MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

17/11/2012

O autor como personagem: o Goethe de Martin Walser

OS SOFRIMENTOS DE WERTHER ENVELHECIDO

Que ora devo esperar de algum rever,

Da flor ainda fechada deste dia?

Com Paraíso e Inferno a te envolver,

Na indecisão tua alma se angustia! –

Adeus, ó dúvidas! No umbral dos Céus

Ela te leva a alçar nos braços seus.

No Paraíso então foste acolhido,

Como se jus fazendo à vida eterna;

Finda a esperança, e o desejo contido,

Cá estava pois a meta mais interna,

E ao contemplar da singular beleza

Secava a fonte ansiosa da tristeza.

(…)

 

A um seu olhar, como ao vigor solar,

E a um sopro seu, como aos da primavera,

Derrete-se o egoísmo a degelar

Toda a crosta invernal em que estivera;

Finda o interesse, acaba a teimosia,

Quando ela chega e os põe em letargia.

É como se dissesse; `De hora em hora

A vida se oferece amigamente.

Do passado o registro é incerto agora.

Do amanhã é vedado estar ciente.

E se com a noite eu já me amedrontei,

Com o pôr do sol, que brilha, me alegrei.

Faça pois como eu: sensato e rindo,

Olhe bem o momento! Sem tardança!

Com simpatia o tome por bem-vindo,

Quer em hora de ação, quer em festança.

Ponha-se inteiro e puro onde estiver,

Para tudo e invencível você ser.`

Bem dito isso, achei: se um deus lhe deu

Do momento essa graça tão presente,

Quem acaso ao amável lado seu

Um eleito da sorte não se sente?

Mas eu, mandado embora, o que faria,

Já sem você, de tal sabedoria?

Ora estou muito longe! E o que convém

Ao minuto atual não sei dizer;

O bom e o belo que dele me advêm

São apenas um fardo a rebater,

Ante a bruta saudade me impelindo,

Só me resta um remédio, o choro infindo.

Choro que jorra e flui, mas não tem jeito

De em meu íntimo a flama arrefecer…

(…)

Perdendo o Todo, eu mesmo, que era outrora

Favorito dos deuses, me perdi.

A me provar mandaram-me Pandora,

Que mais riscos que bens trazia em si;

À boca dadivosa eles me alçaram

E, ao separar-me dela, me arrasaram.”

    Os versos acima são de um dos mais famosos poemas de Goethe (1749-1832), a Elegia, composta por 23 sextetos,  agora universalmente conhecida como Elegia a Marienbad, e que faz parte de um pequeno volume chamado Trilogia da Paixão (que pode ser encontrado numa edição conjunta da Rocco com a L&PM). A versão que utilizei foi feita por um dos nossos tradutores mais admiráveis e escrupulosos, Leonardo Fróes. A Elegia foi escrita em 1823, aos 74 anos do autor. O doloroso episódio biográfico que o inspirou (a paixão por uma mocinha de 19 anos, Ulrike von Levetzow) e que alijou o poeta da posição de “favorito dos deuses” é o mote para um delicioso e brilhante romance de Martin Walser [publicado em 2008, e traduzido agora no Brasil por Renata Dias Mundt, em edição da planeta], Um homem apaixonado. Nele, encontraremos integralmente a Elegia (vertida de forma literal pela tradutora, por isso, apesar da sua competência optei pela versão de Fróes como intróito desta resenha).

   Não vou entrar aqui no mérito da conveniência ou não desse gênero de paixão (no caso, uma diferença de 55 anos), que foi uma tendência da vida madura de Goethe. Só pretendo enaltecer as virtudes de uma obra que ousa nos fornecer um retrato verossímil de um criador quase inescrutável, apesar do teor confessional de boa parte da sua produção, e do tour-de-force de Thomas Mann, ao retratá-lo num famoso capítulo de Carlota em Weimar, obra-prima de 1939.

