MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

10/09/2015

O MEU TIPO DE ROMANCE: “Conversa no Catedral”, de Vargas Llosa

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[uma versão do texto abaixo foi publicada no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO, em 9 de setembro de 2015, VER: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/09/o-meu-tipo-de-romance-conversa-no.html]

«Eu quisera que meus livros fossem lidos como eu li os romances de que gosto. Os romances que me fascinaram, mais do que entrar pela inteligência, através do puro intelecto, da pura razão, me enfeitiçaram literalmente, quer dizer, se converteram em histórias que de certa forma destruíram toda capacidade crítica em mim. E me faziam perguntar: O que vai acontecer? O que vai acontecer? Este é o tipo de romance que eu gosto de ler e este é o tipo de romance que eu gostaria de escrever. Então para mim é muito importante que todo elemento intelectual, que é inevitável que esteja presente em um romance, de alguma forma esteja dissolvido fundamentalmente em ações, em episódios que deveriam seduzir o leitor não por suas ideias, mas por sua cor, por seu sentimento, suas emoções, suas paixões, por sua novidade, por seu caráter insólito, pelo suspense e o mistério que possa emanar deles. Para mim, a técnica do romance é fundamentalmente conseguir isso, conseguir diminuir e, se possível, abolir a distância entre a história e o leitor. Nesse sentido eu creio que sou um escritor do século XIX. Para mim o romance continua sendo o romance de aventura, que se lê desse modo especial, tomado pela história».

Essas afirmações podem ser encontradas no livro de Ricardo A. Setti, Conversas com Vargas Llosa[1]. Embora haja uma verdade profunda nelas, creio que também é possível declarar que o escritor peruano (Nobel 2010) é um típico representante do romance no formato modernista: enciclopédico, labiríntico e total, no sentido joyceano; e no caso dele muito especificamente, no sentido faulkneriano.

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Não foram poucas as vezes em que Llosa se declarou um admirador de Faulkner, tendo usado com muito proveito suas técnicas, inclusive a de fazer a história surgir de conversas, de colóquios nos quais muitas vezes os fatos se refratam em diversas versões, que se opõem e se complementam. Três autores, aliás, sempre apareceram muito nas entrevistas e ensaios de Vargas Llosa: duas admirações constantes, Faulkner e Flaubert, e uma relação de amor e ódio: Sartre (para se purgar do fantasma sartreano, publicou um livro inteiro e alentado: Contra vento e maré[2]), com quem acabou sendo injusto, tachando seus romances de muito ruins, o que está longe de ser a verdade.

Um dos aspectos mais relevantes de  CONVERSA NO CATEDRAL[3] tem uma feição tipicamente sartreana: além das conversas (de Zavalita com Ambrosio, matriz do romance; com o jornalista desiludido, literato falhado, Carlitos; também tem os diálogo entre Ambrosio e Don Fermín, entre Ambrosio e Queta), das cenas justapostas, da discreta narrativa em 3ª. pessoa, dos discursos indiretos livres, enfim, de toda a pletora de recursos explorados no romance, um procedimento narrativo relevante (que Llosa praticará com muito proveito até no recente O paraíso na outra esquina, embora de forma mais discreta e atenuada) é o do solilóquio que Zavalita, o protagonista, mantém consigo mesmo e que espelha sua perplexidade, sua frustração e sua má consciência (que origina situações em que ele age de má fé, no sentido sartreano do termo, de descompasso entre sua ação e sua consciência). Solilóquio + dúvidas= Hamlet.

Entre outras, a leitura de CONVERSA NO CATEDRAL me fez sonhar (um dos muitos projetos que já acalentei) em perseguir num estudo o arquétipo de Hamlet na ficção da modernidade, encarnado especialmente em intelectuais e artistas. O próprio Mathieu de Os caminhos da liberdade (a trilogia de Sartre formada por A idade da razão, Sursis Com a morte na alma, que eu acho sensacional, malgré o que Llosa possa dizer contra seu antigo mestre); também os heróis e heroínas de Os mandarins (Simone de Beauvoir);  Sem olhos em Gaza (Huxley); O jogo da amarelinha (Cortazar); O carnê dourado (Doris Lessing); O lobo da estepe (Hesse), só para ficar em alguns poucos exemplos notáveis.

