MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

22/04/2014

No labirinto, o temor do espelho: o Simón Bolívar de García Márquez

GabrielGarciaMarquez Bajageneral em seu labirinto

“O vigor da alma macerada pela dúvida, ou insuflada pelo arroubo da imagem pública, quase sempre arremata o fado desses protagonistas que pelejam consigo, fazendo do amor-próprio a companhia constante de um segundo eu, um que não raro é infiel e inimigo. O resultado é que todos eles temem o espelho; e os que encontram conforto nele, nos deixam intuir a ironia que se lhes impõe sob a máscara nem sempre confortadora de um auto-engano engenhosamente sutil.” (José Luiz Passos, Machado de Assis: o romance com pessoas, 2007)

“Terminó afeitándose a ciegas sin dejar de dar vueltas por el cuarto, pues procuraba verse en el espejo lo menos posible para no encontrarse con sus propios ojos…” (Gabriel García Márquez, El general en su laberinto, 1989)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 22 de abril de 2014)

Há  25 anos o recém-falecido Gabriel García Márquez publicava seu, a meu ver, derradeiro grande romance, O general en su laberinto, no qual conseguiu conciliar com maestria o estilo enxuto de relatos mais curtos (Ninguém escreve ao coronel; Crônica de uma morte anunciada) com o sopro épico-elegíaco mais grandiloquente de Cem anos de solidão, O outono do patriarca ou O amor nos tempos do cólera[1].

Nele, acompanhamos os últimos meses (em 1830) da vida de Simón Bolívar. Aos 47 anos, sua saúde está completamente deteriorada (a certa altura, uma virgem passa uma noite com ele: “Entonces ella conoció palmo a palmo el cuerpo más estragado que se podia concebir: el vientre escuálido, las costillas a flor de piel, las piernas y los brazos en la osamenta pura, y todo él envuelto en un pellejo lampiño de una palidez de muerto, con una cabeza que parecia de outro por la curtimbre de la intempérie”[2])e ele anuncia a renúncia e o exílio.

Ninguém bota fé nessas resoluções, pode não passar de uma manobra insidiosa para permanecer no poder (mesmo por detrás dos bastidores). Não obstante, com uma numerosa comitiva o Libertador atravessa a Colômbia, saindo de Bogotá (que lhe é hostil) para atingir a litorânea Cartagena, onde supostamente embarcaria para o exterior. Um percurso acidentado, com a navegação do rio Magdalena e várias paradas e reviravoltas, tanto no estado físico quanto nas expectativas políticas (nada moribundas, apesar dos enfáticos pronunciamentos) do homem que sonhou criar uma nação continental unificada e que, por conta disso, participou de guerras intermináveis na região que compreende hoje a Colômbia, a Venezuela, a Bolívia, o Equador e o Peru (e até hoje temos a utopia bolivariana alimentando regimes controversos e incômodos).

6_____Antonio Meucci_ Simón Bolívar_ Miniatura sobre marfil 0,102 x 0,087_Cartagena, 1830bolívar

São oito capítulos de rara densidade. García Márquez adotou uma linguagem que mimetiza o sofrimento físico do general e também o fardo da sua memória. Quando se lê a certa altura: “Lorenzo Cárcamo lo vio levantarse, triste y desguarnecido, y se dio cuenta de que los recuerdos le pesaban más que los años”[3], o leitor já se deu conta de que isso não é apenas um modo de dizer. A carga de reminiscências que cada subordinado, amante, visita, inimigo, aliado, lugarejo, traz a Bolívar é palpável linha a linha e justifica plenamente o belo título do romance (diga-se de passagem, uma das virtudes supremas do Nobel de 1982 era a acurada escolha dos títulos de suas obras —alguns deles até se tornaram proverbiais, como Crônica de uma morte anunciada).

Não é à toa que o próprio escritor, tal como o personagem (cujo “espírito” ele parece ter incorporado nas 280 páginas do seu relato), se referiu explicitamente ao “horror de este libro”. Trabalhando a História, o mito pessoal, descendo ao detalhismo mais fisiológico (afora as mesquinharias pessoais), de parelha com as considerações mais poéticas e utópicas da condição humana, e, pairando sobre tudo, a questão da imaginação moral do seu protagonista[4], O general en su laberinto não faz concessões, nem mesmo ao lado “folclórico” da fama de García Márquez (o tal do realismo fantástico), para o qual ele retrocederá no romance seguinte, O amor e outros demônios (1994).

Chega um ponto em que ele narra Bolívar ainda vivo (o que ele foi e o que restou, “alma macerada”) e já falecido (com todas as consequências, práticas e simbólicas, dessa morte), quase que concomitantemente: En la berlina del señor de Mier, el general hizo el polvoriento camino que su cuerpo sin él había de haver diez dias después en sentido contrario…”[5]

Mas a atmosfera que se destaca do “horror deste livro”, talvez o mais profundo entre os que ele escreveu, com toda a azáfama política e movimentação geográfica que cercam a figura de Bolívar, é a mesma que permeia todo o seu universo ficcional: um tempo de estagnação, de espera infindável, empacada, amorfa e quase imemorial:      “En uno de esos escrutinios del pasado, perdido em la lluvia, triste de esperar sin saber qué ni a quién, ni para quê…”[6]

Não deixa de ser uma melancólica ironia que a importância de García Márquez tenha sido lembrada pelo atual presidente de seu pais natal, Juan Manuel Santos, praticamente com as mesmas palavras usadas para o seu herói de morte anunciada: “Digan lo que digan, Su Excelencia seguirá siendo el más grande de los colombianos hasta en los confines del planeta”[7] (com a ressalva, claro, que Bolívar era venezuelano).

E 25 anos depois (e quase dois séculos dos acontecimentos ali relatados) a pergunta-chave embutida no exclamativo “suspiro” do general: “Cómo voy a salir de este laberinto!” continua válida quanto aos impasses latino-americanos, para bolivarianos ou globalizados.

general en su laberinto

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Tradução da epígrafe: “Acabou de fazer a barba às cegas, sem deixar de dar voltas pelo quarto, porque procurava ver-se no espelho o menos possível para não topar com os próprios olhos” (Moacir Werneck de Castro, O general em seu labirinto. A Record, que o publica desde 1989, lançou recentemente nova edição, com novo tratamento gráfico e capa)

Citações do texto original extraídas de exemplar da Editorial Sudamericana, 1989.

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NOTAS

[1] Concordo com Perry Anderson, quando afirma (num dos ensaios de Espectro: da direita à esquerda no mundo das idéias): “Desde o início de sua carreira, Márquez vem praticando dois estilos de escrita relativamente distintos: a prosa figurativamente carregada, já visível de maneira brilhante em seu primeiro livro de ficção, A revoada (…) e a concisão objetiva de histórias como Ninguém escreve ao coronel ou reportagens como Notícia de um sequestro…”

[2] “Então ela conheceu palmo a palmo o corpo mais estragado que se podia imaginar: o ventre esquálido, as pernas e os braços em pele e osso, e todo ele envolvido numa pelanca glabra de palidez mortal, com uma cabeça que parecia de outro, tão curtida estava pela intempérie.” (aqui, como nos demais casos, cito a tradução de Moacir Werneck de Castro)

Ainda sobre o contexto dessa passagem, ficamos sabendo que o General e a moça dividem castamente uma rede. A questão da “imagem pública”, da “lenda convertendo-se em verdade”, que cerca a figura do Libertador, fica evidenciada de forma notavelmente sintética na despedida:

“__Te vas virgen, le dijo.

     Ella le contesto com una risa festiva:

__Nadie es virgen después de uma noche com Su Excelencia.”

(“__ Você vai embora virgem—disse.

   Ele respondeu com um riso festivo:

__Ninguém é virgem depois de uma noite com Sua Excelência.”)

Outro exemplo, desta vez de uma declaração que o general poderia ter soltado ou não a respeito de um de seus seguidores:

“No podía disimular su contrariedad. Wilson había llegado a creer que el general no lo amaba, y que solo lo mantenía en su séquito por consideración a su padre, a quien nunca acababa de agradecer la defensa que hizo de la emancipación en el parlamento inglês. Por infidencia de un antiguo edecán francês sabía que el general había dicho: A Wilson le falta pasar algún tiempo en la escuela de las dificultades, y aun de la adversidad y la miséria. El coronel Wilson no había podido comprobar si era cierto que lo había dicho, pero de todos modos consideraba que le hubiera bastado con una sola de sus batallas para sentirse laureado en las três escuelas…” (“Não podia disfarçar sua contrariedade. Chegara a acreditar que o general não gostava dele, e que só o mantinha no séquito em consideração a seu pai, a quem ficara para sempre agradecido pela defesa que fez da emancipação americana no parlamento britânico. Por indiscrição de um antigo ajudante-de-campo francês, soube que o general tinha dito: Falta a Wilson passar mais algum tempo na escola das dificuldades, ou mesmo da adversidade e da miséria. O coronel Wilson não pôde comprovar se era verdade que ele o houvesse dito, mas de qualquer modo achava que bastaria uma só de suas batalhas para se considerar laureado nas três escolas…”)

Numa de suas muitas lamentações, Sua Excelência declara: “Estoy condenado a un destino de teatro”.

[3] “ Quando Lorenzo Cárcamo o viu levantar-se, triste e desamparado, percebeu que as recordações lhe pesavam mais que os anos…”

[4] Sigo aqui a linha de reflexão evidenciada pela epígrafe de José Luiz Passos, da peleja do personagem consigo mesmo e também com sua imagem pública, ou seja, o espelho deformado que o hipertrofia e o espelho íntimo que ele tenta evitar. Como Passos diz dos romances machadianos, o de García Márquez (a utilização de um personagem histórico não altera em nada esse cerne) tem por objeto “o modo intrincado pelo qual alguém compõe, justifica e defende a noção, frequentemente equivocada, do seu próprio valor, um esforço que em muitos casos está fadado a falhar, trazendo à tona, pela conspurcação do humano, uma visão rica e atroz sobre a nossa relação com a imagem que pessoas podem ter de si mesmas.”

[5] “Na berlina do senhor de Mier, lá se foi o general pelo caminho empoeirado que dez dias depois seu corpo , sem ele, iria percorrer em sentido contrário…”

[6] “Num desses escrutínios do passado, perdido na chuva, triste de esperar não sabia o quê nem a quem, nem para quê…”.

[7] “Digam o que disserem, Sua Excelência continuará sendo o maior dos colombianos até os confins do planeta”

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21/04/2014

CALDO REQUENTADO: “Do amor e outros demônios”

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de agosto de 1994)

Deve haver um médico sanitarista recalcado em Gabriel García Márquez. Antes foi o cólera, agora é a raiva em Do amor e outros demônios (Del amor y otros demônios, 1994, em tradução de Moacir Werneck de Castro), lançado pela Record com um alarde que ela não dava ao autor colombiano desde seu outro livro epidêmico, O amor nos tempos do cólera (1985).

Do amor e outros demônios nos leva ao século XVIII e mostra como o erudito padre Cayetano Delaura é enviado pelo seu protetor, o Bispo de Cáceres y Virtudes, para verificar se uma menina de 12 anos, Sierva Maria, que se encontra encerrada num convento, está de fato endemoniada (ou energúmena, como se diz no texto). Sierva fora mordida por um cão raivoso e não apresentara sintomas da doença. Ela e Delaura apaixonam-se, ele cai em desgraça e atiça-se a fúria episcopal contra a menina.

Márquez também nos apresenta as três mulheres da vida do pai de Sierva, Marquês de Casalduero, o qual “tinha o corpo esquálido, a timidez irremissível, a pele lívida, os olhos de um azul merencório, e o cobre puro da cabeleira radiosa”, herdados pela filha: seu amor de juventude, Dulce Olivia, encerrada num manicômio; sua primeira esposa, Dona Olalla, mulher de sociedade, morta por um raio; e a mãe da energúmena, que “soltava umas ventosidades explosivas e pestilentas que assustavam os mastins” e da qual os homens “fugiam em massa para se porem a salvo de sua voracidade insaciável”.

O romance é extremamente fácil de ler. O leitor mais atento encontrará um fundo alegórico na figura de Sierva Maria, a menina incapaz de assimilar o processo civilizatório, mas totalmente aberta à (contra)cultura dos escravos negros. Filha de um homem fraco, responsável pela decadência da família que, entretanto, ainda detém status e poder, ela bem pode ser a América resistindo à hegemonia europeia e promovendo um alegre (contudo incompreensível para a civilização cristã e com resultados trágicos) sincretismo, o que facilita o acesso à narrativa dos já um tanto desgastados recursos do “realismo fantástico”, que lhe dão ar de novela das oito.

Não são, porém tais toques telenovelescos (que sempre estiveram presentes em García Márquez e explodiram em O amor nos tempos do cólera) que assombram a leitura de Do amor e outros demônios como Sierva Maria assombra as freiras do convento. O problema é o relato monocórdio, outra ameaça que sempre pairou sobre as suas obras (detectável inclusive na mais famosa delas, Cem anos de solidão) e que ele conseguiu driblar de alguma forma em seus contos ou em textos com o grau de elaboração de Ninguém escreve ao coronel, O outono do patriarca e Crônica de uma morte anunciada. Depois deste último livro, parece que ele perdeu um tanto a mão e o tino para driblar a monotonia, deixando-se embalar pelas águas da cafonice folhetinesca, à exceção de O general em seu labirinto.

Talvez o leitor vá tão rápido na leitura, achando que acontece muita coisa, que nem repare no clima de lengalenga. E García Márquez continua, malgré lui, um escritor interessante. Só que ele instiga muito mais quando se perde no labirinto com seus generais e patriarcas outonais do que requentando, como uma bruxa velha jogando cabeleiras que não param de crescer, como tempero, o caldo do “fantástico”.

Bom que haja ainda pitadas labirínticas em Do amor e outros demônios. Sinal de que sempre se pode esperar uma futura obra-prima do único autor do grande boom da ficção latino-americana premiado com o Nobel[1].

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/03/15/uma-boa-hora-na-obra-de-garcia-marquez/

https://armonte.wordpress.com/2012/03/15/entre-a-implicancia-e-a-admiracao-a-necessidade-da-releitura/

http://armonte.wordpress.com/2014/04/17/garcia-marquez-basico/

https://armonte.wordpress.com/2013/04/26/leituras-em-espelho-a-casa-das-belas-adormecidas-e-memorias-de-minhas-putas-tristes/

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[1] Se não se levar em conta Miguel Angel Asturias (Nobel de 1967), o qual, de todo modo, pertence a um momento anterior.

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18/03/2012

Autodiagnósticos febris: O médico diante do monstro loquaz

(aproveito o lançamento de uma nova tradução de O DUPLO, realizada por Paulo Bezerra, para colocar aqui no blog um dos textos que escrevi para meu curso de maio-junho de 2008, AS MARGENS DERRADEIRAS, no qual uma das obras focalizadas era NOTAS DO SUBTERRÂNEO; alerto que, como os demais textos que coloquei dessa safra, toda a linha argumentativa é extraída de uma interpretação freudiana da obra condutora do curso, O ESTRANHO CASO DO DR.JEKYLL  E DO SR. HYDE)

“Sou um homem insignificante, como o senhor não ignora. Para sorte minha, porém, não lamento a minha insignificância. Ao contrário. Muito ao contrário, até me sinto orgulhoso por não ser um indivíduo notável, mas uma criatura medíocre…Só ponho máscara no rosto quando vou a algum baile à fantasia; não sei andar todos os dias pelo mundo com uma máscara pregada na cara.”

(Dostoievski, O Duplo, 1846)

“Não sonho? Ou sim? É engano.

Bem sei que estou acordado.

Eu sou Segismundo… Não?

Céus…o que é que foi mudado?

Que fez minha fantasia?

O que fizeram de mim?

Que houve enquanto eu dormia?

Isto que eu sou terá fim?”

(Calderón de La Barca, A vida é sonho, 1635)

 

Asseguro-lhes  que ter uma consciência exagerada é uma doença,  verdadeira e completa doença.Para o dia-a-dia do ser humano seria mais do que suficiente a consciência do homem comum…”

(Dostoiévski, Notas do Subterrâneo, 1864)

         Na época em que Dostoievski publicou Notas do Subterrâneo [1], em 1864, ele mantinha intensa atividade jornalística, que já resultara num livro narrando sua primeira viagem pela Europa, aos 41 anos, Notas de inverno sobre impressões de verão (1862-1863), do qual eu gosto muito.

Nas revistas para os quais colaborava, a ênfase era no pótchvienitchestvo (de potchva, solo), uma posição de defesa das raízes nacionais e populares, o famoso eslavismo contra o cosmopolitismo defendido por parte dos intelectuais. É a partir dessa posição que Dostoiévski julga cidades como Londres ou Paris de forma bem crítica e até ácida, principalmente com relação ao lar do Dr. Jekyll. Vejam o que ele escreve sobre a igreja anglicana: “É a religião dos ricos e já completamente sem máscara. Pelo menos é racional e sem embuste. Esses professores de religião, convictos até o embotamento, têm uma espécie de divertimento: ser missionários. Percorrem todo o globo terrestre, penetram nas profundezas da África, a fim de converter um selvagem, e esquecem os milhões de selvagens em Londres porque estes não têm com que lhes pagar.”

Pois bem, Dostoievski lançará em 1866 sua obra mais conhecida, Crime e Castigo.  No começo da década, ele publicara Humilhados e Ofendidos & Recordação da Casa dos Mortos, retomando sua carreira após o degredo na Sibéria, onde cumpriu pena por conspirar contra o Czar.

No período compreendido entre essas produções, a crítica em geral vê uma suposta “fase de transição” entre as primeiras obras, ainda muito românticas, tateantes, ou insatisfatórias, e as obras maiores (em tamanho, inclusive), aquela atordoante seqüência: Crime e castigo; O idiota (talvez o seu mais belo livro, em minha opinião); Os demônios; O adolescente e por fim sua obra máxima, o fascinante, tumultuado (pois é uma confusão dos diabos) e avassalador Os irmãos Karamázov, além dos menores (em extensão) e mais harmônicos O eterno marido e Um jogador.

