relação aos clichês com que as épocas bíblicas normalmente são tratadas e retratadas (em geral, de forma solene e elevada). Munido com as armas do pós-feminismo, o tom narrativo ressalta a sexualidade da mulher que se contrapõe ao universo chauvinista do patriarcalismo dominante no imaginário bíblico e no discurso que sempre se adotou com relação aos episódios do “livro sagrado”:

“Mas eu não podia parar de pensar, de maquinar coisas. E o que maquinava agora era um plano para mobilizar as mulheres. Para que trabalhassem para mim?  Para que me ajudassem a chegar ao leito de Salomão? Sim, mas não apenas isso. De repente, eu queria mais. Queria solidariedade, a verdadeira solidariedade das oprimidas. E contava chegar a isso partilhando com elas, da forma mais sincera e aberta possível, minha angústia. Queria mostrar-lhes que minha virgindade era um pouco a virgindade delas (mostrando que mesmo as descabaçadas continuavam, psicologicamente, socialmente, virgens), que minha marginalização tornava-as também marginais, que minha feiura era também a feiura delas—se não uma feiura externa, pelo menos interna, feiura de tristeza, do desamparo, por aí. Não tínhamos por que competir; ao contrário, só a união nos faria fortes, daria sentido à nossa vida ali no harém…” (ela realmente precisava assistir a Lanternas Vermelhas).

A narradora é a moça feia, com uma fome sexual intensa e frustrada (só tinha uma pedra polida para se satisfazer), mesmo casando-se com o rei Salomão, que tem tantas esposas e concubinas que não quer perder tempo com uma feiosa que arrematou para consignar uma aliança política mais para insignificante. O desvirginamento da nova esposa nem é consumado porque o rei broxa no momento azado (apesar de ela ser, como se diz, uma “raimunda”, feia de cara, boa de bunda).

Que oportunidade perdida por Scliar. O que um Joseph Heller não faria (e aliás fez, em obras como o adorável Só Deus sabe) com essa sem-cerimônia com os incidentes da Bíblia, com esse rebaixamento do solene e do elevado para mostrar quão comezinho e humano tudo aquilo é, no fundo, como todas as épocas e fatos “históricos” o são, quando se lhes retira a capa mistificatória. O problema é que Scliar passa longe de ser um Heller, seu reles relato faz parecer que, para ele, o máximo de profanação do tom solene-patriarcal, da supremacia do macho da espécie, é usar termos chulos (foder, broxa, cabaço, caralho etc) e o repertório da sacanagem popular, que sempre foi e sempre será pândego e rebaixante, tanto no sentido saudável, picaresco, quanto no sentido preconceituoso e truculento. O encanto que poderia ter o uso desse recurso logo se torna cansativo e gratuito.

Como já disse, o desastre de A MULHER QUE ESCREVEU A BÍBLIA não reside no apelo ao chulo, ao chanchadesco ou a qualquer elemento paródico: é o fato de que a “voz” da narradora não consegue nos conquistar, não consegue nos convencer, comover ou instigar, nem no plano sexual (no sentido político e/ou erótico), nem no plano histórico, nem no plano da linguagem. A certa altura, ela diz que “Eu tinha uma história para contar—eu tinha uma grande história para contar—e iria contá-la…” Se ela iria contá-la como estava nos contando a sua própria história, a Bíblia jamais teria se tornado o Livro da Humanidade. Me desculpe, Dona Feia, mas beleza, aqui, é fundamental.

Porque o grande crime de Scliar com relação ao mote que recolheu de Bloom é o de tornar escandalosa a ideia de que essa mulher, em particular, possa ter escrito a Bíblia. Ele não nos dá uma migalha de fome intelectual, de curiosidade filosófica ou de qualquer coisa próxima de uma estatura cognitiva ou criativa que a autorizem a ser essa pessoa evocada por Bloom. A narradora de Scliar aprende (transgressoramente, para os padrões da época) a escrever. E tão somente.  Ao interceptar uma carta dela, em que se queixa ao pai do tratamento a que está sendo submetida na Corte do rei, Salomão—o qual está insatisfeito com o resultado do trabalho dos anciãos encarregados de escrever o que será posteriormente a História Sagrada—a perdoa pela “traição”,  encantando-se com o estilo, e a encarrega de fazer a versão final. Mas isso são fatos “externos” à personagem e à sua voz narrativa, em nenhum momento o leitor é brindado com um vislumbre dessa capacidade estilística e intelectual. Ou seja, no fundo Scliar rebaixa a sua heroína:

“Segundo os anciãos, Deus criara o primeiro homem a partir do barro. Eu não tinha nenhuma objeção a essa humilde matéria-prima. Mas por que o homem primeiro, e não a mulher? E por que tinha a mulher sido criada de maneira diferente? (…)

   Decidi corrigir tais equívocos mobilizando para isso as minhas próprias fantasias. Criados, o primeiro homem e a primeira mulher enamoram-se loucamente um do outro, e aí transformam o Éden num cenário de arrebatadora paixão. Fodem por toda parte, na grama, na areia, à sombra das árvores, junto aos rios. Fodem sem parar, como se a eternidade precedendo a criação nada mais contivesse que a paixão deles sob forma de energia tremendamente concentrada. O encontro dos dois era, portanto, uma espécie de Big-Bang do sexo, muito Big e muito Bang. Todas as posições eram usadas, todas as variantes experimentadas, isso sob o olhar curioso das cabras e dos ornitorrincos e, mais, sob o olhar benévolo de Deus.

   Que, na minha versão, não os expulsava do Paraíso; ao contrário, encorajava-os: agora que descobristes o amor, podeis enfrentar a vida como ela é, a vida cheia de som e de fúria.”[1]

Pior ainda: ele torna a hipótese da sua existência um besteirol. Deve ser por isso que o romance agradou uma parcela de leitores que o acharam “delicioso” e “divertidíssimo”.  É a triste ideia de humor que algumas vozes “(de)formadoras de opinião” fazem.


[1] Há inclusive passagens de mau-gosto extremo, como aquela em que ela descreve o corpo da concubina que se torna sua melhor amiga, tomado pelo câncer:

“Aqueles seios—o que fora feito deles? Um deles, o esquerdo, ou o direito, já não lembro, ainda se mantinha um tanto ereto, como resistindo teimosamente, mas o outro, o direito ou o esquerdo, apresentava-se murcho, deprimido, exaurido: aquele seio já desistira de lutar, aquele seio começava a percorrer o Vale das Sombras da Morte, abanando à direita e à esquerda, alô, Sombras da Morte, estou chegando, o que é que se vai fazer, hein, Sombras da Morte, bem que eu queria ter evitado esta jornada, ou pelo menos ter ficado para trás como o meu companheiro seio, mas que posso fazer, Sombras da Morte, sempre fui apressado, sempre quis resolver logo as coisas, quando Salomão nos chupava eu era sempre o primeiro a crescer e a ficar com o bico durinho e agora estou aí, uma passa seca…”

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