Mas voltemos ao nosso amigo Zavalita, que começa a participar nem sabe bem por que das reuniões clandestinas do Partido Comunista peruano  quando se torna amigo de Aída e  Jacobo (o caso é que ambos são apaixonados por Aída e Jacobo utiliza as reuniões clandestinas para separá-la de Zavalita e se aproximar dela).

Vejamos algumas passagens:

«Tinha sido nesse segundo ano [na universidade San Marcos], Zavalita, ao ver que não bastava aprender marxismo, que também fazia falta acreditar? Provavelmente o tinha fodido a falta de fé, Zavalita. Falta de fé para crer em Deus, menino ? Para crer em qualquer coisa, Ambrosio… O pior era ter dúvidas, Ambrosio, e o maravilhoso poder fechar os olhos e dizer Deus existe, ou Deus não existe, e acreditar… Então a vida se organizaria sozinha e a gente já não se sentiria vazio, Ambrosio»

« e isso o preocupava tanto, Zavalita? dizia Aída. E Jacobo, se de todas as maneiras ele tinha que começar acreditando em algo era preferível crer que Deus não existe a crer que existe. Santiago também o preferia, Aída, ele queria se convencer que Politzer tinha razão, Jacobo. O que o angustiava era ter dúvidas, Aída, não poder estar seguro, Jacobo… As dúvidas eram fatais, dizia Aída, paralisam-no e você não pode fazer nada, e Jacobo: passar a vida esmiuçando será verdade? torturando-se será mentira? em vez de agir… Para agir, era preciso acreditar em algo, dizia Aída»

 «Sempre mentindo, a vida toda fingindo… No colégio, em casa, no bairro, no Círculo, na Facção, em La Crónica. Toda a vida fazendo coisas em que não acreditava, toda a vida dissimulando… E toda a vida querendo acreditar em algo. E toda a vida mentira, não acreditando»

 «Tinha se dedicado furiosamente a ler, a trabalhar no Círculo, a acreditar no marxismo, a emagrecer»

«Eu já invejava as pessoas que acreditavam cegamente em alguma coisa, Carlitos»

«E se você tivesse se inscrito naquele dia, Zavalita, pensa. A militância o teria arrastado, comprometido cada vez mais, teria dissipado as dúvidas e em alguns meses ou alguns anos teria se tornado um homem de fé, um otimista, um obscuro e puro herói a mais? Teria vivido mal, Zavalita, como Jacobino e Aída, pensa, entrado e saído da cadeia algumas vezes, sendo admitido e despedido de sórdidos empregos e, em vez de editoriais em La Crónica contra os cachorros raivosos, escreveria nas páginas mal impressas de Unidad, quando tivesse dinheiro e não fosse impedido pela polícia, pensa, sobre os avanços científicos da pátria do socialismo e a vitória no sindicato dos  panificadores de Lurín… ou teria sido mais generoso e entrado para um grupo insurrecional e sonhado e atuado e fracassado nas guerrilhas e estaria na prisão, como Héctor, pensa, ou morto e decomposto na selva, como o cholo Martinez, pensa, e feito viagens semiclandestinas a Congressos da Juventude, pensa, Moscou, levando saudações fraternais a Encontros de Jornalistas, pensa, Budapeste, ou recebido  treinamento militar, pensa, Havana ou Pequim. Você teria se formado em Direito, teria caso, teria sido assessor de um sindicato, deputado, mais desgraçado, a mesma coisa ou mais feliz? Pensa: ai, Zavalita»

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Creio que se trata da obra-prima de Vargas Llosa, apesar da quantidade de títulos impressionantes[4].   Tenho lido intensamente durante estes últimos trinta anos a sua ficção (e também a sua ensaística[5]) e creio que posso afirmar com segurança: CONVERSA NO CATEDRAL é um romance total, um daqueles livros absolutos,  uma visão caleidoscópica e assombrosa da ditadura do general Odría, que deu o golpe no Peru no finalzinho dos anos 1940 e impôs um regime ditatorial por boa parte da década de 50. E Vargas Llosa o publicou em 1969, quando tinha apenas 33 anos!