Notas de inverno sobre impressões de verão, bem como o insólito e chocarreiro conto O crocodilo e Notas do subterrâneo pertenceriam à tal “fase de transição”. No livro de viagens e no conto (que ficou inacabado) prevalece o lado satírico (e, mais ainda, um lado vigorosamente intelectual de um autor sempre criticado e relativizado nesse plano devido às suas teorias messiânicas sobre o povo russo); além disso, vemos uma cabal demonstração de “consciência de autor”, quer dizer, do ato da escrita, desmentindo mais um preconceito: de que ele era um escritor “tomado”, tumultuoso, irregular (embora nos seus maiores livros isso seja um problema, que eu creio mais ligado aos problemas editoriais, de ter de entregar textos em prazos previamente combinados, já que Dostoiévski era um escritor bastante profissional e ao mesmo tempo um sujeito sempre endividado, do que de uma falta de controle artístico).

O tempo todo ele está consciente de estar sendo lido, de que seu texto satisfaz/contraria expectativas. Dostoiévski, felizmente, nunca se tornou um puro ideólogo. Em O Crocodilo, o narrador conta como Ivan Matviétch, seu “culto amigo, colega e parente em grau afastado, foi engolido por um crocodiloem exposição. Matviétch permanece vivo no interior do “mamífero” (como é referido ao longo do texto) e se serve da sua situação para tiranizar o amigo, que acaba por nos revelar seu ódio por ele (ódio que não se estende à esposa do engolido, muito pelo contrário).

Temos aqui outro precursor de Kafka (e também um descendente legítimo de Gogol, lembrando-nos o espírito malicioso de um Machado de Assis, que assinaria, sem problemas, passagens como: “…Qual a propriedade fundamental do crocodilo? A resposta é clara: engolir gente. Como conseguir, então, pela disposição do crocodilo, que ele engula gente? A resposta é mais clara ainda: fazendo-o oco. Já está há muito tempo resolvido pela física que a natureza não tolera o vazio. De acordo com isto também as entranhas do crocodilo devem ser justamente vazias para não tolerar o vazio; por conseguinte, devem incessantemente engolir e encher-se de tudo o que esteja à mão. E eis o único motivo plausível por que todos os crocodilos engolem a nossa espécie. Não foi o que sucedeu, porém, na disposição do homem: quanto mais oca é uma cabeça humana, tanto menos ela sente ânsia de se encher; e esta é a única exceção à regra geral”), inclusive pela “acomodação” de Ivan Matviétch na sua situação, que se lhe torna um quotidiano. Ele chega a imaginar toda uma existência feliz dentro do crocodilo. Pena que o texto não tece prosseguimento…

É preciso questionar esse conceito de “fase de transição”, que nos proporcionaria a seguinte paisagem: antes, obras imaturas; depois, obras grandiosas; e, no meio, essas… o quê?

Em primeiro lugar, creio ser muito duvidoso que no futuro mesmo os mais dedicados leitores, se os houver, vão se ocupar muito dos catataus da grande fase. Penso ser mais provável que Notas do Subterrâneo, até por ser um ponto de inflexão e conter em miniatura tudo o que depois se espraia em grandes painéis, acabará como o seu texto mais valorizado e estudado [2]; em segundo lugar, é bobagem, quando não preguiça, ignorar um texto como O Duplo (ou O Sósia), que, publicado em 1846, quando Dostoiévski tinha 25 anos, foi desprezado e decepcionou os críticos da época, que tinham gostado do seu primeiro livro, Gente Humilde. Para muitos, foi um atestado de que os primeiros juízos favoráveis eram apressados.

O pior de tudo é que essa visão negativa ainda prevalece, quando, na verdade O Duplo é a porta de entrada verdadeira para a grande ficção dostoievskiana posterior. É um texto tão original quanto William Wilson, mesmo com o tema similar do doppelgänger  (associado ao tema do homo burocraticus), e escrito num estilo tão saturado, tão denso que chega a ser quase intolerável. E é por isso que foi rejeitado: ali está o gênio em carne viva, cru, sem a menor manha ou técnica narrativa aliviadora. Perto dele, Notas do Subterrâneo é uma experiência de leveza.

O Duplo (que tem cerca de 120 páginas e é dividido em 13 capítulos) [3] começa com o despertar do protagonista, Goliádkin, que é… funcionário público, também num posto bem subalterno e insignificante. O despertar de Goliádkin é  uma ação tão contrariada que já cabe a pergunta: ele acorda para sonho ou pesadelo? De todo jeito, não é para a realidade, que ele não é capaz de percebê-la claramente, tão envolvido está nas operações do seu ego: por um lado, queria que seu id se soltasse e ele pudesse cuspir na cara das pessoas, desprezá-las frontalmente, por outro é torturado por um superego particularmente mortificante, e tomado por sentimentos de vergonha e asco por si mesmo.

Goliádkin vive num tugúrio com um criado que o despreza e que ele odeia, Petrúchka, por ser beberrão e insolente. Em Notas do Subterrâneo também haverá uma relação co-dependente e de ódio com um criado, Apollon.

No primeiro capítulo ele descobre que está de posse de 750 rublos (a impressão que se tem, conhecendo-se Dostoiévski e embora não se faça referência a isso no texto, é que tal quantia foi ganha no jogo, de tal forma o fato de possuí-la surpreende o recém-desperto Goliádkin); entrega-se então a uma fantasia (antes mesmo de Emma Bovary aparecer na literatura, o que ela fará apenas em 1857, já havia bovaristas): aluga uma carruagem cara, ordena a seu criado que vista libré (“a tiracolo, um espadim de lacaio), e sai pelas ruas de São Petersburgo ostentando uma fidalguia cômica,

Percebemos já de saída que Goliádkin não deseja ser ele. Também já de saída aparece uma figura onipresente na sua vida: o diretor da repartição na qual trabalha, Andrei Filíppovitch, que o reconhece na absurda condução (e o funcionário faltara ao expediente naquele dia). Em dúvida, se deve cumprimentar o superior, Goliádkin pensa: “Eu não sou eu. Sou um outro, uma criatura distinta; não sou mais eu. A hesitação nessa e em outras situações nos dá uma pista sobre o seu caráter: a irresolução, a incapacidade de levar as coisas até o fim (em Notas do subterrâneo há um trecho-chave a respeito do mecanismo mental desse tipo de personagem: “Eu estava tão acostumado a pensar e imaginar tudo segundo os livros, e a me representar todas as coisas do mundo conforme eu as criara antecipadamente em meus sonhos…”)

No capítulo seguinte, Goliádkin procura um médico com quem já se consultara, Krestián Ivánovitch Rutenspítz. Não tem hora marcada e sua aparição é tomada como uma descortesia; como o narrador futuro (quase 20 anos e uma estada na Sibéria depois) que fala do seu subterrâneo, Goldiákin tem consciência das suas gafes, mas parece não resistir a cometê-las e agravá-las. Ele vive em estado de vexame, no sentido social e moral (este último termo tomado como “percepção de si mesmo”, nesse período tão anterior a Freud). O Dr. Krestián dá conselhos a ele sobre um modo de viver melhor: “O senhor precisa cultivar relações com gente alegre, procurar ambientes onde haja bom humor; ir de vez em quando ao teatro e ao cassino, em companhia de outras pessoas; beber mesmo, com moderação. O que não lhe convém é ficar em casa, passar o tempo sozinho”, ao que Goliádkin replica que não teve “treinamento” para viver na Sociedade: “Não conheço as regras de etiqueta. Nunca tive tempo de aprender… E o trecho que coloquei como epígrafe da aula:Sou um homem insignificante, como o senhor não ignora. Para sorte minha, porém, não lamento a minha insignificância. Ao contrário. Muito ao contrário, até me sinto orgulhoso por não ser um homem notável, mas uma criatura medíocre [4] … Não sei dissimular… Só ponho máscara no rosto quando vou a algum baile de fantasia; mas não sei andar todos os dias pelo mundo com uma máscara pregada na cara”.

Como se vê, é como se Akaki Akakiévitch (de O capote) adquirisse de repente uma autoconsciência estridente. Temos também já um tagarela, como o será seu irmão espiritual na novela de 1864. E faz um discurso desses, tem esse de não saber usar máscara, um homem que naquele dia mesmo se proporcionou um dia de fantasia, dissociando-se da sua vida quotidiana!

É interessante também sublinhar essa idéia engenhosa da procura de um médico: Hyde quer ter sua existência reconhecida por Jekyll, quer que ele compartilhe do seu sofrimento, sem que possa resolvê-lo . Logo no início de Notas do Subterrâneo, o narrador já se apresenta como um “homem doente” (e também um homem “mau”, “desagradável” e que “sofre do fígado”, a homologia entre essas características morais e física é maravilhosa). E afirma: Não me trato, nunca me tratei, embora respeite os médico e a medicina. Além de tudo, sou supersticioso ao extremo; bem, o bastante para respeitar a medicina”. Ironicamente, a medicina, a idéia de cura que associamos a ela, é etiquetada como superstição. É uma das várias investidas demolidoras desse “homem subterrâneo” contra o Palácio de Cristal edificado com as noções de Razão, Saúde e Ordem Social.

Voltando ao Duplo, a visita ao médico também é importante em termos de intriga: nela, menciona-se uma suposta desfeita de Goliádkin a Klara Olsúfievna, a filha de um antigo protetor (ao que parece, ele foi o responsável pela “colocação” do nosso herói no serviço público). Numa recepção em sua casa, ela cantara uma ária e Goliádkin lhe dissera que ela a cantava “com muito sentimento”, mas não com o “coração puro”. E ainda dissera ao pai dela, Olsúf Ivánovitch: “sei muito bem quanto lhe devo, não me esqueço de todos os benefícios com que desde a minha infância, o senhor tem me distinguido. Sei apreciá-los e sou grato. Mas, um dia, o senhor terá que abrir os olhos. Abra os olhos e veja o que se passa em volta do senhor.”  Goldiákin aludia a puxa-sacos, bajuladores, que serão seus “inimigos” ao longo da narrativa (o chefe de todos eles sendo Andrei Filíppovitch). Bem, será que isso aconteceu mesmo? Ou foi imaginado pelo febril e bovarista Goliádkin, que deve ser mesmo protegido de Olsúf Ivánovitch, mas que provavelmente não seria recebido em recepções formais por família de condição tão [klara]mente superior.

Entre as intrigas dos inimigos, Goliádkin conta que espalharam o boato de que ele (só que ele se refere ao caso como se estivesse falando de um “outro”) estaria comprometido com uma alemã (cujo nome, Karolina Ivánovna, e a ambigüidade da posição social—cozinheira? cortesã? — nos remetem à “amiga” de Sua Excelência em O Capote, novela publicada quatro anos antes e adorada pelo jovem Dostoiévski), o que seria uma desonra para ele.

No capítulo seguinte, acompanhamos o Goliádkin de fantasia zanzando por uma galeria chique (joalheria, loja de móveis, de tecidos), reservando coisas que nunca teria dinheiro para pagar: “Quando algum negociante mencionava a conveniência de deixar um sinal para que os artigos ficassem reservados, respondia que sim, que sim, depois mandaria trazer o sinal. Ocupou-se assim por muito tempo, e ninguém poderia compreender o objetivo de suas idas e vindas.” Ao contrário de Akaki Akakiévitch, o mundo exterior existe para Goliádkin, só que na base da frustração e do desejo… ou seja, na outra margem. Ele não consegue s conformar com o fato de ser um pobretão. Além disso, a narração desse fingir fazer compras sublinha para o leitor sua tendência um tanto maníaca.

Após essas “idas e vindas incompreensíveis” e um encontro cheio de arestas com conhecidos da repartição num restaurante da moda, ele manda seguir para a residência de Olsúf Ivánovitch. Já temos um alerta de que algo está errado: Comportava-se como se estivesse a ponto de realizar alguma coisa sumamente desagradável Quem, acaso, o observasse, poderia pensar tudo, menos que estava se encaminhando para um jantar que, para ser ainda mais agradável, ia se celebrar em família, isto é, sans façon, como costumam dizer as pessoas da alta sociedade”.

Ao chegar, é barrado pelos criados. Insiste, diz que foi convidado, mas o criado mais graduado lhe afirma que não podem recebê-lo. Nesse momento vexatório (ou, num termo muito comum em Dostoiévski, “desagradável”; não só o comportamento, não só o que acontece a eles, porém até o caráter de muitos de seus personagens é desagradável), está chegando justamente Andrei Filíppovitch, que lhe pergunta o que aconteceu? “Não tenho que dar contas a ninguém dos meus atos. Trata-se da minha vida privada.” O chefe da repartição fica estupefato: “Goliádkin, que falava do meio da escadaria, olhava para o seu superior hierárquico de baixo para cima, com uma expressão de quem se preparasse para atacar. A cada frase subia um degrau. Andrei Filíppovitch olhou em volta, tomado de certa inquietação. À sua última pergunta, Goliádkin subiu correndo os degraus que ainda os separavam; o seu interlocutor, com presteza não menor, entrou para a ante-sala, fechando a porta atrás de si.”

O foco narrativo, então, se amplia e aproveita a onisciência da terceira pessoa para nos fornecer detalhes dos convivas da casa de Olsúf Ivánovitch por algumas páginas cáusticas, para mostrar que, embora ridículo, seu herói não está de todo errado em se sentir à parte desse mundo de máscaras. Logo, entretanto, o narrador confessa: “Não, descrever tudo isso, respeitável leitor, excede os poderes da minha inspiração. Prefiro calar-me. Volvamos, portanto, a Goliádkin, o verdadeiro e único herói desta verídica história”.

O verdadeiro herói enveredou por uma situação quase vaudevillesca: escondeu-se entre um grande armário e um velho biombo, em meio a um amontoado de trastes encostados e utensílios caseiros. Ali deixava correr o tempo, na situação de um espectador que não conseguia ver o espetáculo”. Dostoiévski sempre teve pendores teatrais, o que é bem diferente de um talento para o palco, e há sempre uma atmosfera histriônica nas suas histórias. Seu Hamlet interroga-se: “Devo entrar? Ou é melhor não entrar?” Eis a questão. Ele se resolve, “sensatamente”, a ir para casa. E mal adota essa resolução, encaminha-se para adentrar o salão, fazendo o contrário do que se propunha no início (para ele e também para o narrador do subterrâneo, seria muito salutar um regime de “preferia não fazer” bsrtlebyano; contudo, por que não havia de entrar onde todos entravam, ele conclui).

Ali, como não se dança naquele momento, sua presença desastrada, sua figura cômica (parece um espantalho) se destaca: “Caminhava como se obedecesse não à sua própria vontade, mas a uma energia estranha que o impelia cada vez mais para diante. Parecia achar-se num estado de transe em que os seus gestos e movimentos não estavam em correlação com os sentidos. Pisou no pé de um eminente personagem, pisou na cauda do vestido de uma respeitável matrona, tropeçou num tapete e quase caiu, esbarrando num criado que passava com uma bandeja… Só se deu conta de uma coisa: estava diante de Klára Olsúfievna. Naquele momento teria dado tudo que lhe pedissem para desaparecer subitamente… de repente o bulício intenso transformou-se em profundo silêncio como que por um golpe mágico… Pouco a pouco foram todos se aproximando, formando um círculo em torno dele, numa atitude de curiosa expectativa”. Ele ainda tenta balbuciar algumas frases corteses a Klára Olsúfiévna, e alguns parecem prestes a cair na risada. O seu superior lhe lança olhares reprovadores, até que pega firmemente a moça pelo braço e diz a Goliádkin: Que vergonha, homem! Que vergonha!” 

Ele vai para um canto mais afastado, tentando adquirir confiança e dominar a angústia. O criado que repelira a sua entrada vai até ele e lhe diz que alguém lá fora o espera. Goliádkin repete várias vezes que não pode haver ninguém à sua espera e diz: Estou aqui sozinho e por minha própria vontade. Não dependo de ninguém. Enquanto todos assistem à cena, expectantes, nosso herói (que, como todos os dostoievskianos fala muito consigo mesmo) “disse a si mesmo que chegara para ele um instante decisivo. Viu com clareza que nunca voltaria a se apresentar ocasião igual para um golpe de audácia com que afirmasse a sua personalidade. Era o momento de confundir e aniquilar os seus inimigos.” Ele reafirma ao criado de que há um engano e resolve tirar Klára Olsúfiévna para dançar. Um desastre: tropeça, quase a leva junto, os que estão em volta têm de amparar a moça e livrá-la do “par desastrado”. Enquanto todos o exprobram, alguém o agarra pelo braço e outra pessoa vai empurrando-o energicamente numa determinada direção: a saída: Imediatamente sentiu que lhe atiravam a capa sobre os ombros e que alguém lhe enterrava o chapéu na cabeça,..” Ou seja, sua tentativa de se chegar a uma sociedade melhor “sans façon” fracassa. Ainda estamos num universo balzaquiano de “ilusões perdidas”, apesar de Goliádkin ser uma figura, completamente à parte dos ditames do herói romântico ou mesmo realista. Não é simpático, não cria empatia, não é alguém por quem se torça. É um Bartleby ou Akaki Akakiévitch a quem se deu voz.

O próximo capítulo (o quinto) vai se encarregar de mudar tudo e deslocar Balzac e até mesmo Gógol (pois o uso do fantástico deste último é mais sarrudo) para o território de Poe e Hoffmann, do umheimlich, o insólito, o inquietantemente estranho que irrompe em nosso mundo.

Após a expulsão, Goliádkin “sentia-se não só esmagado, mas completa e literalmente aniquilado. Ele mesmo se negava a acreditar que, naquele momento, ainda conservasse a faculdade de viver”. O clima de Petersburgo, como já vimos, colabora para essa sensação de ser o último dos homens. Neve, vento ululante, chicotadas da ventania: “A chuva, a neve, o vento, toda a fúria dos indescritíveis temporais de novembro em Petersburgo, assaltavam Goliádkin de todos os lados…como se o tempo tivesse se aliado aos seus inimigos e jurado a sua perda.”

