

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 17 de fevereiro de 2015)
Matheus Arcaro organizou cuidadosamente seu livro de estreia, Violeta velha e outras flores: vinte e dois contos dispostos em seis seções, e sentimos fortemente a afinidade temática que rege esses agrupamentos; por exemplo, o conto-título, no qual o protagonista, já idoso, rememora a relação permeada de violência com o filho (em que um sempre é o elo mais fraco) está em companhia de outros cinco onde situações-limites de desamparo afloram: a estudante destruída pelo vício até chegar à indigência total (“Alice”); a mulher com câncer, com um diagnóstico-sentença de poucos meses de vida, que procura cura espiritual (ou mero conforto?) num centro espírita (“A cura”); o residente de uma casa de repouso que, no dia do aniversário de noventa anos, espera ansiosamente os familiares (“Visita”); a moça atropelada («O farol do carro apagou as luzes do meu porvir»), em estado vegetativo (“Festa”).
Em outros blocos temos o despertar de uma sensibilidade infantil para o selvagem coração da vida (“Casulo Rompido”); situações que desnudam a hipocrisia e as máscaras das relações instituídas, como o casamento (“Até que a morte os separe”); temos até relatos que transitam entre o filosófico e o paródico, como a visitação ao inferno, ao paraíso e ao purgatório, com a oferta de se decidir por um deles concedida ao protagonista (“Está tudo escrito”); sem contar experiências como “A fúria sem som”, onde o relato de um deficiente mental, abusado por uma cuidadora (com resultados trágicos) e misturando instâncias temporais de toda uma vida, remete à parte mais famosa e intrincada de O som e a fúria (1929), de William Faulkner.
Portanto, temos um escritor jovem (30 anos), mas que leva muito a sério seu ofício, com uma intuição estrutural acurada[1]. Não obstante essas qualidades ponderáveis, que mostram um jardineiro dedicado, o que realmente importa em Violeta velha e outras flores, os relatos, revela a intrusão de ervas daninhas que comprometem tais cuidados com o jardim.
Grosso modo, o que a meu ver (pois é preciso dizer que o livro vem colhendo fartos elogios) incomoda na coletânea como uma falha grave é a falta de uma voz pessoal, de uma personalidade de autor que ilumine de forma peculiar, única, todo o cultivado buquê de temáticas e técnicas narrativas. Não sentimos em nenhum momento um universo ficcional com a marca inconfundível de Matheus Arcaro. Um ou outro conto ameaça timidamente um desabrochar nesse sentido, caso de “Festa” ou “Maquinando”, todavia sempre sentimos que falta algo essencial[2].
Por outro lado, em sua prosa, ele se deixou levar pela sereia do “escrever bonito”, caindo inúmeras vezes no pior beletrismo, aquele que transformou em escritores irremediavelmente anacrônicos Coelho Neto ou Afrânio Peixoto, e que faz dos contemporâneos Nélida Piñon (Vozes do Deserto) e Evandro Affonso Ferreira (O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam) exemplos de afetação e tom postiço (no fundo, subliterário).
Deparamo-nos, com trechos como «As papilas salivares censuram aos lábios o direito da separação»!?; «O ar árido e o hálito do sol, entrelaçados feito jovens amantes, salgam seus olhos»!?; «Como a viúva que levanta o véu do caixão para o beijo derradeiro na boca frígida, as cortinas se abrem»!?;«suas reflexões diluíam-se no reflexo que arrombava sua retina»!?; «a lua lambeu seus pés»!?[3]
Claro que há também trechos bons («Com o vestido florido, Clarice parece costurada ao ambiente»;«O esforço ineficaz daquele homem em escombros trouxe um espelho à sua frente; viu-se pelada numa cadeira de rodas, com o tempo ancorado nos ombros»;«Eram seis da tarde, mas o crepúsculo habitava-o há horas») infelizmente estrangulados entre a floração malsã de imagens de gosto duvidoso[4], piñonescas.
Ao fim e ao cabo, seria aconselhável ao jardineiro a poda implacável: melhor concentrar-se menos nos contornos do jardim e mais com a qualidade de cada flor[5]. Como lemos (aliás, uma passagem ruim) em “Reencontro”: «Como germinariam flores na boca se seco está o espírito?»

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TRECHO SELECIONADO
«será que vou pro céu não estou no mesmo degrau que o padre Ambrósio ou que as senhoras que puxam o terço de terça à noite porém não posso ir pro mesmo lugar que um matador de aluguel ou um político decerto foi pra evitar esse tipo de confusão que Deus inventou o purgatório o padre disse que não se fica lá por muito tempo só até pagar os pecados mais graves eu me esforço pra seguir os ensinamentos dele amar o próximo e tal mas é difícil sem crédito celular da porra»

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NOTAS
[1] Que encontrou na edição da Patuá o excepcional talento de Leonardo Mathias, que realizou um de seus melhores trabalhos.
[2] “A fúria sem som” talvez seja o conto mais impecável da coletânea do ponto de vista da tessitura textual, e mesmo assim tem um ar de exercício estilístico de oficinas criativas.
[3] O conto de abertura, “Casulo rompido”, já é comprometido por passagens e expressões infelizes, como “o menino moldado por seus genes”, “como se algo de dentro da flora o sugasse suavemente”, “líquido salso”, além de uma certa falta de rigor, como em “Ele era um títere encantado; um ser no qual o êxtase espreguiçava seus tentáculos” (afina, títere ou ser?, os dois não dá para ser, não?). O que nos leva também às frases sem qualquer sentido, como esta, de “Teclado”: “Júlio parecia com o que devia parecer. Um livro erótico de capa sóbria”!? Ou às afirmações banais e estereotipadas: “ele tinha que lavar o ranço do passado não vivido” (“Noite nua”)!?
[4] O já citado “Visita” fornece um bom exemplo desse estrangulamento: veja-se o primeiro parágrafo, marcado pelo excesso de imagens: “Inspirou como se erguesse a existência com os pulmões. Elas virão! A bofetadas, o tempo lhe ensinara que a vida não é uma equação pitagórica: uma delas pode ter passado mal; nesta época do ano, a gripe costuma atacar os que estão com o escudo em repouso. Ou, quem sabe, o carro pode ter enguiçado no caminho; estes carros modernos são mais frágeis que um coração empoeirado. Sentindo a menção do pensamento, o órgão debateu-se no calabouço torácico, mas logo foi domado pelo marca-passo e, resignando-se como um escravo recém-açoitado, voltou à sua função de tesoureiro da esperança.” (de “Maquinando”)
Ao longo do conto o leitor se depara com a felicidade que “fora concubina” do protagonista; uma mulher que carregava no peito “sublimes paradoxos” e uma filha com “hálito hialino”!?
[5] E mesmo no quesito “seleção”, há reparos a se fazer: ter escrito vinte e dois contos não é razão para publicá-los todos. O que justificaria a inclusão de “Guerra” e “À beira do abismo”?