     Na sua primeira parte, a narrativa localiza Goethe e a família Levetzow (mãe viúva e três filhas) na Marienbad de 1823, que começa a se tornar uma estância badalada no “circuito das águas” europeu. O ancião ocupa a posição mais eminente entre os homens de letras europeus, e é seguido, bajulado, citado, ou seja, aquela coisa pomposa que cerca a figura de Goethe como “ser olímpico”. Portanto, para as mulheres do clã é um privilégio sua convivência com ele, o qual há dois anos está fascinado por Ulrike. Ela, por sua vez, parece manter sempre uma atitude de flerte, provocativa e sedutora. O sucesso do “casal” enamorado (eles chegam a trocar beijos, o que é evocado na Elegia) chegará ao auge quando ganharem um concurso de fantasias, ele como Werther, seu personagem mais famoso, e ela como Lotte, a amada do infeliz e suicida herói. Já nesse passo do romance, Walser nos impressiona porque, seguindo os meandros mentais e sentimentais de Goethe, nem por isso deixamos de pressentir, pulsando sob diálogos admiráveis em elegância e discrição, as intrigas da pequena sociedade ali instalada para o verão. Nessa parte, há também a constrangedora e cruel cena da queda de Goethe (num colóquio no escuro com Ulrike), em que se fica patente (e patético, até no sentido etimológico de “páthos”) seu esforço desesperado de manter a “dignidade”, grande meta dos seus anos tardios, mesmo movido por uma paixão potencialmente ridícula.

      Ele usa seu protetor e amigo, o soberano de Weimar, para pedir em seu nome a mão de Ulrike. Na segunda parte, vemos como, sem querer perder o apelo mundano da presença do grande homem, a mãe da moça fará tudo para mantê-los sob vigilância, depois de uma discreta fuga para Karlsbad, ele no encalço delas.

   Quando se pensa que não há o que avançar no romance, ele se torna melhor ainda: Goethe voltou a Weimar e escreveu a sua Elegia. O que fazer com ela? Não a pode mostrar para quase ninguém. E o grande homem é quase refém na sua casa: sua nora Ottilie (que está mais para esposa, tal forma voraz com que se apossou da vida cotidiana do famoso sogro) faz cenas, cai doente, devido aos boatos da possível ligação com Ulrike (transmitidos de boca em boca), o vigia, conspira, e ele chega a acreditar que até sua correspondência é revistada e censurada. Pela arte de Walser, missivas reais e imaginárias se misturam, e ficamos conhecendo tanto a vida externa, os hábitos e as regras férreas que sustentam a existência (e freiam seu lado passional) do velho Werther como a sua vida interior de “homem apaixonado”, mas condenado à resignação: “…estás em terra inimiga… és agora o resignado, como nunca o foras… a mais nobre fachada cultural da Alemanha, da Europa, do mundo todo, o exemplo de resignação para os tempos vindouros, todos os infelizes devem levantar os olhos para ti como para uma constelação: assim se lida com uma grande dor, vês, de forma que a dor não seja mais dor… um sorriso, um esgar cultural que torna o teu rosto mais belo, a dor é uma poema de ocasião…” O poder da máscara.

(uma versão da resenha acima foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 14 de setembro de 2010)

13/05/2012

15 DESTAQUES DE 2010

(uma versão reduzida saiu em A TRIBUNA de Santos de 04 de janeiro de 2011)

É sempre  bom esclarecer que quando um crítico propõe destaques entre as publicações de um ano, ele não está propondo uma lista de melhores, o que seria risível. Quem lê tudo o que se lança num ano? E se lesse, que tipo de pessoa seria essa?  Por exemplo, saíram em 2009 e são dois dos melhores livros da década  A fantástica vida breve de Oscar Wao, de Junot Díaz, e Quando haverá boas notícias, de Kate Atkinson, e o leitor não os encontrará na minha lista do ano passado. O mesmo deverá acontecer com lançamentos de 2010, que não tive oportunidade de ler. Também não entrarão na minha lista obras que ganharam nova tradução, caso de reaparições importantíssimas, como  Walden, de Thoreau, nas mãos especialíssimas de Denise Bottmann, ou as novas versões dos romances de William Kennedy (A grande jogada de Billy Phelan & Ironweed), ou de Henderson, o rei da chuva, de Saul Bellow, ou ainda de A verdadeira vida de Sebastian Knight, de Nabokov, só para citar alguns; ou então  novas edições de autores essenciais (é o caso de dois lançamentos primorosos do ano que acabou, os Contos Completos de Lima Barreto e a edição conjunta de Diário do Hospício  & Cemitério dos Vivos).