Já febril (e essa febre não baixará mais durante o resto da narrativa, o que pode nos levar a pensar que os posteriores acontecimentos poderiam ser delírios), ele caminha pela noite, remoendo a ignomínia de que fora vítima, quando percebe alguém na sua cola, um desconhecido que segue seus passos. Goliádkin sente uma sensação aterrorizante: “Tinha-lhe parecido haver reconhecido o estranho. Não era só isto, porém. O pior era que sabia que o conhecia; conhecia-o até muito bem. Tinha-o visto em outra ocasião… Sim, tinha-o visto em algum lugar e não fazia muito tempo… Mas onde? Não era isto, porém, o mais importante… a circunstância principal era que por nada deste mundo desejaria encontrar-se com ele uma segunda vez e muito menos, como agora, em meio à noite. Ainda mais: conhecia muito bem aquele indivíduo e até sabia o seu nome completo. Não obstante, por preço nenhum diria esse nome. Não queria dizê-lo, nunca o repetiria e nem queria admitir que o homem se chamasse dessa forma…”

É possível, de repente, que superego e id se separem bruscamente, após um incidente, como se estivessem numa ponte e cada um fosse para um lado?

Entrando em casa, Goliádkin pára, “como fulminado por um raio, no umbral da porta do quarto. Cumpriam-se plenamente todos os seus pressentimentos; tudo o que temera tornava-se realidade: o desconhecido ali estava, sentado à sua frente, também com o chapéu na cabeça e a capa nos ombros. Ria mansinho, olhava para ele, fazia acenos amistosos com a cabeça [esse comportamento burlesco já indica a quem cumprirá o papel de id]. Goliádkin quis gritar; mas não pôde; quis protestar contra aquilo, mas faltaram-lhe as forças… Havia reconhecido o seu visitante noturno, amigo e inimigo ao mesmo tempo. Não era outro senão ele mesmo… Mais do que um sósia, era o seu duplo, o desdobramento dele mesmo.

No dia seguinte, embora não haja sinais de seu duplo, Goliádkin se sente combalido e desconfiado e quase falta ao serviço (“em todas as ocasiões análogas comprazia-se sempre em justificar-se diante de si mesmo, invocando todas as razões plausíveis, de modo a deixar tranqüila a consciência”; nunca se viu maior fracasso no exercício da racionalização); não consegue vencer a ansiedade e indo à repartição, conhece o novo colega: seu sósia e homônimo. Acabrunha-se, ao que parece à toa: ninguém se espanta com a semelhança ou homonímia.

Ao acabar o expediente, Goliádkin é abordado humildemente pelo Outro, que pede a ele que o escute, já que de minha parte, desde que o vi, experimentei logo pelo senhor uma grande simpatia. Sem muita consciência do que está fazendo, Goliádkin Primeiro (como a narrativa doravante o chama) convida Goliádkin Segundo a sua casa e este “abre seu coração” durante duas ou três horas, confessando erros passados, infortúnios, calamidades e misérias que o reduziram quase à indigência: sequer tem um teto, não possui um mísero tostão para o uniforme regimental, nem um vintém para comer. Chora ao contar suas desditas e isso comove profundamente seu interlocutor, que também desata a falar (toda essa prolixidade revelava que Goliádkin se sentia muito satisfeito”). Vem a hora da vodca e aí o sentimentalismo e as boas intenções imperam. Surgem versinhos de amizade e um convite para morarem juntos e dividirem tudo. E o visitante é instado a dormir ali.

Na manhã seguinte, nem sinal dele. E Goliádkin se arrepende das efusões excessivas, das confidências e do convite para dividirem a moradia. As recriminações ásperas que faz a si mesmo deixam cada vez mais claro de que o superego está falando mais alto em Goliádkin Primeiro(“Nunca hei de aprender a me dominar, a me comportar como devo” ). Na repartição, ao abordar Goliádkin Segundo, este se desvencilha e diz que está sem tempo.

Há um momento em que GoliádkinPrimeirotem de levar papéis que copiara para Andrei Filíppovitch e seu sósia se declara preocupado com um borrão que percebeu na documentação, atrapalhando seu caminho. Enquanto se prepara para pegar um canivete para raspar o tal borrão, Goliádkin Segundo se apodera da pasta e entra na sala do superior, numa primeira atitude de velhacaria que depois será típica (ele se manifestará como um id velhaco, dissimulado, oportunista). Goliádkin percebe que seu duplo está sendo elogiado pelo chefe da repartição pelo trabalho que ele, o original, fizera: “Naturalmente, o primeiro movimento de Goliádkin foi protestar de modo enérgico e com todas as forças contra a preterição de que era vítima. Pálido e trêmulo, ousou dirigir-se a Andrei Filíppovitch. Este, porém, mal compreendeu que se tratava de assunto particular; rccusou-se a ouvi-lo, alegando a razão inapelável de que estava inteiramente atarefado com matéria de serviço. A secura e o tom cortante aniquilaram Goliádkin.” Ele procura tomar satisfações com o (é preciso reconhecer que se trata disso) rival traiçoeiro, só que ele lhe foge o tempo todo, e quando confrontado, sem escapatória, depois de fazer uma reverência insolente e sarcástica, com dois dedos deu inopinadamente um piparote na bochecha direita um tanto gorducha do seu adversário”, o que transforma Goliádkin Primeiro em alvo de ridículo (e aí percebe que o outro está angariando simpatia geral). E toda vez que o recrimina, o duplo lhe lança na cara as confidências da noite em que abriram os corações um para o outro.

Entre outros incidentes, pode-se destacar o seguinte: num restaurante, há um balcão onde a pessoa se serve de bandejas já preparadas. Goliádkin pega uma empada de uma delas. Na hora do pagamento, no caixa, este lhe cobra onze empadas. Espantado, ele diz que o caixa se enganou, mas de nada adianta: as empadas desapareceram e ele é obrigado a pagar as onze, em meio ao constrangimento geral. Nisso, ele vê Goliádkin Segundo esgueirando-se do local, a sorrir, fazendo-lhe acenos e piscando-lhe o olho: na mão ainda tinha um último bocado de empada que, a rir com gosto, levou à boca diante dos olhos assombrados de nosso herói”. Já se percebe o mecanismo psicólogo implícito aqui: Goliádkin delegou ao seu outro todas as ações baixas, todas as inconseqüências e atos vexatórios que se sentia tentado a fazer, mas que nunca levara realmente até o fim, só liberando-se, por fim, depois do ocorrido na casa de Klára Olsufiévna, quando ele se recolheu dentro de uma atitude defensiva e paranóica, enquanto soltava pelo mundo seu duplo malandro e capaz de qualquer coisa. Só que ele é que paga pelos feitos do outro, embora não mais aceitando a responsabilidade pelos vexames. E todos os inimigos se concentraram nele mesmo (na forma de outro), ele é o inimigo.

A partir daí procura desesperadamente colocar as coisas em pratos limpos com seu adversário. Escreve uma carta (um momentoem que Dostoiévskijá mostra o seu gênio porque a cada etapa da carta ele, Goliádkin, espicaçado pelo demônio da autoconsciência, se interroga se está adotando o tom certo, se não está muito áspera, se não envereda pelo ofensivo, e por momentos se congratula pela correção e cortesia da escrita, ou a energia e a decisão que se depreende dela). Ordena a Petrúchka que a leve ao ministério e entregue ao oficial de plantão para que seja encaminhada ao desconhecido endereço de Goliádkin Segundo. Horas depois, desconfiado, ele mesmo vai ao ministério interrogar sobre o destino da missiva, e acaba criando uma grande confusão e indispondo todos, do criado aos colegas, contra ele (há ainda o mal entendido com Karolina Ivánovna pairando no ar, mas não vem ao caso aqui).

É certo que o relato começa a ficar um pouco cansativo, o autor parece perder-se, não sabendo que direção tomar ou como resolver sua trama, além de saturá-la quase intoleravelmente com o comportamento maníaco de Goliádkin (lembremos que ele tinha 25 anos e escrevia algo de completamente diferente, que pode ter surgido da leitura do Capote, como já disse, mas que procurava nova direção, como Poe estava fazendo na América:  há até um capítulo  (o décimo) todo tomado por sonhos, relatados com minúcias).

Uma manhã, acorda e nada de Pétruchka. Começa a desconfiar de que ele se uniu ao campo inimigo (e que isso pode ter sido orquestrado na casa de Karolina Ivánovna, “parece que no covil daquela horrenda alemã se reuniram todas as potências infernais para perder-me… Bruxa maldita que me escolheu para vítima das suas intrigas secretas. A ela também devo atribuir a aparição daquele maroto”, será que a atração sexual, e o rebaixamento social conseqüente, contribuiu para a aparição do duplo, esse desdobramento que é uma fuga de si?).

Goliádkin resolve subornar um funcionário hierarquicamente inferior para ver se não havia “algo no ar” na repartição a respeito dele. O rapaz apura que não e no entanto só atiça as suspeitas paranóicas do herói: “Esses camaradas perceberam o que eu ia fazer e prepararam o terreno! O rapaz estava instruído…” De qualquer forma, algo ocorreu: Andrei Filíppovitch colocou um substituto na sua mesa. Goliádkin não pretendia entrar na repartição naquele dia, mas aparece seu sósia e ele acaba seguindo-o até lá dentro, onde passa por um vexame inominável: dá a mão ao rival e este, que não percebera a quem estava cumprimentando, de repente se dá conta e retira a mão prontamente, e não satisfeito com esse insulto, como se aquela mão fosse alguma coisa repugnante que lhe causasse náuseas, cuspiu para o lado, numa expressão de desgosto; tirou do bolso o lenço e pôs-se com ele a esfregar com força, do modo mais ofensivo, como se quisesse limpar de uma sujeira repulsiva, os dedos que haviam estado em contato com a pele de Goliádkin.”

É o velho processo, já visto em William Wilson e que depois se repetirá em Jekyll & Hyde: os duplos acabam por odiar-se. O sósia de Goliádkin faz isso de propósito, mirando uma platéia, depois de assim proceder, Goliádkin Segundo derramou olhares em volta, com expressão maliciosa, para ver que efeito produzira sobre os circunstantes.” E esse antagonista ainda ridiculariza Goliádkin Primeiro sob o pretexto que está diante de um conquistador, a quem as mulheres não conseguem resistir. Ele traz a público todos os recalques do seu sósia. O retorno do reprimido nunca é bonito de se ver.

Daí para frente, é um estado de exaltação atrás do outro, e pessoas que se recusam a ouvir, ou não entendem o que estão ouvindo. O resultado mais imediato é o afastamento de Goliádkin do cargo (ao que parece, mais ligado à questão Karolina Ivánovna do que a qualquer outra coisa, mas no clima de pesadelo que a narrativa vai assumindo, nada mais fica explícito, é como se estivéssemos atravessando uma região fuliginosa). E ele continua a perseguir seu rival, que lhe foge, que finge sentar e colocar os pingos nos “is” e o insulta novamente, e foge, e assim parece que estamos enfeitiçados, percorrendo a mesma roda infernal (o que parece muito moderno, de certa forma, porém infelizmente creio que é efeito do visível desalinhavamento narrativo).

Nessa confusão, Goliádkin Primeiro recebe uma carta de Klára Olsufiévna rogando que a espere com uma carruagem em frente à casa dela, pois pretende fugir com ele. Antes, há um incidente: Pétruchka se demite e alegando ir buscar uma capa de peles que pretende vender a Goliádkin, traz consigo pessoas que fazem com que seu patrão fuja, quando percebe a jogada do criado: levantou-se de um salto, calçou as galochas, vestiu a capa e pôs o chapéu. Apanhou uns papéis sobre a mesa e atirou-se escada abaixo… Sem atinar por onde andava, sem ver o que o cercava, caminhando sempre, Goliádkin prosseguia nas suas reflexões…”

Ele se vê meio que sem rumo na madrugada e se dá conta de que está numa situação igual à da noite em que emergiu seu sósia da neve, da chuva, da ventania (ou seja, das forças primitivas, que aparecem “sans façon”, forças primitivas muito presentes em São Petersburgo, principalmente para os funcionários subalternos). Aluga um carro, pede ao cocheiro que o leve à casa de Klára Olsufiévna e que espere. Ele ainda tentara procurar o ministro a qual sua repartição era subordinada, mas não conseguira atinar o que dizer de lógico e sensato que pesasse a seu favor: Vinha humilde e submissamente pedir-lhe que se dignasse ouvir-me; queria expor-lhe o meu caso. Mas agora tudo se transformou;  tudo o que eu tinha na cabeça se desfez. Além disso, aparece na cena o indefectível Andrei Filíppovitch junto com um cavalheiro que Goliádkin conhecia, que lhe era familiar, só não se lembrava de onde (não, não é o sósia desta vez, pois ele aparece logo a seguir, mostrando intimidade e desembaraço junto a seus superiores e ao estranho). O ministro ouve o (des)arrazoado de Goliádkin e promete daquele jeito vago, caro aos ministros: Está bem, está bem. Vá com Deus . Examinarei seu caso com atenção… E o ministro consultou com o olhar o desconhecido do charuto, que respondeu com um sinal afirmativo. Goliádkin compreendeu que havia uma grande confusão, que não sabiam quem ele era, que não o tratavam como deviam. Aqui ele parece estar remontando ao outro que criou no seu passeio de carruagem logo no início do relato, seu eu chique, socialmente melhorado.

Nada conseguindo de positivo, vai para a frente da casa de Klára Olsufiévna, cujas janelas estão todas iluminadas. Goliádkin se atormenta porque perdeu a carta dela. É uma prova contra ele, se fugirem? Quem a teria pegado? Provavelmente seu sósia-antagonista: “perdi meu destino; minha vida está destruída… haverá alguma possibilidade ainda? Que posso fazer?… Santo Deus! De que estou eu falando?” Ele começa a perceber o quão fora da realidade se encontra; e uma vez dada a partida nas suas fantasias não consegue parar. Pensa em desistir e ir embora com a carruagem que alugara. Goliádkin Segundo aparece, frustrando-lhe essa intenção, pois  arrasta-o para dentro da casa: Antes que pudesse coordenar os pensamentos, já se encontrava no salão. Estava pálido, com um ar perturbado, tomado de inquietação, olhando para toda aquela gente ali reunida. Horror… E todos olhavam para ele; todos procuravam chegar-se a ele; todos pareciam empurrá-lo de modo que ele teve a impressão de ser conduzido sem saber como em direção determinada.” Não é, como ele teme, para a porta outra vez. E sim à presença patriarcal de Olsúf Ivánovitch (e ao seu lado… Andrei Filíppovitch). Dessa vez, todos são muito amistosos e benévolos. Andrei Filíppovitch conduz nosso herói, “reconciliado com o destino e com os homens”, para fora com gentileza: “Lançando os olhos em volta, viu que ainda a seu lado estava Goliádkin Segundo. Sentia a necessidade de lhe estender a mão e de levá-lo para um recanto onde lhe pudesse falar à parte. Ali lhe pediu que o auxiliasse em todas as suas empresas e não o abandonasse no momento crítico, como verdadeiro amigo que era. Goliádkin Segundo assentiu com um gesto de cabeça e apertou-lhe a mão energicamente, como selando um compromisso.” Há uma atmosfera solene e ele pensa que parece o momento em que, numa família, algum dos seus membros se prepara para partir numa longa viagem.

Vozes exclamam “Já vem! Já vem! Todos os que estão sentados levantam-se (e Goliádkin se achava insignificante? Ele veio para o centro da cena no grande teatro do mundo). A reconciliação com o sósia é selada em público, depois de o ser à parte (só que ao nosso herói pareceu que o seu desleal amigo disfarçava um sorriso de zombaria, e que os circunstantes tomavam a cena como um gracejo. Julgou ver na fisionomia de Goliádkin Segundo um esgar sinistro. Era o beijo de Judas”).

Em meio a isso tudo, abrem-se as portas do salão e entra o personagem misterioso, que fumava charuto, e que estava na casa do ministro, “um homem alto e maciço, trajando casaca preta, com uma condecoração na lapela, de barba negra. Só faltava o charuto para completar a identidade. O olhar do recém-chegado deixou nosso herói paralisado de espanto. Temia-o sem saber dizer por quê.”

Esse homem não é Sigmund Freud, vindo do futuro, embora sem seu indefectível charuto, para explicar as raízes da dissociação da personalidade de Goliádkin, porque o superego precisou desse expediente para agüentar a vergonha da intervenção anterior na casa de Olsúf Ivánovitch, criar um duplo que fosse a lavação de roupa suja. Não, não, ele é o Dr. Krestián Ivánovitch Rutenspítz, que aparecera no segundo capítulo e que volta agora no décimo – terceiro. Quem o saúda é o duplo de Goliádkin, o seu odioso sósia, o homem de alma corrupta, em cujo rosto manifestava-se uma alegria perversa, enquanto esfregava as mãos em satisfação evidente.”

O doutor coloca Goliádkin num carro puxado por quatro cavalos. A escadaria iluminada está cheia de gente. Sem compreender bem o que acontece, ele só tem tempo de pensar: “Suponho que em tudo isto não há nada de repreensível. Nada que dê margem a uma punição. Nada que possa afetar minha situação oficial”. E põe a sua sorte nas mãos do Dr. Krestián Ivánovitch, Hyde se entrega a Jekyll.

O carro se afasta, todos vão reentrando na casa, e só o sósia, patética, lamentavelmente, corre atrás do carro, lançando com a ponta dos dedos beijinhos de despedida a Goliádkin: “por fim ele também se cansou e foi ficando cada vez mais para trás, até que desapareceu e não tornou a ser visto. Goliádkin sentiu as palpitações violentas do coração. O sangue lhe chegava em golfadas quentes à cabeça. Parecia-lhe que ia asfixiar-se. Queria desfazer-se das roupas, descobrir o peito para refrescá-lo com punhados de neve. Logo porém caiu sobre a sua alma o alívio da inconsciência”.