É claro que já tinha dado uma medida da dimensão do seu talento porque os seus dois primeiros romances, A cidade e os cachorros(durante anos, conhecido no Brasil, e foi assim que eu o li, como Batismo de fogo), em 1962, e A casa verde, de 1965,  eram empreendimentos ciclópicos e singulares (A casa verde ainda se desdobraria em outros, devido ao personagem Lituma). Mesmo assim, há algo de incomparável no fôlego e no apetite de totalidade que nos dá o seu terceiro romance. O único caso similar das últimas décadas que eu conheço é Fado Alexandrino (1983), um dos grandes romances de António Lobo Antunes.

O título vem do reencontro entre Santiago Zavala, o Zavalita, com o antigo chofer da família, Ambrosio. Santiago vai ao canil municipal porque homens da carrocinha pegaram seu cão, Batuque (como eles ganham uma miséria e por número de apreensões, às vezes não se furtam de roubar animais, ou mesmo de tirá-los à força dos donos, como aconteceu com a mulher de Santiago). A ironia é que ele, editorialista, vem escrevendo uma série a respeito da raiva e pedindo medidas das autoridades para conter o número de cães na capital. No canil, ele testemunha uma espantosa e bárbara execução de um cachorro (mas consegue resgatar o seu): dois funcionários enfiam-no num saco e o matam a pauladas. Um deles é Ambrosio. No começo do capítulo, saindo do serviço, Santiago (que acabou de fazer 30 anos) se pergunta “em que ponto se fodeu”, “em que ponto o Peru se fodeu”. E verá em Ambrosio um espelho, mais velho, numa escala social diferente, um outro tipo de derrota, de embotamento, de sensação de ter sido vencido pela vida. Aquela sensação de logro existencial que se abate sobre os personagens de Educação Sentimental (do autor predileto de Vargas Llosa, Flaubert, a respeito do qual ele escreveu o magistral ensaio A orgia perpétua), no final de suas trajetórias pelas aventuras da sua geração. A má consciência de Santiago Zavala como homem de imprensa, como marido, como peruano (depois conheceremos os sonhos de sua geração) já aparece logo no princípio de CONVERSA NO CATEDRAL.

“Catedral” é o nome do boteco, uma espelunca[6], em que ele e Ambrosio bebem durante horas, numa conversa que permeará as centenas de páginas do romance. Um nome significativo, uma vez que o começo da revolta de Santiago contra sua classe social e sua família foi o anti-clericalismo, a repulsa pelos padres e pelo catolicismo.