Tendo em mente essas limitações, eis 15 lançamentos imprescindíveis do último ano (em comentários sumários e necessariamente superficialíssimos):

1)Sartoris, de William Faulkner (CosacNaify)-  Romance fundador, que em 1929 deu início à saga da decadência sulista, representada pelo mítico condado de Yoknapatawapha, um dos lugares fundamentais da ficção,  e em que a obsessão do maior escritor norte-americano pelo tempo se traduz numa narrativa  caleidoscópica fascinante.

2) Verão, de J.M. Coetzee, e Invisível, de Paul Auster (Companhia das Letras)-  Dois dos mais notáveis escritores da pós-modernidade no auge de sua maestria, em relatos que se aproximam do limite do relato tal como conhecemos.

3) Memórias Inventadas, de Manoel de Barros (Planeta)- Um poeta que se recusa a sair da infância e vet o mundo e a linguagem  com outros olhos que não sejam os da não-domesticidade, do não-conformismo. O resultado é uma poesia-brincadeira-infantil muito séria e contundente. Neste ano também, pela Leya saiu a sua Obra Completa, a qual preencheria um ano todo da vida de um leitor.

4) O arquipélago da insônia, de António Lobo Antunes (Alfaguara)- O mais lírico e pungente dos livros ciclópicos publicados pelo grande autor português nesta última década, chegando ao requinte de ter um narrador autista. Também prova cabalmente como a lição de Faulkner foi fecunda. Mas poucos o seguiram com tal radicalismo.

5)A câmara de inverno, de Anne Michaels (Companhia das Letras)- Finalmente, depois de mais de uma década,  o segundo romance da fabulosa autora canadense, que já criara um fascinante deslocamento geográfico em  Peças em fuga. Memória, esquecimento, conservação, deterioração, os opostos se atraem nessa autêntica poesia da prosa, incursão bissexta no gênero narrativo de uma poetisa consagrada.

6) Senhores e Criados e Outras Histórias, de Pierre Michon (Record)- O grande autor francês, de Vidas minúsculas, aproxima a ficção  da pintura e do relato biográfico, em três textos, pelos quais circulam figuras como Van Gogh, Goya, Watteau, Piero della Francesca ou Claude Lorrain. Michon é da estirpe de um W. G. Sebald ou de um Claudio Magris.

7) Um homem apaixonado, de Martin Walser (Planeta)-  Uma bela incursão pela alma, mente, espírito e corpo de Goethe, o qual, septuagenário, se inspira na sua paixão por uma mocinha de 19 anos para compor um de seus mais famosos poemas. É o eros da criação contra a aproximação da morte, e aí não importa tanto se a paixão biográfica foi bem sucedida ou não.

8) A morte de Matusalém, de Isaac Bashevis Singer (Companhia das Letras)- O maior contador de histórias curtas da 2ª. metade do século XX em plena forma, tanto nas incursões sobrenaturais, onde mergulha no imaginário judaico, quanto (ou sobretudo) nas soberbas narrativas realistas.

9) Hóspedes do Vento, de Chico Lopes (Nankin)- Talvez o mais talentoso contista  brasileiro surgido nesta década, em sua terceira e mais equilibrada coletânea, após os talentosos Nó de sombras & Dobras da noite.

10) Sabres e utopias, de Mario Vargas Llosa (Objetiva)-  Uma chance de conhecer o pensamento político do incontornável vencedor do Nobel de 2010, sem que necessariamente tenha de se concordar com ele.

11) A questão dos livros, de Robert Darnton (Companhia das Letras)- magnífica reunião de ensaios  do historiador norte-americano onde ele discute o passado, o presente e o futuro do livro e do conhecimento enciclopédico.

12) Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas (CosacNaify)- Quanto mais vou conhecendo a obra de Vila-Matas, mais vou achando que ele é um dos grandes nomes da literatura atual. Este talvez seja o seu livro mais ambicioso.

Hors concours: 2666, de Roberto Bolaño (Companhia das Letras) & Os embaixadores, de Henry James (CosacNaify)- O que teria em comum um romance escrito por um Chileno e que transcorre num México microcosmo da nossa época, e um romance  em que James nos mostra o problema do cosmopolitismo, a problemática convivência entre americanos e europeus? Simplesmente são os romances mais ambiciosos escritos na década inicial do século, no caso de Bolaño, o nosso próprio século, e no caso de James, o século passado, e que parecem esgotar as formas narrativas em curso.

Feliz 2011 e um monte de leituras para todos.

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