O carro atravessa um bosque sombrio e ele desperta, pela última vez na narrativa, para apavorar-se com aquele Krestián Ivánovitch que se tornou “outro”, diferente, um Krestián Ivánovitch antipático!” (ou seja, autoritário, com poder sobre ele). Submisso, ele diz ao médico que é um homem “independente” e também uma “criatura insignificante”: “Nosso governo te oferece, de graça, moradia, alimento, aquecimento e luz, e servidores para cuidar de ti, e ainda te queixas? Que queres ainda, homem? Grave e terrível como uma sentença de morte, soou essa resposta de Krestián Ivánovitvh. Goliádkin deixou escapar um grito e levou as mãos à cabeça. Estava chegando; mas havia muito tempo que sabia que era aquele o seu destino.”

Em 1864, Dostoiévski não precisará de nenhum elemento fantástico, do uso do doppelgänger ou do umheimlich para mostrar a dissociação, dilaceramento e fragmentação de um indivíduo.

Ele mostra tudo isso dentro do próprio discurso de um narrador que parece um ator monologando, em plena performance, num teatro do eu que considero precursor do universo de Fernando Pessoa, mesmo quando não recorre aos seus heterônimos, o Fernando Pessoa Ele Mesmo, que no entanto é um Outro, afirmando “sinto que sonho o que me sinto sendo” ou lamentando-se, no Fausto, tragédia subjectiva: “E neste orgulho certo/ Fechado mais ainda e alheado/ Me vou, do limitado e relativo/ Mundo e que arrasto a cruz do meu pensar”.

         Portanto, não há divisão em personagens diferentes do id e do superego, mas uma alternância de suas vozes dentro da narrativa, e um fingimento (no sentido pessoano) que confunde as identidades psíquicas. Não sei se consigo (pois acho que esse texto de Dostoiévski é o osso mais duro de roer dentro do curso), mas tentarei.

Notas do Subterrâneo é dividido em duas partes.

A primeira (e mais famosa), O subterrâneo, onde inexiste intriga e toda ela é um discurso autoflagelante, e onde o narrador de quarenta anos arrasta a cruz do seu pensar em onze capítulos.

A propósito da neve derretida (ou úmida, ou fundida, ou molhada, como também já se traduziu), com dez capítulos mais narrativos, evoca o narrador com a idade que Dostoiévski tinha quando publicou O duplo (será coincidência?).

Duas “indicações editoriais” emolduram a narrativa.

Na primeira, o autor que assina o livro alerta que “procurou expor aos olhos do público, mais nitidamente que de costume, um dos personagens de um tempo ainda recente” , e que tal personagem é um das pessoas que não só podem como devem existir na nossa sociedade, se levarmos em conta as circunstâncias em que ela de modo geral se formou”.  O ponto nevrálgico é que a geração da qual o personagem faz parte “está vivendo seus últimos dias. O narrador, como eu já disse, pertence à categoria muito pensada na Rússia dos homens supérfluos. Essa visão geracional, de um tipo social que vive seus últimos dias projeta uma ambigüidade proposital: é um diagnóstico psicológico (individual) ou sócio-histórico?

Na segunda, nas últimas linhas do texto, esse mesmo autor afirma que as notas continuam, só que ele preferiu (e tem o poder de) interrompê-las, chamando o narrador de paradoxista, como se tratasse de um ideólogo, um provocador, como mais tarde seria Nietzsche (o qual, aliás, admirava profundamente esse texto).

Atravessamos nesta aula uma ala de funcionários públicos. No primeiro capítulo, o narrador diz que, agora aos quarenta anos, graças a uma pequena herança (que lhe permitiu viver no subterrâneo do qual fala), abandonou o serviço público (“Eu tinha esse emprego para ter alguma coisa para comer).

No exercício da sua função, gostava de ser cruel e grosseiro com os solicitantes. Temos um indicação inicial do seu estilo performático de narrar, do seu fingimento, quando ele desmente essa afirmação: “Eu menti antes, quando disse que era um funcionário cruel. Menti de raiva. Apenas me divertia com os solicitantes… mas no fundo nunca me tornei mau. Constantemente observava em mim uma enorme quantidade de elementos contrários a isso. Sentia-os fervilhar dentro de mim… Eles me torturavam ao ponto de me dar vergonha” .

Mais uma vez, portanto, como em O duplo, alguém que nunca consegue ir tão longe nos seus desígnios misantrópicos: “Não apenas não consegui tornar-me cruel, como também não consegui me tornar nada: nem mau, nem bom, nem canalha, nem homem honrado, nem herói, nem inseto”, consolando-se com a idéia de que no século XIX é obrigação moral de um indivíduo inteligente “ser uma pessoa sem caráter”.[5] Para ter caráter, é preciso ter uma identidade, e como atribuir isso a esse narcisismo contrariado, esse inseto com discurso de dragão, esse Jekyll de si mesmo sonhando em soltar um Hyde, mas cujo refrão é “não consegui tornar-me”: Sou uma pessoa com um amor-próprio exagerado. Sou desconfiado e ressentido, como um corcunda ou um anão, embora, verdade seja dita, houvesse momentos em que, se me dessem uma bofetada, eu talvez ficasse alegre até com isso.”

Bartleby tinha uma parede diante de si, os seres pensantes (conseqüentemente inertes) têm um muro, o qual propicia um sentimento de tranqüilidade paras as pessoas “normais”, imersas na ação, pois é uma solução para a existência do ponto de vista moral e até místico: daqui não podemos passar. Essas pessoas normais hão de gritar: “é impossível rebelar-se: trata-se de dois e dois são quatro! A natureza não lhes pede licença, não se importa com seus desejos e nem se suas leis lhes agradam ou não. Os senhores devem aceitá-la tal como é e, conseqüentemente  [essa insistência em termos como “conseqüentemente” e o ritmo da prosa mostram que Dostoiévski está fazendo, em várias passagens, uma paródia do discurso filosófico racionalista], todos os seus resultados também. Um muro, portanto, é mesmo um muro… etc, etc. Ó meu Deus! Que tenho a ver com as leis da natureza e com a aritmética, se essas leis e dois e dois são quatro, por alguma razão, não me agradam! Evidentemente, não quebrarei esse muro com a testa, se realmente não tiver forças para isso, mas nem assim vou me resignar somente porque encontrei um muro e não tive forças para rompê-lo.”

Bem antes de Nietzsche e Freud, esse homem tão “mental” desmascara através de uma proposição fisiológica a falácia do discurso civilizatório. No capítulo 4, lemos: Eu lhes peço, senhores, que, quando tiverem oportunidade, ouçam com atenção os gemidos do homem culto do século XIX sofrendo de dor de dente, lá pelo segundo ou terceiro dia do seu sofrimento, quando ele já começa a gemer diferente de como gemia no primeiro dia, isto é, não geme apenas porque lhe doem os dentes; ele não geme como um camponês grosseiro qualquer, e sim como um homem que foi atingido pelo desenvolvimento e pela civilização européia… Seus gemidos tornam-se detestáveis, grosseiramente raivosos, e continuam por vários dias e noites. Mas ele mesmo sabe que os gemidos não terão utilidade alguma; sabe melhor do que ninguém que é em vão que ele tortura e irrita a si e aos demais; sabe que até a platéia que ele quer impressionar e toda a sua família já sentem repulsa ao ouvi-lo gemer, não acreditam nem um pouquinho na sua sinceridade e estão convencidos de que ele poderia gemer de outra maneira, mais simples, sem tremer a voz e bancar o original, de que ele está fazendo palhaçada de raiva, por pura maldade. Pois bem, a volúpia está precisamente em todas essas tomadas de consciência e nessas indignidades” .

Vocês perceberam que quando Freud começou a estudar os sintomas psíquicos, ele interessou-se pelo fenômeno então muito difundido (e não só entre as mulheres) da histeria, e que o discurso do narrador de Notas do Subterrâneo é basicamente histérico? Bom, mas será possível, será possível que um homem possa ter um mínimo de respeito próprio depois de ter tentado buscar o prazer até mesmo no sentimento da própria humilhação?”

No capítulo 5, há um desses trechos reveladores, quando ele evoca sua infância: “Eu fantasiava peripécias e criava uma vida para mim, ao menos para viver, de alguma forma. Quantas vezes eu ficava ofendido, sem nenhum motivo real, simplesmente porque queria? E sabia que havia me sentido insultado sem razão, que havia bancando o ofendido, mas levava a coisa a tal ponto que no final ficava realmente ofendido. Toda a vida, algo me atraía para fazer essas esquisitices, a tal ponto que, afinal, perdi o domínio sobre mim mesmo” [6] .

No capítulo 6 há um trecho especialmente pessoano: Ah, se eu não fizesse nada unicamente por preguiça! Meus Deus, como eu me respeitaria! E me respeitaria precisamente porque teria a capacidade de possuir ao menos a preguiça; pelo menos eu teria uma característica quase positiva, que eu mesmo teria a certeza de possuir. Pergunta: quem é ele? Resposta: um preguiçoso.” 

Mas em termos da dinâmica do texto, e pensando na mola de interesse do nosso curso, os capítulos centrais, ou o mais interessantes, dessa primeira parte, provavelmente são o sétimo e oitavo: o narrador revela a falácia do raciocínio que pensa ser necessário apenas abrir os olhos do homem aos seus “verdadeiros interesses”, isto é, àqueles que lhe trariam felicidade e bem estar, para que ele se atirasse a eles.

Ora, ora. Então, por que a humanidade tantas vezes age contra os próprios interesses? Por que a tendência destrutiva? Aqui temos mais um caso em que Freud, suas pulsões (Eros e Thânatos), seus princípios, do Prazer e da Realidade, foram antecipados pelos nossos autores: Que fazer com os milhões de fatos que demonstram que conscientemente, isto é, compreendendo perfeitamente suas verdadeiras vantagens, pessoas deixaram-nas de lado e lançaram-se por outro caminho, ao acaso, arriscando-se, sem que ninguém ou nada as obrigasse a isso, como se simplesmente não quisessem o caminho que lhes fora indicado…” [7]

Ou seja, não é a Razão que nos guia. No capítulo seguinte: Perdoem-me por ter filosofado dessa maneira, mas foram quarenta anos de subterrâneo!(…) Durante quarenta anos seguidos fiquei escutando pela fresta as palavras que os senhores diziam A conclusão é um paradoxo (no final, ele não é chamado de paradoxista?): “O homem gosta de criar e de abrir caminhos, isto é indiscutível. Mas porque ele também ama com paixão a destruição e o caos?”

A primeira parte termina com uma notação de clima que tem muito a ver com o que já foi colocado anteriormente (a neve, a condição “humilhada e ofendida’) e prepara também a segunda parte, seu título e alguns dos seus leitmotivs: “…sinto-me entediado, pois fico o tempo todo sem fazer nada. O ato de anotar é, de certo modo, um trabalho. Dizem que o homem se torna bom e honesto com o trabalho. Bom, pelo menos, eis aí uma chance. Agora está caindo uma neve quase molhada, amarela, turva. Ontem caiu também, nos dias anteriores também. Creio que foi por causa da neve molhada que me lembrei da anedota que agora não quer se desgrudar de mim. Então, que isso se transforme numa novela sobre a neve molhada.”

Um importante “mote” da 2ª. parte é o trecho do poema de Nekrássov, cujos versos falam de um “eu lírico” que recolheu uma mulher das “trevas da perdição” e ela lhe contou sua história, “cobrindo o rosto com as mãos / cheia de vergonha e horror, num desabafo entremeado pelas lágrimas “de indignação e de dor”. Curiosamente, ainda mais tendo em vista os acontecimentos narrados na novela sobre a neve molhada (a atitude do narrador para com a prostituta Liza), ele omite a seqüência do poema, no qual se diz que o eu lírico ouviu todo o desabafo “com piedade”, tendo perdoado tudo; ele então pede à (agora fica explícito) amada que não se importe com a opinião geral porque em minha casa, livre e orgulhosa / entra como legítima senhora”.

O narrador tem vinte e quatro anos, mas já é solitário “como um bicho do mato” e sua vida já é “sombria e desordenada”: Durante o trabalho na repartição, procurava não olhar para ninguém e percebia nitidamente que meus colegas não só me consideravam excêntrico como também (assim me parecia constantemente) olhavam-me com certa repulsa. Às vezes eu me perguntava: por que será que, além de mim, ninguém tem essa impressão de ser olhado com repulsa?” Como sempre, ele se auto-diagnostica: Está inteiramente claro para mim agora que, devido à minha desmesurada vaidade e, conseqüentemente, à tremenda exigência para comigo mesmo, eu me olhava com uma insatisfação furiosa que chegava às raias da aversão e, com isso, mentalmente transferia aos outros essa maneira de ver”.

Esse primeiro capítulo permite a Dostoiévski fazer uma incursão paródica pelo Romantismo russo, sobre a qual não poderemos nos estender (e na qual há alusão a três obras de Gógol: Almas Mortas, Memórias de um louco, Perspectiva Névski), e o próprio narrador se vê ironicamente como um “personagem típico do Romantismo”, o homem supérfluo que poderia enlouquecer (como fez o Goliádkin, de O duplo) ou se matar: “Mas aqui só enlouquecem os magrinhos e lourinhos… Em contrapartida, um número incalculável de românticos ascende aos cargos mais elevados. Quanto a ele: Eu, por exemplo, desprezava profundamente meu trabalho e apenas por necessidade não o mandava às favas, porque ficava lá sentado e recebia dinheiro por isso. E o resultado, notem bem, era que, apesar de tudo, não o mandava às favas.”

A princípio, parece que vamos repetir o ritmo da primeira parte. Mas logo aparece o primeiro núcleo anedótico que confere a essa segunda parte uma feição própria e mais ficcional: numa taverna, ele obstrui o caminho por onde precisa passar um oficial: “ele me pegou pelos ombros e, sem dizer nada, sem me prevenir ou dar uma explicação, afastou-me para o lado e passou, como se nem me notasse” [8]. Procedendo como um “covarde” na hora (por não reagir), ele se torna obcecado com esse oficial, acalentando a idéia de, na Perspectiva Névski (a famosa avenida central de São Petersburgo), em meio à multidão, “esbarrar” nele e fazê-lo sentir sua determinação em não recuar um milímetro, obrigando-o a reconhecer sua existência (ele leva dois anos preparando-se para esse confronto): “Eu me embriagava com a minha raiva, observando-o, e… todas as vezes cedia-lhe o caminho, furioso”. Ele chega a pedir dinheiro emprestado para estar condignamente vestido (seu vestuário é sempre uma fonte de mortificação, pois confirma sua insignificância social) no esbarrão: E, de repente, tudo terminou da melhor maneira possível… De repente, a três passos do meu inimigo, repentinamente me decidi, fechei os olhos e… nós nos chocamos fortemente, ombro contra ombro! Eu não cedi nem uma polegada e passei por ele como um igual! Ele nem ao menos se virou e fingiu que não notara, mas foi somente fingimento, estou certo disso… Voltei para casa sentindo-me completamente vingado de tudo… Aquele oficial foi transferido mais tarde, nem sei para onde. Faz agora uns quatorze anos que não o vejo. Que estará fazendo agora o meu querido amigo? Em quem estará pisando?”

Entre as pouquíssimas relações do narrador, está seu ex-camarada de escola, Símonov (eu tinha muitos ex-colegas em Petersburgo, mas não me dava com eles e já nem os cumprimentava na rua. Talvez eu tenha pedido transferência para outro departamento justamente para não ficar junto a eles e romper de uma vez por todas com a minha infância detestável [9]). Um dia, não suportando apropria solidão, sobe até o quarto andar onde ele mora, embora soubesse que o outro não se sentia muito à vontade com sua presença (como sempre, tais reflexões, como que de propósito, incitavam-me ainda mais a me meter em situações dúbias). Ali reencontra outros dois ex-camaradas (Ferfítchkin & Trudoliúbov), que parecem indiferentes ao vê-lo (um dos refrões da narrativa: pelo visto, consideravam-me algo semelhante a uma mosca), compreendendo que o que os constrange é o seu visível ar de fracassado, sua péssima aparência. O pior de tudo é que os três estão combinando uma despedida para um outro camarada, que é bonito e do qual todos gostam muito desde o tempo do colégio, Zverkov, oficial do exército e que está de partida para uma província distante. A idéia é cada um colaborar com sete rublos e oferecerem um jantar, na crença de que o endinheirado Zverkov pedirá champanhe por sua conta.

Embora apertado de grana, o narrador fica contrariado ao saber que sequer cogitaram contar com sua presença e se oferece para contribuir com mais sete rublos. Trudoliúbov ainda replica que ele nunca se deu bem Zverkov, contudo ele se agarra à idéia e insiste em se meter em mais uma situação dúbia. Contrafeitos, os demais combinam com ele um encontro às cinco horas no Hotel de Paris. Na rua, ele se atormenta: “Mas por que eu tinha de me meter nessa história? E logo para aquele calhorda, aquele porco do Zverkov. É evidente que não devo ir, é evidente que devo mandar tudo isso às favas: sou obrigado a ir, por acaso? Amanhã mesmo mando uma carta a Símonov, avisando. Mas o motivo verdadeiro da minha raiva era que eu tinha certeza absoluta de que iria ao jantar; de que propositalmente iria; e quanto mais falta de tato e de decência houvesse na minha ida, mais vontade eu tinha de ir. Note-se como o superego meio que dirige sadicamente as ações cegas do seu inimigo, o id. É um curso planejado e calculado para a vida em estado de vexame, que tanto obsedava Goliádkin. O resultado mais infame dessa operação psíquica é que, indo ao jantar, ele deixará de pagar o ordenado do seu criado (exatamente sete rublos).