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Como eu já disse, a conversa entre Santiago e Ambrosio (em torno da qual ronda um segredo bombástico sobre o pai de Santiago, que está no cerne da trama do romance), ambivalente e exasperante, permeia o romance inteiro. Mas, como é seu hábito, e uma das marcas do seu virtuosismo técnico, Llosa faz com que duas ou várias situações fiquem sobrepostas em cada passagem da narrativa. Um exemplo: no capítulo VII da primeira parte (são quatro ao todo), Ambrosio conta a Santiago como conheceu seu pai, Trifulcio; ao mesmo tempo, vemos Trifulcio no seu longo tempo de prisão (há uma cena em que ele e seus companheiros, atirando pedras, conseguem matar uma ave de rapina e toscamente assá-la, havendo uma disputa feroz pelos pedaços; também vemos como sua força é lendária, tanto que Dom Melquíades, possivelmente o diretor da prisão, traz um dos pilares do governo Odría , Emilio Arévalo, cujo filho, Popeye, será muito amigo de Santiago e casará com sua irmã, para uma demonstração), depois a libertação (ele trabalhará para Arévalo), em diálogos que se intercalam com as diligências do homem forte do governo Odría, Cayo Bermúdez para dominar os serviços de inteligência do regime e esmagar os “subversivos”; vemo-lo primeiro com militares, depois num diálogo com o homem que o chamou para fazer parte do governo (e o qual ele está visivelmente solapando e colocando em posição subalterna) e depois com civis poderosos (entre eles, Arévalo e Don Fermín, o pai de Santiago); também vemos torturadores em ação (e um dos torturados, ficamos sabendo, é Trinidad, o companheiro de Amália, a empregada da casa dos Zavala, a quem Santiago e Popeye, como autênticos playbozinhos,  tentaram seduzir numa noite em que a família estaria ausente, causando a demissão dela; ela será o grande amor da vida de Ambrosio; parte da trajetória de Amália, a mais ligada a Trinidad, tínhamos acompanhado num capítulo anterior, contudo parecia que era mitomania de Trinidad a perseguição política e sua morte misteriosa parecia indicar mais que ele era “ruim da cabeça” do que maus-tratos nos chamados “porões da ditadura”); vemos como é o encontro entre Ambrosio e Trifulcio (em que o pai tenta roubar dinheiro do filho, ameaçando-o com uma faca), vemos como Ambrosio saiu de sua cidade natal, e tendo ajudado o jovem Cayo Bermúdez a raptar sua futura esposa (que se tornou uma virago), ir à capital pedir um emprego ao poderoso Robespierre do regime Odría, como ele se transforma no chofer de Bermúdez e como se envolve com os profissionais de repressão e tortura.

Tudo isso sem grandes necessidades de explicações e de narrativas muito longas e descritivas. Não, tudo através do intercalamento magistral de diálogos; tudo puxado (no referido capítulo) pelas reminiscências de Ambrosio com relação à sua mãe…

O romance como exercício de virtuosismo e como cosmovisão. Como afirmou Simone de Beauvoir a respeito de suas leituras favoritas,  «a recriação de um mundo que envolve o meu e que lhe pertence, que me desambienta e me ilumina, que se impõe a mim para sempre com a evidência de uma experiência que eu teria vivido ».

VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2013/10/25/varios-romances-num-so-conversa-na-catedral-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-i/

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NOTAS

[1] O qual eu cito na edição da Brasiliense, e não na mais recente, da Panda Books.

[2] Na verdade, o título do formato final da compilação de uma miscelânea de textos.

[3] No original, Conversación en La Catedral (1969). Temos três traduções brasileiras: a de Olga Savary (ed. Francisco Alves & Círculo do Livro); a de Wladir Dupont (ARX) e a de Ari Roitman & Paulina Wacht (Alfaguara).

[4] Basta lembrar de A guerra do fim do mundo, Lituma nos Andes, Os filhotes, A casa verde, Tia Júlia e o escrevinhador, A cidade e os cachorros,  livros que ficam pouco atrás de CONVERSA NO CATEDRAL; tem também os deliciosos (no mais pleno sentido do termo) Pantaléon e as visitadoras, Elogio da Madrasta. E como esquecer dos surpreendentes e inusitados História de Mayta e O falador?

[5] Embora tenha muitas reticências com relação aos seus posicionamentos políticos (e é preciso dizer que seus três últimos romances deixaram muito a desejar: Travessuras da menina má; O sonho do celta; O herói discreto).

[6] A edição da Alfaguara é a única a indicar isso, embora a meu ver, a tradução literal (Conversa NA catedral), adotada pelas anteriores, acentue o teor irônico e dessacralizante.