Sua preocupação no dia seguinte é não ser o primeiro a chegar (além do problema da vestimenta: “minha calça tinha uma enorme mancha amarela na altura do joelho. Comecei a pressentir que somente essa mancha já tiraria nove décimos do meu amor-próprio). E já o acabrunha a mediocridade e baixo nível intelectual das conversas que terá de ouvir: Estava claro que o melhor seria não ir, mas isto já era totalmente impossível: quando algo começava a me puxar, eu me entregava inteiro, de cabeça. Senão, depois passaria o resto da vida implicando comigo mesmo: Viu só? Acovardou-se, acovardou-se diante da realidade, acovardou-se! Ao contrário, queria mostrar para toda aquela corja que não era absolutamente o covarde que eu mesmo me imaginava. Além disso: no mais intenso paroxismo da minha febre covarde, eu sonhava sair vencedor, fasciná-los e obrigá-los a me amar” (típico delírio narcisista, tentativa de recuperar a satisfação primordial, contrariada pelo Princípio da Realidade [10]). O “preferia não fazer” não tem efeito sobre ele, é movido por forças mais primitivas do que a vontade racional. E para o leitor e tão exasperante quanto aquele que prefere não fazer e não faz mesmo.

E é claro que acaba sendo o primeiro a chegar. Os outros só aparecem uma hora depois, em grupo (lembrem-se: eu sou único e eles são todos). O que mais impressiona o narrador é a atitude senhorial de Zverkov com relação a ele: Quer dizer que ele se considerava agora imensamente superior a mim em todos os sentidos?”

Símonov diz sem mais nem menos que esqueceu de avisá-lo da mudança de horário (com certeza, pensou que o narrador não teria cacife para participar da pândega). Ao ouvir Ferfítchkin dizer que não admitiria que fizessem isso com ele, Zverkov lança uma farpa mortífera: “Você mandaria que lhe servissem alguma coisa, ou simplesmente pediria o jantar, sem esperar, ou seja todos parecem querer que ele esteja cônscio da penúria e fracasso da sua vida: “De desgosto, tomei vários copos de Lafitte e xerez. Como não estava habituado, fiquei logo ébrio e, com isso, cresceu ainda mais meu ressentimento. De repente me deu a vontade de ofender a todos da maneira mais insolente e depois ir embora.”

Na hora dos brindes, ele faz um discurso embaraçoso, apregoando o que odeia e despreza e como ama a “verdade”, a “sinceridade” e a “honradez”, já estava começando a gelar de pavor e não entendia como podia estar dizendo aquelas coisas”, ou seja, ébrio ou não, ele está em performance, num desempenho histriônico para os ex-camaradas, como um “clown” intelectual. Como Ferfítchkin, já cheio, diz que merece um tapa na cara, ele o desafia para um duelo (eu devia estar ridículo desafiando-o, e isso de tal modo não combinava com a minha figura, que todos, inclusive Ferfítchkin, quase rolaram de tanto rir”). Todos querem que ele vá embora, e começam a ignorá-lo. E ele inicia um “passeio” pela sala por três horas. Até os criados olham espantados para aquele sujeito andando para lá e para cá, isolado e alucinado.

Os outros resolvem ir para um bordel, conclamados por Zverkov: “Eu estava tão torturado, tão alquebrado, que estava pronto a me matar para que tudo aquilo terminasse! Estava febril: meus cabelos, empapados anteriormente de suor, estavam secos agora e grudados na testa e nas têmporas.” E aí começa a pedir perdão a todos, e Ferfítchkin zomba dele, dizendo que é “medo de duelo” (é preciso lembrar os preceitos de honra daquela época, e como a palavra covarde tem um peso esmagador sobre um homem) A atitude mais abjeta dele é pedir dinheiro emprestado a Símonov para acompanhá-los ao bordel. A princípio este recusa, mas num último gesto desprezivo joga seis rublos na cara dele e vai embora com os outros, deixando-o sozinho, ou melhor, diante de um lacaio que testemunhou toda a cena.

Pensam que ele vai para a casa? Não, “preferia fazê-lo”, entretanto resolve ir atrás deles no bordel: “Ou eles todos se ajoelham, abraçam minhas pernas e imploram minha amizade… ou eu dou um bofetão em Zverkov!”

Até ele percebe o absurdo e o grotesco da sua fantasia de ter os amigos ajoelhados e implorando sua amizade, mas o mecanismo narcisista da sua mente não pára, e ele chega a se imaginar executando seu plano de agredir Zverkov e depois a prisão, o processo, a demissão, o degredo na Sibéria: Daqui a quinze anos, quando me libertarem, irei me arrastar no encalço dele, em farrapos, na miséria. Hei de procurar até encontrá-lo em alguma cidade de província. Ele estará casado e feliz. Terá uma filha já adolescente. Eu lhe direi: Olhe, monstro, veja minhas faces encovadas e meus farrapos! Perdi tudo, carreira, felicidade, arte, ciência, a mulher amada, e tudo por sua causa. Aqui estão as pistolas. Eu vou descarregar a minha pistola e… e eu o perdôo. Então atiro para o ar e desapareço para sempre…” Que melodramático nosso amigo, e isso num capítulo (é o quinto) que se inicia com a frase: “finalmente aí está o tal choque com a realidade”.

Esse choque se dará, sem que ele se aperceba inteiramente, a partir do crucial capítulo 6, quando o relato ganha novo rumo. No bordel, já não está mais a turma dos seus camaradas e a dona o encaminha para uma das moças, Liza. Horas depois, ele acorda ao lado dela, num quarto quase totalmente às escuras, a não ser pela chama quase extinta de um toco de vela.

Temos então um dos mais penosos diálogos da história da ficção, que podemos resumir assim: após fazer as perguntas de praxe sobre origem, idade e classe social, o narrador segue dois caminhos: um, cruel, tentando vingar-se nela das desfeitas sofridas, e pintando o quadro da vida da prostituta com talento literário, mostrando a juventude indo embora, as doenças chegando, as casas cada vez mais decadentes, até a morte num obscuro porão (ele associa essa trajetória ao cadáver de uma mulher que vira recentemente sendo retirado de um subsolo qualquer); o outro, em que se apresenta como uma espécie de salvador, que deseja o melhor para ela, retirá-la daquela vida e oferecer-lhe um puro e verdadeiro amor, nos moldes daqueles versos de Nekrássov. Um discurso em parte simulado, fingido, em parte verdadeiro, no sentido de que ele tem aqueles impulsos generosos e românticos, ainda que não consiga realizá-los devido aos motivos que conhecemos (a trapaça convive bem com o sentimento”, é a racionalização que ele oferece a si mesmo de mais essa performance). O tempo todo ele “fala como um livro” (eu me tornara tão patético que quase me deu um espasmo na garganta e… De repente, parei, ergui o tronco assustado e, inclinando amedrontado a cabeça, pus-me a escutar, com o coração disparado. Algo perturbador estava acontecendo. Já bem antes eu pressentira que estava revolvendo toda a sua alma e partindo o seu coração e, quanto mais eu me certificava disso, mais queria atingir esse objetivo o mais rápida e poderosamente possível. Foi o jogo, o jogo que me estimulou; aliás, não foi apenas o jogo…” [11] ), como ela inocentemente observa, revoltando-o e fazendo com que ele pinte em cores ainda mais negras a servidão presente e futura destruição que a aguarda. A reação dela é de desespero autêntico, com lamentos que se tornam uivos de dor pela repentina conscientização de sua condição miserável. E o tempo inteiro ele quer marcar sua posição como “superior” a ela, olhando-a de cima, mesmo nos arroubos apaixonados.

Abalado com a reação de Liza, ele se enternece e lhe dá seu endereço, pedindo a ela que o procure.

No dia seguinte, assim como Goliádkin Primeiro após a noite de confidências com seu duplo, o narrador se sente envergonhado com o sentimentalismo e as “compaixões” da véspera e se arrepende amargamente de ter fornecido seu endereço. “Que vou fazer se ela vier? E era esse sujeito que queria um choque de realidade. Ele pede dinheiro emprestado ao chefe de sua repartição para pagar Símonov, enviando uma carta, que, como as do protagonista de O duplo, é um momento psicológico revelador, já que ele se delicia com os próprios mecanismos retóricos, reinstaurando seu narcisismo através deles: “”Até hoje fico deslumbrado quando me lembro do tom verdadeiramente cavalheiresco, afável e aberto da minha carta. Com habilidade, nobreza e, principalmente, sem palavras supérfluas, assumi toda a culpa… Eu fiquei particularmente satisfeito com uma certa leveza, até mesmo beirando a displicência (aliás, inteiramente digna), que de repente transpareceu no meu estilo e, melhor do que quaisquer explicações, deixava-os entender imediatamente que eu encarava toda a sujeira de ontem com bastante independência… Não é que tem uma certa jocosidade digna de um marquês? admirava-me, relendo o bilhete.”

Entretanto, há uma nova e discordante nota: Liza, atrapalhando essa auto-complacência: “Sentia que havia algo dentro de mim, no fundo do coração e da consciência, que se recusava a morrer e se manifestava como uma angústia que me queimava… Não conseguia me controlar nem encontrar uma explicação. No meu íntimo algo crescia, crescia sem parar, dolorosamente, e não queria sossegar… Era como se um crime me pesasse na alma. Tornou-se um tormento para mim a idéia de que Liza viria à minha casa. Eu achaca estranho que, de todas as recordações da véspera, a dela me torturasse de maneira especial, totalmente isolada do resto.”  Ele se acabrunha com o estado da casa, o divã arrebentado, cujo estofamento sai em tufos, com o roupão que usa na intimidade, que mal lhe cobre o corpo,..

Mas o pior é saber que se valeu, com ela, de uma máscara mentirosa[12]: “Quando cheguei a esse ponto, explodi: Por que desonesta? Ontem eu estava falando com sinceridade. Lembro-me de que o meu sentimento era verdadeiro . A tragédia é que o sentimento de fato é verdadeiro, no sentido de ser uma aspiração, porém a máscara não é menos desonesta por isso. Fingir que é dor a dor que deveras se sente é ainda assim máscara. E nesse vaivém entre lembrar com pungência da figura singela e recriminar-se pelos “exageros”, lhe vem à mente os últimos versos do poema de Nekrássov que não figuravam na epígrafe do texto (aqueles em que a mulher perdida, mas amada pelo eu lírico, entra no seu lar como “legítima senhora”).

Estamos no capítulo 8 e de repente uma frase deliciosa e cáustica nos mostra o humor dostoievskiano (que parece prenúncio do teatro de Samuel Beckett, o de Fim de partida): Ainda bem que Apollon me distraiu durante esse período com suas grosserias. E Dostoiévski também vai revelar sua habilidade narrativa ao fazer confluírem, num desenlace teatral, as duas situações que envolvem o narrador: suas relações com Apollon, o criado, e  a expectativa da aparição de Liza, que ele deseja e não-deseja (mostrando a irresolução da sua existência).

Ele afirma que Apollon era uma praga, um flagelo enviado a ele pela Providência: “Nós nos espicaçávamos continuamente havia vários anos… Ele se relacionava comigo de uma maneira totalmente despótica, rarissimamente falava comigo e, se por acaso, olhava para mim, era com um olhar duro, majestosamente autoconfiante e permanentemente zombeteiro… Executava seu trabalho com um ar de quem estava me fazendo enorme favor. Aliás, quase não fazia nada para mim e nem se considerava obrigado a fazer alguma coisa.”

Durante os “dias de espera” da aparição de Liza, está se repetindo um tormento mútuo que segue regras: apesar de ter dinheiro para pagar Apollon, o narrador não o paga. Ele deseja que o criado um dia toque no assunto e seja obrigado a lhe pedir o pagamento (coisas que ele não faz, só lançando olhares “severos” e utilizando outros estratagemas de pressão). Seu desejo maior é que, uma vez conseguindo que Apollon lhe peça o pagamento, ele possa dizer que sim, tem o dinheiro, mas não paga porque não quer, “porque é assim eu quero, porque estou exercendo minha vontade de senhor”. Seria a apoteose do narcisismo, pois pela primeira vez a onipotência da fantasia não seria contrariada pela situação real.

O narrador crê que dessa vez conseguirá seu intento, mas “apesar de tudo Apollon saiu vencedor. Não agüentei nem quatro dias”. A derrota acontece porque está meio fora de si devido à possibilidade de Liza aparecer (e porque deseja ser derrotado, prolongando o tormento). Ele ainda tenta vencer o jogo, com o dinheiro na mão, dizendo que só vai dá-lo se o criado falar com ele com respeito. E recebe a seguinte resposta, esmagadora; “Isso é impossível” Apollon pega o dinheiro e se retira majestosamente. O narrador culpa Liza pelo acontecido e, histérico, ordena ao criado que vá chamar a polícia: quer denunciar a si mesmo: “ao ouvir a minha ordem, soltou uma risada, bufando.” O narrador diz a ele que não tem idéia do que vai acontecer, caso não cumpra a solicitação. Nesse momento de gritos e ataques, ele fica estarrecido ao ver que Liza está parada na porta assistindo à cena (foi por isso que eu afirmei que Dostoiévski entrecruza habilmente as duas situações). Apollon ironicamente anuncia a “visita” e tem início o penúltimo capítulo, o nono, que volta a citar os versos de Nekrássov que instituem a ex-mulher perdida como legítima senhora da casa do generoso eu lírico.

O detalhe mais impressionante do constrangimento entre os dois, quando ficam sozinhos, é o pensamento do narrador: “Eu senti confusamente que ela ainda pagaria caro por tudo aquilo”. E começa a se fazer de altivo, dizendo a ela que não tem vergonha de ser pobre. Quase ao mesmo tempo, corre até o quarto de Apollon e, implorativo, pede-lhe para ir a uma taverna próxima e buscar chá e torradas: Se não quiser ir, vai fazer uma pessoa muito infeliz! Você não sabe que mulher é essa… Ela é tudo!” Altivo é esse Apollon, com a pose com que vai executar essa “ordem”.

Voltando a ficar a sós com Liza (após Apollon ter trazido o que lhe fora pedido), ele pergunta a ela se o despreza. Ela não sabe o que responder e ele fica com raiva: “Ela é a causa de tudo isto, pensava, como se Apollon tivesse perdido o respeito por ele por causa dela! “O principal mártir era evidentemente eu mesmo, porque estava plenamente consciente de toda a baixeza asquerosa daquela minha raiva estúpida, e ao mesmo tempo não conseguia absolutamente me dominar”.

         Liza finalmente diz algo: quer abandonar o bordel. E num capítulo que começou com os generosos e convidativos versos de Nekrássov, recebe a seguinte e generosa réplica: “Para que você veio à minha casa, diga para mim, por favor.” E ele lhe dá uma aula de como é ridícula em pensar que poderia ser salva por ele e revela sua baixeza e mesquinharia, de uma forma tão mascarada e mentirosa como quando fez o discurso de “amor de salvação” na noite em que ficaram juntos (e as lágrimas que eu há pouco não consegui conter diante de você, parecendo uma mulherzinha, nunca lhe perdoarei! E estas coisas que confesso a você agora, também nunca lhe perdoarei… porque sou um canalha, porque sou o mais sórdido, o mais vil, o mais tolo, o mais invejoso de todos os vermes da terra, que não são nem um pouco melhores do que eu, mas que, sabe-se lá por que, nunca ficam constrangidos. Enquanto eu, toda a vida, vou receber petelecos dos mais reles insetos, esta é a minha sina”; note-se que tudo é sincero, mas também tudo é performático, tudo tem que ser hipertrofiado numa onipotência até da abjeção: o MAIS sórdido, o MAIS vil, etc etc).

Eu estava a tal ponto acostumado a pensar e a fantasiar tudo como nos livros e a imaginar que tudo no mundo era igual ao que eu antes havia criado nas minhas fantasias, que nem entendi de repente aquela coisa estranha. O fato foi o seguinte: Luza, que eu humilhara e esmagara, compreendeu muito mais do que eu poderia imaginar. De tudo a que assistira… ela percebeu que eu era infeliz” E ainda assim a coitada permanece ali e se sente inferior a esse fingidor da dor que deveras sente. E pior… ela se atira a ela, enlaçando o seu pescoço e chorando, fazendo-o chorar (“Do que eu tinha vergonha? Não sei, mas tinha”). E mesmo assim ele se permite ter inveja dela, do genuíno que percebe nas atitudes e reações dela. E, por essa razão, ele dá o seguinte desenlace à cena: leva-a para a cama, já que a odeia e sente atração ao mesmo tempo, um sentimento reforçando o outro.

E assim se consuma a sua vingança e chegamos ao último capítulo, em que não encontraremos Liza “livre e orgulhosa”, “legítima senhora” da casa e da vida do narrador.

O capítulo começa quinze minutos depois. Liza está sentada no chão, com a cabeça recostada na cama e já adivinhou que o arroubo sexual do narrador foi a maneira de ele descartar seus sentimentos, os quais não sabe se são autênticos ou fabricados: “…eu já não tinha capacidade de amar, porque amar para mim significa tiranizar e dominar moralmente [portanto, amar para ele é a relação dele com Apollon, patrão e criado a se torturarem]. Toda a minha vida eu nunca pude nem ao menos imaginar outro tipo de amor e cheguei ao ponto de que, agora, às vezes penso que o amor, na realidade, consiste no direito que o objeto do amor voluntariamente concede de ser tiranizado… E também nos meus devaneios no subterrâneo eu não imaginava o amor de outra forma que não fosse uma luta que partia sempre do ódio e terminava com a submissão moral, depois da qual eu não tinha idéia do que fazer com o objeto que se submetera.”

É nesse ponto que ele diagnostica que toda essa dinâmica psíquica acontece por ele estar afastado da “vida viva”, por ter se tornado incapacitado de experimentá-la sem sentir que o ar está lhe faltando. E é assim que se condena perpetuamente ao subterrâneo.

Ele começa a mostrar sinais de impaciência com a presença dela. Ela se veste, se arruma, ele toma sua mão e coloca ali cinco rublos: o que eu posso dizer com certeza é que fiz essa crueldade, mas não de coração, embora tivesse sido intencional, e que a fiz devido à minha cabeça ruim… Essa crueldade era tão falsa, intelectual, inventada, livresca, que eu mesmo não agüentei e ele sai correndo atrás dela, que desaparecera do mapa (na rua, neve, neve, neve).

Quando retorna, percebe que ela deixara a nota de cinco rublos. Em sua má consciência ele racionaliza que talvez tenha sido uma boa lição para ela, que talvez essa experiência de humilhação a purificasse e salvasse a sua vida, ou se não salvasse, ficaria sempre como um saldo de grandeza espiritual, que uma felicidade “barata” não se comparava a um sofrimento “elevado”: “Era isso que me passava pela mente, em casa, naquela noite, quase a ponto de morrer com a dor que trazia na alma. Eu nunca suportara tanto sofrimento e remorso…Nunca mais encontrei Liza e nem ouvi falar dela. Acrescento ainda que durante muito tempo fiquei satisfeito com minhas elucubrações sobre a utilidade da humilhação, apesar de eu mesmo naquela ocasião quase ter adoecido de angústia. Como se vê, o já tantas vezes citado teatro do eu continua com seu moinho em movimento: angústia, autogratificação, racionalização, desvario.

Nas últimas linhas do relato, o narrador se assume como anti-herói, incapaz para a vida, e que no entanto inventa para si uma vida de estufa: “…e por que às vezes ficamos irrequietos, inventamos caprichos? E o que pedimos? Nós mesmos não sabemos. Nós mesmos nos sentiremos pior se nossos pedidos delirantes forem atendidos”. Porque os pedidos delirantes vem da onipotência narcisista e não há suficiente “vida viva” para satisfazê-los.


[1] Assim é o título da tradução de Moacir Werneck de Castro (Bertrand Brasil); a mais tradicional no Brasil, a de Boris Schnaiderman (agora pela editora 34) foi intitulada Memórias do Subsolo, como também a tradução de  Ruth Guimarães, nos “Melhores Contos” (Cultrix); a tradução de Natália Nunes nas “Obras Completas” pela Aguilar chama-se Memórias do Subterrâneo. E agora em 2008 saiu uma nova tradução (direta do russo, como as de Werneck de Castro & Schnaiderman), feita por Maria Aparecida Botelho Pereira Soares (L&PM), como Notas do Subsolo. Qual a melhor solução? Difícil saber.

[2] Esse meu momento “vidente” não quer dizer que eu ache isso bom. Na minha balança, apesar dos méritos de Notas do Subterrâneo e Um jogador, continuo preferindo O idiota, Os demôniosIrmãos Karamazov.

[3] Em russo, o título é Dvoiník. Só conheço duas traduções: a de Natália Nunes (nas “Obras Completas” da Aguilar) e a de Vivaldo Coaracy (pela José Olympio, como O Sósia).

[4] Notas do Subterrâneo: “Entregava-me com amor à mediocridade geral e com toda a alma temia qualquer sinal de excentricidade em mim. Mas como eu poderia ter resistido? Eu era instruído de uma maneira doentia, como deve ser o homem instruído do nosso tempo. Já eles, eram todos obtusos e parecidos uns com os outros, como um rebanho de carneiros. Talvez somente eu, em toda a repartição, tivesse permanentemente aquela impressão de ser covarde e servil, e isso se dava justamente porque eu tinha cultura. Mas não era apenas questão de parecer: de fato, eu era um covarde e um escravo. Digo isso sem nenhum constrangimento. Todo homem honesto neste nosso tempo é e deve ser um covarde e um escravo. Essa é a sua condição normal.”

[5] Concordo que a experiência de ler esse texto-performance é muitas vezes exasperante, ainda que de uma exasperação radicalmente diferente da que experimentamos com o personagem Bartleby. Mas é admirável a energia cênica que ele imprime, quando, após um jorro de palavras, consciente de que está sendo lido (daí o “fingimento” histriônico), ele diz, por exemplo: “Esperem! Deixem-me tomar fôlego! Acaso os senhores estão pensando que quero fazê-los rir? Ou ainda: Agora desejo lhes contar, queiram ou não ouvir, por que não consegui me tornar nem ao menos um inseto. Isso já é tanto Samuel Beckett quanto Pessoa.

[6] Ele estende isso a todos os homens: É a pura verdade. Observem-se melhor, senhores, e verão que é assim.”

[7] É preciso não esquecer também que o sempre polemista Dostoiévski escreveu essa primeira parte como uma resposta a uma narrativa famosa na época, Que fazer? (1863), de Nikolai G. Tchernichévski, uma espécie de romance programático do socialismo utópico. A imagem do Palácio de Cristal, aludida pelos dois textos, deriva-se do edifício de vidro construído em Londres para uma Exposição Internacional, representando o Progresso alcançado pela Civilização. Essa imagem do Palácio de Cristal foi a pedra-de-toque da análise do texto de Dostoiévski por Marshall Berman no clássico Tudo o que é sólido desmancha no ar (Companhia das Letras).

Há um trecho particularmente nietzschiniano: E porque os senhores estão assim tão firme e solenemente convencidos de que apenas o que é normal e positivo, ou seja, o bem-estar, é vantajoso para o homem? … Quem sabe o homem ame não apenas o bem-estar? Quem sabe ele não ame igualmente o sofrimento? Quem sabe o sofrimento é para ele tão vantajoso quanto o bem-estar? O homem, às vezes, ama o sofrimento de maneira terrível, apaixonada; isso é um fato. Para isso não há necessidade de consultar a história universal. Perguntem a si mesmos, se é que os senhores são homens e já viveram nem que seja um poucoEstou convencido de que o homem nunca renunciará ao sofrimento verdadeiro, isto é, à destruição e ao caos”.

[8] Note-se que ele se encontra na taverna porque, assim como o Dr. Jekyll, tem de vez em quando a necessidade de “vida irregular: “Surgia uma sede histérica de contradições, de contrastes, e entregava-me então à devassidão (isto é, ele virava, sem precisar desdobrar-se, um Goliádkin Segundo).

[9] Eu tinha sido colocado naquela escola por uns parentes distantes, dos quais eu dependia e de quem nunca mais soube nada. Deixaram-me lá, órfão…” É interessante notar que mesmo antes desse abandono, ele já era pensativo, calado, e desconfiado. Na escola, ele se isola num orgulho assustado, ferido e exagerado”.

[10] As ligações de Notas do Subterrâneo com O duplo são visíveis: basta ver como o narrador vai ao Hotel de Paris: “… embarquei no carro de luxo que contratara com meus últimos cinqüenta copeques e, como um senhor importante, cheguei ao Hotel de Paris.”

[11] Eu gosto muito de Notas do Subterrâneo quando atinge esse ponto balbuciante do estilo, uma frase meio que negando, relativizando a anterior, o que dá a medida de um discurso onde o narrador tem uma identidade difusa, fragmentada, ele mesmo não se conhecendo e não sabendo até que ponto finge, fala a verdade, usa máscaras. Teatro do eu.

[12] Vocês devem lembrar da preocupação de Goliádkin com máscaras pregadas na cara, e, aliás, é uma das epígrafes gerais desta aula.

09/12/2011

EM ROLETEMBURGO

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 04 de fevereiro de 2003)

É impressionante como várias editoras estão publicando obras de Dostoiévski e como estas ainda vendem bastante. Neste ano de 2003 mesmo, entre os lançamentos figuram novas edições de O idiota e de O JOGADOR  (comentado —aqui— na tradução de Moacir Werneck de Castro), sendo este último particularmente apropriado para uma época onde tanta gente “comum” investe seu tempo e dinheiro no bingo.

Dostoiévski já tinha há anos a idéia de um romance sobre o vício do jogo, do qual ele mesmo era vítima. Apesar disso, a forma que tomou O JOGADOR, escrito em poucas semanas (num período em que ele terminava Crime e Castigo, portanto já estamos na sua grande fase), em 1866, aconteceu porque seu editor o pressionou para entregar um romance pronto dentro de determinado prazo. Isso explica a evidente pressa que marca o andamento do texto (cujos elementos demandariam talvez um vagar maior) e algumas discrepâncias da história. Há até passagens que parecem, num primeiro momento, cochilos do excelente tradutor, como na página 136, onde se lê: “não a encontrara nem uma vez depois do incidente”, contudo parece ser um engano do próprio autor, uma vez que na tradução de Oscar Mendes (nas Obras Completas da Aguilar), pode-se ler: “nem uma vez lhe havia dirigido a palavra depois do incidente” (na edição da José Olympio, Costa Neves parece ter corrigido por sua conta o deslize).

O resultado final de O JOGADOR ficou um pouco estranho: boa parte do tempo aprece uma daquelas histórias curtas, jocosas e humorísticas do tipo A aldeia de Stiepântchikov e seus habitantes; perto do final, entra no clima delirante, abeirando-se do trágico—que não se consuma aqui, mas é o tom que permeia O idiota, por exemplo.

Apesar do título, o narrador-protagonista, Aleksei Ivanovitch, só mergulha no mundo do jogo no capítulo 14 (num total de 17), de modo irreversível, ao que parece. Dostoiévski escapa daquele didatismo naturalista que sempre empana um pouco as histórias sobre vícios e que detalham sua gênese e seus momentos críticos, seja o alcoolismo, sejam as drogas ou outra coisa qualquer, como Farrapo humano, Diário de um adolescente e um vasto etc.

Antes de Aleksei tornar-se jogador, sua narrativa concentra-se na pequena comédia humana em que está envolvido, em Roletemburgo (a qual representa as estações de água onde se pratica a roleta, como Baden Baden ou Wiesbaden), agregado (como preceptor) ao clã de um General arruinado, explorado por gananciosos franceses (a visão xenófoba de Dostoiévski fica bem clara na caracterização de certos personagens não-russos). Todos aguardam a notícia da morte da “babulinka” Antonida Vassilievna, a vovó rica da família.

As pequenas conspirações em torno do General só ganham importância para Aleksei na medida em que envolvem sua enteada, Polina, por quem é apaixonado e que é a típica representante de uma categoria marcante de mulheres no universo dostoievskiano: meio histérica, dúbia, destrutiva e destruidora. Por sua casa, Aleksei se  comporta de modo absurdo, muitas vezes degradante, como se vivesse em estado febril e dissociativo, uma atmosfera que desde O sósia (1848) vai caracterizar o herói típico do grande escritor russo.

As coisas tomam um rumo burlesco quando ao invés de um telegrama anunciando seu esperado “passamento”, aparece em Roletemburgo a “babulinka” em pessoa, a qual, durante dias, joga obstinadamente, perdendo cem mil rublos, acompanhada muitas vezes por Aleksei, que dessa maneira faz o seu aprendizado como futuro jogador. Tirando os capítulos finais, nos quais toda a paixão pelo jogo é descrita com  minúcias admiráveis, a intervenção dessa extraordinária senhora é o grande achado de O JOGADOR e permite, ao leitor, aproveitar o Dostoiévski humorístico, tão fantástico quanto o Dostoiévski trágico. Talvez o romance não tenha saído como ele queria e sonhava. Talvez seja mesmo um livro “menor”. Se essa é uma parcela pequena do gênio do seu autor, na roleta da literatura seria considerada uma fortuna para qualquer outro.

(em 05 de fevereiro de 2005, em A TRIBUNA de Santos, foi publicada a resenha abaixo, a qual reproduzo “enxugada” das passagens que repetem informações do texto acima):

A editora 34 continua firme com as obras de Dostoiévski (1821-1881), e por isso podemos contar novamente com a versão de Boris Schnaiderman para UM JOGADOR[1], já publicada há muito tempo, e onde se contraria, com seu uso do artigo indefinido, a tendência geral em que o título fica mesmo O jogador (é o caso da tradução, também recentemente relançada, de Moacir Werneck de Castro). Isso dá um ar ainda mais universal à pequena tragicomédia do protagonista-narrador, Aleksei Ivanovitch.

Dostoiévski era vítima do vício da roleta e escreveu o pequeno romance às pressas para cumprir prazos de entrega assumidos com seu editor. O resultado final acabou meio dividido, híbrido: boa parte do tempo parece pertencer a um filão recorrente nas suas primeiras obras; aproximando-se do final, entra num clima quase trágico. Comédia de erros se transforma em O mercador de Veneza.

Aléksei Ivanovitch  leva quatorze capítulos para descer ao inferno do jogo (…)

E, de repente, “baboulinka” irrompe em Roletembergo muito viva, roubando a cena, jogando dias e dias obstinadamente, lançando fora cem mil rublos: “Ela trocara sucessivamente todos os seus valores, apólices de cinco por cento, títulos de dívida interna e ações. Cheguei a admirar-me de como ela suportava ficar na cadeira aquelas sete a oito horas, quase sem se afastar da mesa, mas Potapitch contou que, por umas três vezes, ela realmente começara a ganhar muito, e, entusiasmada novamente com a esperança, não conseguira mais afastar-se dali. Aliás, os jogadores sabem como uma pessoa pode passar quase vinte e quatro horas sentada com um baralho, sem desviar os olhos das cartas”.

A intervenção dessa extraordinária senhora continua a ser, para mim, o achado maior de UM JOGADOR, embora a intensidade dos capítulos finais, nos quais a paixão por jogar é descrita, seja algo de definitivo quanto ao tema.

E após toda a discussão a respeito do fechamento dos bingos que envolveu o país, nada mais atual.


[1] No meu exemplar da José Olympio, como tradutor consta Costa Neves, mas Schnaidermann afirma que a tradução lançada nas “Obras Completas” é dele, e não há motivo para duvidar.

21/08/2011

O MÉDICO E O MONGE

(o texto abaixo foi escrito em 2008 como anotação inicial para um novo curso após “Margens Derradeiras; textos do limite”, desta vez enfocando as obras de Tchekhov e Pirandello—curso que acabou não acontecendo; essas anotações tentam fazer uma ponte entre os dois cursos, daí o texto ter parentesco com os que escrevi sobre O horla, O clube dos suicidas, O altar dos mortos, A tumba dos ancestrais, A causa secreta, Os fatos do caso do Sr. Valdemar)

 

 

“…a facilidade com que nosso pensamento se decide a aceitar um absurdo, quando tal aceitação satisfaz pensamentos saturados de afeto…”

         (Sigmund Freud, Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen, 1907)

“O que tende para fora tem de viver o seu mito, o que tende para dentro sonhará seu meio ambiente, a chamada vida real.”

                         (Carl Gustav Jung, Tipos Psicológicos: Extrovertido/Introvertido, 1921)

É o tipo introvertido, cuja tendência, a despeito dos seus esforços, é refugiar-se num mundo de lembranças e de afetos… Sucumbe-se à própria fascinação íntima e a pessoa enterra-se com os seus afetos para voltar a renascer de novo, depois de estes terem ido embora. É um tipo, porém, que se arrisca a que o saco onde se encerra rebente um dia…”

    (Carl Gustav Jung, O homem à descoberta da sua alma, 1934)

         É interessante o papel desempenhado pela novela O monge negro na obra tchekhoviana,  sempre vista como um dos pontos de partida da moderna narrativa por prescindir de “grandes tramas”, para se concentrar no quotidiano e nas situações banais [1], uma vez que, de uma maneira bastante peculiar, trabalha com o umheimlich e explora situações vizinhas à, por exemplo, atmosfera de O Horla, de Maupassant.

         Tchekhov nasceu em 17 de janeiro de 1860, em Taganrog; sua família mudou-se para Moscou (arruinada por uma crise financeira) quando ele tinha dezesseis anos, mas ele só foi para lá três anos mais tarde, após terminar seus estudos secundários. Em Moscou, enquanto toda a família repartia um porão miserável, sem dinheiro para comprar lenha no inverno (como a família da Amorinha de  O Relógio, de Turgueniêv), ele estuda medicina. Dr. Jekyll. E ganha dinheiro escrevendo (cinco copeques por linha). Seus contos e novelas falavam de um mundo esmagado pela mediocridade e pelo ridículo. Diga-se de passagem, ele também teorizará sobre a ficção, como Poe e Henry James, elaborando “regras essenciais”: não dar ênfase a problemas políticos, econômicos e sociais; ser sempre que possível objetivo e “verdadeiro”; ser breve, sem ser banal. Foi acusado de excessivo realismo, de mau gosto e de utilizar detalhes “sujos e grosseiros”. Aliás, a acusação de cínico, amoral e repugnante ressurgiria quando estreasse no teatro com Ivanov (1887).

         Tchekhov ficou tuberculoso e com o dinheiro que ganhava comprou uma propriedade rural próxima a Moscou, em 1891, trabalhando como médico contra uma epidemia de cólera.

         Em 1898, um encontro decisivo: conhece Constantin Stanislavski, que vai utilizar suas peças como meio de consagrar seu método de interpretação, agora clássico. É um teatro onde “nada acontece”. O verdadeiro drama é a inação, como já disseram. Gorki: Ninguém compreendeu tão lúcida e finamente como Tchekhov a tragédia da trivialidade da vida; ninguém antes dele mostrou aos homens, com tão impiedosa verdade, o retrato terrível e vergonhoso de suas vidas, no turvo caos da existência quotidiana da burguesia”.

         Sua obra-prima absoluta, a belíssima O jardim das cerejeiras, foi montada no ano da morte de Tchekhov (1904, em 15 de julho), numa viagem à Floresta Negra, na Alemanha, com 44 anos (uma idade comum aos nossos escritores derradeiros, veja-se o caso de Stevenson). Seus últimos anos são passados na Criméia, em Ialta, onde foi obrigado a viver por causa da sua doença pulmonar, mais ou menos como o personagem de O Monge Negro, relato com cerca de 70 páginas, dividido em nove capítulos. Começa sob o signo da medicina, portanto da ciência: “Andrei Vassilievitch Kovrin sofreu um esgotamento que lhe arruinou os nervos. Não se tratou; limitou-se, diante de uma garrafa de vinho, a conversar com um médico amigo, que o aconselhou a passar a primavera e o verão no campo” [2]. Kovrin é um professor, um intelectual, e nesse sentido identifica-se com o urbano; mas ele foi criado no campo, e a princípio temos aquela solução apaziguadora do Jacinto de Civilização e A cidade e as serras, de Eça (também sentimos que foi a solução inicial do narrador de O Horla, mais homem da cidade que do campo, solução que se revela aterrorizante, pois só o urbano o apazigua e adormece o “ser invisível” que convive com ele).