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26/04/2014

A TENTAÇÃO DE SÃO HUGO

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de santos, em12 de fevereiro de 2013)

Eu não sei quantos ainda têm coragem ou disposição de encarar o tempo exigido pela leitura de Os Miseráveis (1862), embora seja uma experiência altamente gratificante. O certo é que seu enredo folhetinesco e mirabolante continua exercendo apelo enorme sobre o público, como se pode constatar pelas periódicas, e já incontáveis, transposições para outros veículos. O mais eloquente símbolo do seu sucesso é a permanência em cartaz do musical que originou o filme de Tom Hooper (aquele mesmo do medíocre O Discurso do Rei), com Hugh Jackman e o grande Russell Crowe nos papéis centrais, Jean Valjean e Javert (contudo, a figura mais badalada da produção é Anne Hathaway, no papel da desventurada Fantine).

Fascinado pela obra-prima de Victor Hugo, e pelo próprio universo “titânico” do gênio literário francês, Mario Vargas Llosa mergulhou por dois anos em Os Miseráveis e na sua fortuna crítica[1].

O resultado foi um curso em Oxford, em 2004, e um ensaio, A Tentação do Impossível (La tentación de lo imposible), publicado no mesmo ano, muito superior às mais recentes produções romanescas do peruano (Travessuras da Menina Má; O Sonho do Celta), o qual sempre foi excelente crítico literário: A Orgia Perpétua e A Verdade das Mentiras estão entre os títulos vargasllosianos obrigatórios.

Ele toma como mote uma passagem de Alphonse de Lamartine (1790-1869), em que este condena seu contemporâneo porque “A mais homicida e mais terrível das paixões que se pode infundir às massas é a paixão do impossível”. Pois Hugo, desdenhando das leis humanas, da justiça dos homens, desmistificava em seu portentoso livro todo o sistema judiciário, quase que antecipando Kafka, quando este —em O Processo— decreta que “A mentira se converte em ordem universal”:

“A acusação de Lamartine a Victor Hugo lembra uma afirmação que encontrei num livro de Eric Hobsbawm [Rebeldes primitivos], segundo a qual o que os príncipes alemães mais temiam em seus súditos era o entusiasmo, porque este, a seu ver, era semente de agitação, uma fonte de desordem. Lamartine e os príncipes alemães tinham razão, é claro. Se o objetivo proposto é manter a vida social dentro dos cânones escritos, imersa numa ordem imutável como a astral ou a do trajeto dos trens, o entusiasmo e a alucinação ou miragem transitórios que uma ficção bem-sucedida produz é um inimigo potencial, um imprevisto que pode desorganizar a vida, espalhando a dúvida e a discórdia e estimulando o espírito crítico, dissolvente, capaz de provocar múltiplas fraturas na arquitetura social.”

Kafka é um autor moderno. Llosa nos mostra quão antiquado (uma das razões do seu encanto perene, diga-se de passagem) é Os Miseráveis como romance, uma vez que o narrador (“o divino estenógrafo”)  ali usurpa o papel de Deus, interferindo na ação, fazendo comentários, digressões autobiográficas, explicando para o leitor nos menores detalhes suas intenções e as dos personagens, ou seja, uma Voz asfixiante e autoritária. Não fosse Hugo um misto de escritor, ideólogo, presença carismática e profeta, uma daquelas figuras oitocentistas “maiores que a vida”, como Tolstói e Walt Whitman.

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Essa desmesura do narrador/autor se reflete nos seus protagonistas, “monstros pontilhosos”[2], todos levando ao extremo (não à toa o autor de O Corcunda de Notre-Dame propôs o Sublime e o Grotesco como movimentos pendulares da criação artística) suas características. O exemplo mais acabado é o policial Javert, encarnação inumana do apego ao dever, perseguindo por décadas um prisioneiro evadido que roubara um pedaço de pão! O próprio herói, Jean Valjean, chega às raias do sobre-humano, com suas ações de auto-sacrifício (além da sua força física descomunal), que sempre desbaratam a estabilidade que por vezes consegue na sua longa trajetória de perseguido.