         Primeiro Kovrin passa três semanas sozinho na sua propriedade, e depois se instala na casa do antigo tutor, “segundo pai”, Pessotski, que vive em Borissovka com a filha, Tânia, companheira de juventude de Kovrin. Vemos o retorno a Borissovka com ares do Jacinto de Eça: “Tudo ali parecia convidar o visitante a sentar-se e escrever baladas…a ao redor da casa, os jardins e o pomar inspiravam ânimo e alegria de viver, mesmo com mau tempo. Havia rosas, camélias e lírios maravilhosos, tulipas em todos os tons possíveis, de um branco brilhante ao escuro fuliginoso, uma tal riqueza de cores como jamais Kovrin vira em outro lugar”. Entretanto, há um lado decadentista nas experiências de estufa do velho Pessotski, A parte ornamental do jardim produzia em Kovrin, quando menino, uma impressão  fabulosa. Que caprichos, que refinadas deformações, que escárnios feitos à natureza!. Portanto, temos aqui, uma dicotomia nítida: obras da natureza inspirando ânimo e alegria de viver versus escárnios feitos à natureza inspirando um sentimento de refinamento, caprichoso e deformante.

         Na chegada de Kovrin (após cinco anos de ausência), há um alvoroço devido à ameaça de geada: No grande pomar chamado comercial, que a cada ano rendia a Iegor Semionovitch milhares de rublos de lucro, já deslizava ao longo do solo a fumaça espessa, negra e ácida que devia proteger as folhas novas e salvar as plantas”. E é nessa atmosfera que caminham, recuperando sua familiaridade e camaradagem, Kovrin e Tânia (esta, “uma figura ereta e esbelta”, “agradável de contemplar” ). Ela o interpela: “Você acha que já não tem muito a ver conosco? Mas por que  estou perguntando? Você é um homem, tem a sua vida própria, tão interessante…Certo afastamento é natural. Mas seja lá o que for, quero que entre nós se sinta em casa. Temos direito a isso… meu pai lhe quer bem…o adora. Você é um intelectual, não é um homem comum; fez uma carreira brilhante, e ele está inteiramente convencido de que você deve esse sucesso todo à educação que lhe deu. Não desfaça essa ilusão dele”. Ela contrapõe a vida dela e do pai à dele: Toda a nossa vida gira em torno do jardim, não sabemos sonhar senão com maçãs e pêras”. A essa altura, Kovrin está dizendo a si mesmo que poderia se apegar a ela, até mesmo se apaixonar, só que permeando essas reflexões estão versos de Puchkin, o que já indica um distanciamento entre a vida real e a vida mental (alimentada de literatura e filosofia) do herói do relato [3].

         Se no final do primeiro capítulo, vemos Kovrin ficar na expectativa de um verão “extenso, claro, alegre”, esse mesmo final nos mostra que sua rotina de verão é ir para o quarto e ler atentamente, tomando notas. Por isso se justifica a afirmação que abre o segundo capítulo: “Continuou a viver no campo a mesma vida nervosa e desordenada que vivera na cidade. Lia e escrevia muito, estudava italiano, e quando ia passear pensava com prazer na volta ao trabalho. Dormia tão pouco que todos de casa se surpreendiam; se acaso cochilava meia hora durante o dia, perdia o sono à noite”. Dr. Jekyll precisa ocupar-se com sua ciência e o uso do tempo demanda eficácia, ocupações úteis e produtivas. Até o homem intelectual bate o cartão de ponto na mente no mundo capitalista e tem de demonstrar produtividade.

         Uma certa noite em que há visita de moças de propriedades vizinhas, que tocam piano e cantam com Tânia. Uma das cantigas fala de uma jovem de imaginação exaltada que ouve certa noite no jardim sons misteriosos, belos e estranhos, “uma sagrada harmonia, inacessível a nós, mortais, e que por isso retornava aos céus. Influenciado por ela, Kovrin se chega a Tânia e lhe confidencia, na varanda que sua mente só se ocupa de uma lenda, a qual não sabe onde leu ou ouviu, uma “lenda muito estranha e incoerente”: “Há uns mil anos, um monge, vestido de negro, errava pelo deserto em algum lugar da Síria ou da Arábia. A poucas milhas dali, pescadores viram outro monge negro caminhando lentamente sobre a superfície de um lago. Esse segundo monge era uma miragem. Agora, esqueça todas as leis da ótica, que a lenda, naturalmente, não reconhece, e ouça mais. Da miragem surgiu outra miragem e dessa uma terceira, de modo que a imagem do Monge Negro se refletia infinitamente de uma a outra camada da atmosfera. Ora era vista na África, ora na Espanha, ora na Índia, ou no Extremo Norte. Afinal, ultrapassou os limites da atmosfera terrestre, e agora vagueia pelo universo, mas nunca em condições que a façam desaparecer. Talvez seja avistada hoje em Marte ou em alguma estrela do Cruzeiro do Sul. Mas, minha querida, toda a questão, a essência mesma da lenda está na predição de que exatamente mil anos depois de o monge ter entrado no deserto a miragem tornará a penetrar na atmosfera terrestre e se tornará visível para o mundo dos homens. Esse prazo de mil anos, ao que parece, está terminando. De acordo com a lenda, devemos esperar o Monge Negro hoje ou amanhã[4].

         Enquanto Tânia volta às visitas como boa anfitriã, Kovrin caminha até o rio. Está escurecendo (hora perfeita para o umheimlich): “Kovrin cruzou a corrente. Diante dele estendia-se agora um vasto campo coberto de centeio novo. Não havia morada nem vivalma visível à distância; era como se o caminho conduzisse às inexploradas e ignotas regiões do Ocidente onde o sol já se pusera,  e onde, vasto e majestoso, flamejava ainda o esplendor do crepúsculo” [por essa época, Conrad começaria também a imaginar a batalha das trevas e da luz no crepúsculo na abertura de Coração das Trevas ].  Ele é a medida do narcisismo do nosso amigo, que imagina, nesta paisagem “ampla, livre e silenciosa” que o mundo todo está espreitando, num esconderijo, “esperando por mim para ser compreendido”.

         Mas ele vê é o assombroso. No horizonte se forma um ciclone (ou uma grande tromba d´água) e uma grande coluna negra se ergue da terra ao céu, movendo-se com incrível velocidade e então “um monge vestido de negro, cabelos grisalhos e sobrancelhas negras, as mãos cruzadas sobre o peito, passou perto dele. Seus pés descalços não tocavam o chão… Seu rosto era pálido e fino…” Ainda bem que não é o Alquimista do Paulo Coelho. Mesmo assim ele fita Kovrin, acena com a cabeça, e sorri, “um sorriso ao mesmo tempo afável e astucioso. Depois ele se mistura novamente ao ciclone, voando através do rio, esvaecendo-se como fumaça. Apesar de ter testemunhado um fenômeno bizarro, a sensação que Kovrin sente, de volta a casa, é trivial: uma agradável excitação, que cresce mais ainda quando percebe que só ele tinha visto o Monge Negro [será que isso não era, pelo contrário, para deixá-lo alerta e cabreiro?]: Riu alto, cantou, dançou uma mazurca, sentindo-se animadíssimo [vejam que ele faz coisas contrárias à sua índole contemplativa e intelectual]. Tanto Tânia como os convidados notaram em seu semblante uma expressão peculiar de êxtase e inspiração, e acharam-no muito interessante”.

         No terceiro capítulo, Tânia, já que Kovrin é um leitor avalizado, pede a ele que leia os artigos que o pai dela escreve sobre horticultura. O velho se finge de constrangido, contudo no fundo está bastante orgulhoso do que escreveu e louco para saber a opinião do antigo tutelado, agora uma autoridade intelectual. Isso acaba levando-o a uma confidência: o medo de morrer e ver todo o seu trabalho destruído. Imagine se Tânia casar, tiver filhos. O que será dos jardins e pomares? “…digo-lhe com toda a franqueza: não quero que Tânia se case. Tenho medo!” Ele só aprovaria um casamento da filha com… Kovrin: “se você e Tânia tiverem um filho, posso fazer dele um horticultor”.

         Ao ler os artigos de Pessotski (cheios de azedume e rancor contra as opiniões e práticas contrárias às dele), nosso amigo faz um diagnóstico perfeito para esse período fin-de-siècle permeado pelo decadentismo: É a mesma coisa por toda parte: em todas as carreiras os homens que têm idéias são nervosos e vítimas desse tipo de sensibilidade exacerbada. Quanto à sua visão do Monge, ele não se preocupa muito. Num trecho que já citei em epígrafe (na 4ª. aula), ele diz a si mesmo: “estou muito bem, e não fiz mal a ninguém. As minhas alucinações não têm nada de perverso, pensou, e sentiu-se de novo tranqüilo”. Só que todas as alucinações têm algo de perverso, meu caro Kovrin. O princípio da realidade está em xeque e o Desejo que aflora normalmente não está a serviço de Eros e sim de Thânatos.

         O final desse capítulo vai indicar uma nova fase emocional do protagonista: “os pensamentos que lia nos livros não mais o satisfaziam. Aspirava a algo mais vasto, infinito, assombroso… tocou a campainha e ordenou ao criado que lhe trouxesse vinho. Tomou com prazer uns copos, depois tapou a cabeça; sua consciência foi-se enevoando, e adormeceu”. O que talvez esteja adormecendo seja o superego.

         O quarto capítulo apresenta um clima tenso entre pai e filha, que na verdade é a constatação de que o “casamento” entre eles já não funciona tão bem, que algo falta. Com relação a isso, e ao desespero de Tânia devido à incompreensão do pai, Kovrin reflete: “Que ninharia bastava para fazer sofrer aquela criaturinha ao longo de todo um dia, o que é um pouco o desdém de Natanael (de O Homem da Areia ) pelo prosaísmo de Clara.  Em contrapartida ele reconhece que aquelas duas pessoas são os seus únicos elos afetivos, “ele, que perdera pai e mãe na primeira infância, teria vivido toda sua vida sem receber uma carícia sincera, sem experimentar sequer esse amor singelo e sem explicação que só dedicamos aos que nos são próximos pelo sangue. E sentia que seus nervos cansados, tensos como magnetos, respondiam aos nervos daquela moça chorosa e fremente”. A visão que fecha o capítulo é do nosso herói vendo a reconciliação entre pai e filha, como se nada houvesse acontecido, ambos comendo pão de centeio com sal, ambos com muito apetite.

         No quinto capítulo, reaparece repentinamente (após ele relembrar a primeira vez) a figura do Monge Negro: “de trás dos pinheiros em sua frente, avançou silencioso, sem o mínimo sussurro, um homem de meia altura. Trazia descoberto o cabelo grisalho, estava vestido de negro e descalço, como um mendigo. Em sua face macilenta, cadavérica, ressaltavam numerosas manchas pretas. Acenando com a cabeça, polidamente, o forasteiro ou mendigo caminhou silenciosamente até o banco e sentou-se”. E os dois (ou um só, desdobrando-se?) iniciam um diálogo, que se encontra justamente no meio da narrativa. O Monge reconhece ser um produto da imaginação excitada de Kovrin: “Eu existo na sua imaginação, e como sua imaginação é parte da natureza, devo existir também na natureza”. Vejam que maravilhosa exposição da realidade psíquica, da qualidade simbólica que a realidade ganha na nossa mente, fazendo duvidar que exista algo como a objetividade. No entanto, o discurso do Monge enveredará pela senda do afago ao narcisismo (justamente na persona de “homem intelectual”, de “servidor da ciência”, que é uma das formas principais do heroísmo oitocentista): “Você serve à verdade eterna. Seus pensamentos, suas intenções, sua ciência admirável, toda a sua vida traz o selo da divindade, um selo celestial [como os sons que a moça da cantiga ouvia]; e é tudo dedicado ao racional e ao belo, isto é, ao eterno… O verdadeiro prazer é o conhecimento… Você está doente porque forçou demais seus poderes, porque sacrificou sua saúde a uma idéia, e está próximo o tempo em que não sacrificará somente a saúde, mas a própria vida. Que mais pode desejar? É tudo a que aspira uma natureza bem dotada e nobre [5]. Kovrin questiona: se ele está fisicamente doente, como pode acreditar em si mesmo (note-se a aproximação nietzschiniana de doença com natureza bem dotada e nobre, o que será ratificado num trecho posterior: “Creia-me, as pessoas saudáveis e normais são vulgares: o rebanho. O medo do esgotamento nervoso, da superexaustão e da degenerescência só pode perturbar seriamente aqueles cujos objetivos na vida se encontram no presente: eis o rebanho… Repito: se quer ser saudável e normal, marche com o rebanho” ). Curiosamente, o Monge apela para o argumento seguinte (em se tratando de um homem racionalista): os gênios sempre tiveram “visões”. Mas a taça do sofismo, uma vez que ele acredita estar tendo uma alucinação (só que é uma alucinação narcísica) vai para o próprio Kovrin, que diz a seguinte pérola: Como é estranho que você esteja repetindo o que eu tenho pensado com tanta freqüência! E ainda: É como se me tivesse vigiado e ouvido os meus mais secretos pensamentos. Mr. Hyde (sintomaticamente, o desdobramento da consciência, o dissociar-se, está ligado a uma figura que, no imaginário medieval, é ligado ao recolhimento e ao saber; mas o adjetivo negro, ligado à batina, tem algo de lúgubre, ou de ameaçador, meio bruxo).

         E aí, mais uma vez, os traços do Monge enevoaram-se e ele se desfaz “no crepúsculo”, sumindo completamente. E Kovrin volta feliz, lisonjeado não no seu amor-próprio, pensa ele, mas na sua “alma”, em “todo o seu ser: “estar entre os eleitos, ministrar a verdade eterna, figurar entre aqueles que se empenham no curso de milênios para tornar a humanidade digna do reino de Cristo, libertar os homens de milhares de anos de luta, pecado e sofrimento, dar tudo a uma idéia (juventude, força, saúde, morrer pelo bem de todos), que idéia exaltante, gloriosa! E quando através da memória fluía sua vida passada, uma vida pura, sem mácula e cheia de trabalho, quando recordava o que aprendera e o que ensinara, era levado a concluir que não havia nenhum exagero nas palavras do monge. Hyde afagou o “ego ideal” de Jekyll, procurando o ponto certo onde minar suas defesas.

         Logo a seguir, quase sem transição, ele se declara à Tânia e pede sua mão.

         No capítulo seguinte, conta-se a novidade ao pai dela e segue-se o ritmo “os trabalhos e os dias”, como no poema de Hesíodo: “Com o calor do verão, as árvores tinham que ser regadas uma por uma; o processo custava tempo e mão-de-obra. Apareceram muitas largas, que os trabalhadores, e até Iegor Semionovitch e Tânia, esmagavam com os dedos, para grande nojo de Kovrin. As encomendas do outono, de frutas e árvores, deviam ser atendidas”. Nesses “trabalhos e dias” incluem-se os preparativos para o enxoval de Tânia: “com o permanente retinir das tesouras, o ruído das máquinas de costura, o cheiro dos ferros de engomar e os caprichos do nervoso e delicado costureiro, toda a casa parecia rodopiar. E, para piorar a situação, tinham visitas todos os dias, e havia que diverti-las, alimentá-las e dar-lhes pousada”.

         Enquanto Tânia e o pai vivem os esplendores e misérias desses dias de preparativos, muito preocupados também com as colheitas e coletas, Kovrin entusiasticamente trabalha, num diapasão diferente, e “mal percebe a confusão em torno”: “voltava a seu quarto enlevado e feliz, e se entregava ao trabalho com seus livros e manuscritos possuído da mesma paixão com que beijara Tânia e lhe declarara amor [esse nivelamento de entusiasmo não vaticina bom futuro à pobre noiva]. O que o Monge Negro lhe dissera sobre ser ele eleito de Deus, sobre a verdade eterna e o glorioso futuro da humanidade, dava a todo o seu trabalho uma significação peculiar, extraordinária. Uma ou duas vezes por semana, no parque ou em casa, encontrava o monge e conversava com ele horas a fio; isso, porém, não o assustava, ao contrário, deliciava-o, pois agora tinha a certeza de que essas aparições eram privilégio dos seres eleitos e excepcionais, que se dedicam à propagação das idéias. Kovrin representa um passo à frente do tipo de homem que já vimos nas histórias de Henry James, como aquele de O Altar dos Mortos; dessa vez, com o autocentramento projetando-se numa ideologia: a propagação de idéias. Quanto sectários e ideólogos o século seguinte não fabricará?

         Chega afinal o dia do casório, celebrado com pompa, com festividades que duraram dois dias: “apesar de toda a música de mau gosto, dos brindes ruidosos, dos criados atarantados, do barulho, do ambiente abafado” , apesar de todos esses aspectos grosseiros, e do gasto de três mil rublos, nem valorizou ou deu importância aos “vinhos caros nem aos maravilhosos hors d´oeuvres especialmente encomendados em Moscou”.

         E no sétimo capítulo já estamos em pleno casamento de Kovrin e Tânia, a qual vive com dor de cabeça por causa da vida urbana. E uma das noites em que acometida pelo incômodo, vai dormir mais cedo, seu marido recebe a aparição do Monge Negro, numa cadeira, ao lado da cama. Conversam sobre a glória e a fama, o Monge afirmando que elas nada são para um espírito como Kovrin e este modestamente confirmando. Depois, passam para o tema da felicidade. Kovrin diz: “estou um pouco assustado com minha própria felicidade. Da manhã à noite, só sinto alegria, a alegria me absorve e afasta todos os outros sentimentos. Não sei o que é dor, aflição, ou preocupação”. Freudianamente, diríamos que isso não é alegria ou felicidade, e sim sintomas de uma profunda dissociação da realidade. Tanto é que Tânia, acordando, olha espantada e aterrorizada para o marido que, voltado para a cadeira ao lado da cama, gesticula e ri para o vazio, com os olhos brilhando. Ela pergunta com quem ele pensa estar falando e ele diz que é com o Monge Negro: “Não há ninguém ali… Ninguém, Andriucha, você está doente… Perdoe-me, querido, mas há muito tempo eu venho achando que você não está bem dos nervos”. O engraçado é que o marido reaproximou-se dela e do pai justamente por estar sofrendo um esgotamento nervoso, que se diluíra em meio aos incidentes da estadia dele. Ou, como é mais provável, ele nunca tocou no assunto com eles? Afinal, ele é o homem intelectual, o magister, o guiado pelas Luzes da Razão: “Foi somente ao olhá-la que Kovrin compreendeu o perigo de sua posição e entendeu o sentido do que o Monge queria dizer, de suas conversas. Tornou-se claro para ele que estava louco. É interessante essa situação de uma pessoa tomando consciência da própria loucura, diagnosticando-se: “Parece que não estou regulando da cabeça!” Então, levam-no ao médico e inicia-se um tratamento. Palavra mágica: tratamento. A solução para os males burgueses. Porém, com Ivan Ilitch não deu muito certo. E com Hyde ou Mr. Kurtz, daria?

         E temos um início cíclico no oitavo e penúltimo capítulo: mais uma vez chega o verão e mais uma vez se recomenda a Kovrin uma temporada campestre. Ele recuperara a saúde e já não via mais o Monge Negro. Portanto, a sanidade é fechar-se à sua voz mais íntima, que reflete seus desejos mais pulsantes (e utilizo esse termo “pulsantes” na esteira das pulsões freudianas, mesmo). Não é confrontá-la, reconhecer que ela existe em si e poder harmonizá-la; é acreditar que a neutralizou e procurar o “vigor físico”, índice de saúde: Estava na casa do sogro, bebia muito leite, trabalhava apenas duas horas por dia, não tocava em vinho e tinha deixado de fumar”.

         Num passeio, após uma missa, Kovrin dá um passeio e vemos a mudança de um ano para outro tornada sensível pela sua percepção da natureza: “Os grandes pinheiros, com suas raízes nuas, que um ano antes lhe haviam parecido tão novos, tão alegres, tão cheios de vida, já não sussurravam, estavam silenciosos e imóveis, como se não o reconhecessem… E de fato, com o seu cabelo cortado curto, seu passo trôpego, sua fisionomia alterada, tão sombria, pálida e diferente do que era no ano anterior, seria mesmo difícil reconhecê-lo”. Ele, o ser narcísico envolvido numa fantasia megalomaníaca, foi domesticado pelo casamento e pelo tratamento médico. A saúde, quando se tenta neutralizar o Hyde dentro de nós: um passo trôpego, uma fisionomia alterada, sombria e pálida. A hora do crepúsculo já não permite mais a dissociação gloriosa, é uma hora mágica só no exterior: “O sol se pusera, e no horizonte flamejava um vasto arrebol vermelho… tudo era imóvel; e, olhando para um ponto onde um ano antes avistara pela primeira vez o Monge Negro, Kovrin ficou uns vinte minutos contemplando aquele esplendor rubro. Quando voltou para casa, fatigado e inquieto, Iegor Semionovitch e Tânia estavam sentados nos degraus da varanda, tomando chá. Conversavam, mas, ao vê-lo se aproximar, calaram-se”[6] . Apesar da docilidade com que se submeteu ao tratamento e ao casamento, isto é, à normalidade, a grande corrente de intimidade é ainda entre pai e filha, e isso o exclui, como também ficou excluído da magia do crepúsculo.

         E Tânia passa a cumprir um papel prescritivo: “Está na hora de tomar o seu leite”. Kovrin ainda resiste: “Não, ainda não…eu não quero”. Taxativa: “Você sabe que o leite lhe faz bem. E avaliamos o sentimento de perda que o crepúsculo transmitiu a Kovrin na sua resposta, após informar que ganhou mais meio-quilo com o “regime do leite”: “Por que vocês me curaram? Poções de brometo, ociosidade, banhos quentes, vigilância, um terror idiota a cada garfada, a cada passo, tudo isso vai fazendo de mim um idiota. Fiquei transtornado da cabeça, deu-me a mania de grandeza, mas com isso tudo eu era jovial, ativo e até mesmo feliz, era interessante e original… Agora me tornei reacional e sólido, mas igual a todo mundo: sou uma mediocridade… Eu tinha alucinações, mas a quem isso fazia mal?”. Mais adiante ele dirá: “Como eram felizes Buda, Maomé e Shakespeare, a quem seus bondosos parentes e médicos não curaram do êxtase e da inspiraçãoSe Maomé tivesse tomado brometo de potássio [foi o mesmo tratamento do narrador de O Horla] para os nervos, trabalhado só duas horas por dia e bebido leite, esse homem assombroso não teria deixado atrás de si mais que seu cachorro. Médicos e parentes bondosos se esfalfam só para tornar cretina a humanidade, e tempo virá em que a mediocridade passará a ser considerado gênio, e a humanidade perecerá… Se vocês tivessem idéia de como eu estou agradecido!”  Parece-me que nosso amigo Tchekhov leu Nietzsche. E devo acrescentar que há uma atmosfera similar num outro texto dele, bem mais famoso (e igualmente longo), Enfermaria número seis, no qual vemos um médico entediado com a tolice e mediocridade do mundo “normal” e que faz amizade com um “louco interessante”, um maluco beleza.

         É evidente que o sogro e as esposa não podem entender essa declaração de princípio. E agora a presença deles passa a irritar Kovrin, principalmente o sogro, a quem passa a olhar com desprezo e ódio, e tratá-lo com rudeza. Para Tânia, o marido se tornara “irritadiço, caprichoso, excitável e desinteressante” e isso a atormenta e estressa. O capítulo termina com uma discussão do casal sobre o pai. Kovrin explode, dizendo que o mais odioso em Iegor Semionovitch é o seu “otimismo estomacal, bovino, ou mesmo suíno: “O rosto dele parecia a Tânia feio e desagradável: não lhe assentava bem a expressão de ódio e desprezo. Ela observou mesmo que alguma coisa estava faltando no rosto dele, que parecia mudado desde que cortara o cabelo. Veio-lhe um desejo irresistível de dizer algo insultuoso, mas se conteve a tempo, e tomada de terror saiu do quarto”. Tomada de terror pelo que ouvia do marido ou tomada de terror pelo desejo irresistível de dizer algo insultuoso? De assim estabelecer a falsidade desse casamento? De também impor o seu “otimismo estomacal”, de porta-voz do rebanho medíocre e disciplinado?

         Vejamos como as coisas se resolvem ou se acomodam no último capítulo. Kovrin deve dar a aula inaugural da importante cátedra universitária que conquistou, mas começa a cuspir sangue, “que por duas vezes num mês escorreu em fluxo”. Começa a se sentir muito fraco, tomado de sonolência. Sua mãe vivera dez anos assim, e os médicos declaram não haver perigo, apenas é preciso regrar a vida. Mais ainda? A essa altura, Kovrin separou-se de Tânia e está vivendo com outra mulher, e notem bem, “mais velha, que cuidava dele como se fosse uma criança”. A  mulher-mãe (ele antes tivera uma mulher-filha, e nada de bom resultara[7] ), Varvara Nicolaievna, convence-o (apesar do seu ceticismo) a uma mudança de ares. Vão para a Criméia.

         No hotel em que estão hospedados, enquanto Varvara dorme, ele, acossado pela angústia, procura se tranqüilizar, trabalhando numa compilação que está organizando, “E com isso teve a impressão de recuperar seu antigo estado de espírito tranqüilo, resignado, impessoal. No entanto, isso o leva a pensamentos acabrunhantes: “Para obter uma cátedra de filosofia aos quarenta anos, para ser um professor igual aos outros, para expor pensamentos que eram lugares-comuns, além do mais, pensamentos alheios, numa linguagem inexpressiva, cansativa e pesada; numa palavra, para alcançar a posição de uma mediocridade erudita, ele estudara quinze anos, trabalhara dia e noite, passara por um grave distúrbio psíquico, sobrevivera a um casamento infeliz, fora culpado de desatinos e injustiças que era doloroso lembrar”. Ou seja, esse é o verdadeiro horror com que o personagem de Tchekhov tem de lidar, como alguns personagens de Henry James também acabam fazendo (lembro, por exemplo, de A fera na selva ).

         Ele vai à sacada, e no andar de baixo vem o som de um violino e algumas vozes femininas, numa cantiga que já ouvira, aquela da moça de imaginação exaltada que ouve à noite, no seu jardim, uns sons misteriosos e sagrados: “Kovrin reteve a respiração, seu coração parou de bater e o mágico, extático transporte que há muito esquecera, voltou a palpitar em seu coração”. E aí toda a repressão não pode mais, o casamento (mulher-mãe que seja) e o tratamento não podem mais: “Uma coluna negra, semelhante a um ciclone ou uma tromba d´água, apareceu no litoral em frente. Moveu-se com incrível velocidade através da baía até o hotel; foi diminuindo, diminuindo, e Kovrin chegou-se a um lado para lhe dar passagem… O monge, com a cabeça grisalha descoberta, as sobrancelhas negras, descalço, os braços cruzados sobre o peito, passou voando por ele e se deteve no meio do quarto: Por que não acreditou em mim, perguntou em tom de censura”.

         Na exaltação causada pelo reaparecimento da sua sensação de ser um gênio, um eleito de deus, Kovrin sente o sangue jorrando de sua garganta sobre o peito e até “seus punhos se tingiram de vermelho (como a hora do crepúsculo, e é como se ele estivesse saindo de dentro para fora de si mesmo). Pensando em chamar Varvara, quando grita, o nome que sai (duas vezes) é “Tânia”. O que é a culpa! Mas o nome e a figura também estão associadas às promessas da juventude, a um esplendor de verão: “Gritava para Tânia, gritava para o grande jardim com suas flores miraculosas, gritava para o parque, para os pinheiros som suas raízes nuas, para o campo de centeio, gritava para sua maravilhosa ciência, para sua juventude, sua coragem, sua alegria, gritava para a vida que tinha sido tão bela. Viu no chão, diante dele, uma grande poça de sangue e, de tão debilitado que estava, não pôde pronunciar  uma só palavra. Mas uma inexprimível, infinita alegria invadiu todo o seu ser. Embaixo da sacada a serenata continuava, e o Monge Negro murmurava que ele era um gênio e que só morria porque seu corpo débil e mortal tinha perdido o equilíbrio e já não servia mais como invólucro do gênio… Quando Varvara Nicolaievna despertou e veio de trás do biombo, Kovrin estava morto. Mas sua face se congelara num sorriso de felicidade”.  Quantos de narrativas que intitulei “margens derradeiras” não acabaram assim com uma morte em que dois lados do aparelho psíquico estão em confronto, dissociados, num desequilíbrio intenso: William Wilson, Jekyll e Hyde, Griffin, o Homem Invisível (também lembremos de Dorian Gray), o pobre Miles nos braços de sua preceptora; e Bartleby, deitado à beira de uma parede, e Simão Bacamarte trancafiado no seu sonho de ciência, Teodoro, insaciado de tão rico, e a civilização européia e o Império Britânico engolidos pelas trevas em pleno Tâmisa? E se não é no fim, a agonia de um Kurtz se espraia por todas as últimas páginas do relato de Marlow: “O horror! O Horror!” E Mr. Valdemar apodrecendo diante de nossos olhos, e o anfitrião do Horla concluindo que o suicídio é a única escapatória. E Natanael precipitando-se da torre para não encarar os o olhar do Homem da Areia. Nenhum deles, no entanto, perecendo com a face congelada num sorriso de felicidade, porque nenhum deles teve o alento da sua ilusão, o consolo narcísico, transfigurando o último momento como uma apoteose que faz da vida toda algo belo. Nesse sentido, Kovrin é o anti-Ivan Ilitch, que encontra na luz da morte a passagem que lhe permite fugir da existência mentirosa que é a vida “comme il faut”. A morte de Ivan Ilitch despoja a vida de seus enfeites e truques, deixa o palco vazio; a morte de Kovrin ressignifica a vida e mostra que só faltou um invólucro melhor.


[1] Harold Bloom afirma que a ficção curta moderna pode ser separada em duas vertentes distintas e opostas, a tchekhoviana e a borgiana: “os textos curtos de Tchekhov têm início repentino, final elíptico, e não denotam qualquer preocupação com o preenchimento de vazios [o que aconteceria no realismo oitocentista, por exemplo]… Ainda assim, Tchekhov espera que o leitor aceite realismo e a fidelidade com que seus contos retratam a vida. Borges, no encalço de Kafka, mergulha em fantasmagoria. Ele, assim como seu precursor, não nos oferece réquiens por uma vida não vivida  (Como e por que ler, Objetiva).

[2] Utilizo a tradução de Moacir Werneck de Castro, para a Rocco (naquela coleção que tem O clube dos suicidas, O Homem da Areia, A fera na selva, Um coração singelo, Sylvie).

[3] O pai de Tânia lhe diz, mais adiante: Não se pode saber tudo. Nem a maior das inteligências pode compreender tudo. Você continua afundado na filosofia?” Resposta: “Sim, estou lendo psicologia e estudando filosofia em geral” Pergunta: “E não o aborrece?” Resposta: “Ao contrário, é o que me faz viver”. De certa forma, Kovrin lembra os ideólogos que abundaram na ficção russa oitocentista, nas obras de Dostoiévski e Turgueniêv, e ao mesmo tempo os heróis de Henry James que já estudamos, homens que estão cegos para a realidade à sua volta, que vivem a existência como “cosa mentale”.

[4] Tchekhov deixa vagar na incerteza onde ou quando Kovrin “ouviu” ou “leu” a história, mas a reveste do clima de coisa que nos impressionou na infância e continuou na nossa mente (embora não com as características aterradoras do Homem da Areia, de Hoffmann) ou daquelas lendas de maldições ou  errâncias imemoriais e cíclicas, como a do Judeu Errante, o Holandês Voador, o Golem. Mas sempre há o elemento inquietante, ameaçador, nessa junção lenda + imemorialidade (e isso influencia o clima de O Horla, que trata de um ser que pode ter coexistido com o homem desde o início, sem ser percebido, e que se alimenta dele, o que será explorado também nas histórias de vampiros etc): “…o mais espantoso é que não posso lembrar como essa lenda me entrou na cabeça. Será que a li? Ou a escutei? Ou quem sabe sonhei com o Monge Negro? Não consigo me lembrar. Mas a lenda me fascina”. Na descrição da lenda, entra o aspecto do desdobramento (o monge se reduplica), que tem a ver com o fracionamento psíquico, o aspecto ilusório da identidade (da miragem surgiu outra miragem e dessa uma terceira) e a possibilidade de retorno (e Freud já nos ensinou o que geralmente retorna: o reprimido). O ego de Kovrin está dominado pelo superego. O esgotamento nervoso é uma fratura e um indício: seu inconsciente já esperou por demais (os mil anos) e as comportas se abrirão.

[5] O Monge lisonjeia aquela idéia de que o homem civilizado do século XIX é o “apogeu” da história da humanidade: “Sem vocês, servidores dos mais altos princípios, vivendo livre e conscientemente, a humanidade não seria nada; desenvolvendo-se na ordem natural, só lhe cabe esperar o fim de sua história terrena. Mas vocês, por cerca de mil anos, se empenham em chegar ao reino da verdade eterna, e este é o seu alto mérito. Vocês encarnam em si mesmos as bênçãos de Deus que ficaram entre os homens”. Vocês podem ver que Tchekhov parece parodiar esse discurso, principalmente porque o Monge cita o Evangelho de São João: “Na casa de meu Pai há muitas moradas”.

[6] Mais tarde, na mesma noite, ele procura as sensações do verão anterior e fracassa: Kovrin recordou os arrebatamentos do verão passado, quando o ar, como agora, estava impregnado do cheiro de jalapa e o luar se filtrava através das vidraças. Para tentar voltar ao estado de espírito do ano anterior, foi até o quarto, acendeu um charuto forte e mandou que o criado trouxesse vinho. Mas agora o charuto lhe era amargo e desagradável, e ao vinho faltava o sabor de antes.”

[7] Kovrin sempre mantém uma percepção totalmente autocentrada e egoísta com relação à Tânia e ao casamento. Uma carta dela consegue penetrar um pouco essa couraça, e também permite que a narrativa faça um retrospecto de acontecimentos sobre os quais saltou, o que mostra a perícia técnica de Tchekhov: “sabia que o casamento com Tânia fora um erro. Estava contente de ter-se afinal separado dela, mas a lembrança daquela mulher, que nos últimos tempos parecia haver-se transformado numa múmia ambulante, na qual tudo morrera… só lhe despertava piedade e irritação contra si mesmo… Vingara-se em gente que nenhuma culpa tinha de seu vazio espiritual, de sua solidão, de seu desencanto com a vida”.  Lembra, então, da sua revolta com a vida, a ponto de rasgar em pedaços sua tese, seus ensaios e seus artigos: “quando o último caderno acabara de ser rasgado e jogado pela janela, experimentou amargura e raiva, e foi cruel ao falar com sua esposa. Deus, como a destruíra! Lembrou-se de que um dia, desejando fazê-la sofrer, lhe dissera que o pai tinha desempenhado no romance deles um papel inusitado, chegando a lhe pedir que se casasse com ela”. Na carta que escreve a ele, Tânia o informa da morte do pai e de que os jardins e pomares estão passando para estranhos, justamente o que ele mais temia.

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