Sim, eles nos parecem monstruosos e não raro foram acusados de inverossímeis por críticos que não perceberam que esses exageros descabelados de Os Miseráveis (que o tornam o maior dos romances românticos, a meu ver) apontam para uma dimensão alegórica. Ainda que com ambientação histórica definida (com alguns anos-chaves:  1817 e 1832), estamos diante de uma alegoria sobre a luta do Bem e o Mal, sobre o Progresso e a presença de Deus nos caminhos tortos da humanidade; e mais ainda, esses exageros apontam para uma ambição inerente ao gênero, de ser “total”, de apresentar uma realidade ficcional autônoma, uma realidade paralela. “Romance: mundo imerso no mundo”, dizia Osman Lins  (gosto muito de citar essa frase), e Os Miseráveis é um dos exemplos consumados dessa vocação, a qual efetivamente foi pedra-de-toque do próprio Llosa, ao criar seus monumentais Conversa na Catedral e A Guerra do Fim do Mundo  (este último, inclusive, nascido a partir da leitura de um livro  marcadamente ciclópico, à Victor Hugo: Os Sertões). Ele sempre deixou claro sua dívida com relação aos romances “totalizantes” (como Moby Dick ou Guerra e Paz).

Hugo chegou a afirmar que seu romance era “uma espécie de ensaio sobre o infinito”; já Vargas Llosa o chama de “maravilhosa irrealização da realidade”, que no entanto parece mais real que a vida.

Por isso, não deixa de ser adequado, digam o que quiserem os críticos do resultado final, que uma obra com essas características tenha sua melhor tradução atual na altissonância e na teatralidade mais assumida dos recitativos de um musical[3]:

“Uma idêntica teatralidade transforma a batalha de Waterloo de Os Miseráveis num espetáculo sublime em que os vencedores e vencidos interpretam soberbamente os papéis atribuídos a eles por um Ser Supremo a quem o Imperador dos Frances começava a estorvar (…) Deus decidira o resultado do combate de antemão. Pois bem, se o fim da batalha já está escrito antes do conflito e das cargas e assaltos, do tiroteio ensurdecedor e do chiado dos sabres, o que resta a esses combatentes incapazes de mudar o rumo daquela partida de xadrez com movimentos inflexivelmente programados da qual são peões obedientes? Restam o gesto, a destreza formal, a retórica, a elegância e a beleza com que interpretam seus papéis, enriquecendo-o com petulâncias românticas como Ney ao pedir em altos brados que todos os projéteis da artilharia inglesa fossem se alojar no seu ventre ou o enfeando como o general Blücher ao ordenar a matança dos prisioneiros. Na maravilhosa irrealização da realidade, ou ficcionalização da história, que é o capítulo sobre Waterloo… o divino estenógrafo pode afirmar por isso, com toda legitimidade, que o verdadeiro vencedor de Waterloo foi Cambronne.

   Na realidade fictícia, as revoluções não são uma imperfeita, caótica, convulsa, ambígua criação coletiva de consequências imprevisíveis, mas um fenômeno inelutável e impessoal que vai além do social, tanto quanto um terremoto ou um ciclone (…) Para entender o que é uma revolução, segundo o narrador de Os Miseráveis, é preciso trocar-lhe o nome—e nesse mundo de identidades volúveis, trocar de nome significa trocar de papel ou função—e chamá-la de Progresso. E para se entender o que significa essa palavra também é preciso trocar seu nome por Amanhã, ou seja, o futuro…. Há um Destino, traçado desde que os seres humanos existem, que dotou a sociedade de um dinamismo que, ainda que tenha que passar por provas agônicas, sistematicamente a impulsiona rumo a formas superiores de vida material, cultural e moral…”

Afinal, já disse outro autor oceânico que somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/02/21/leituras-em-espelho-dois-jonas-e-suas-formidaveis-baleias-vargas-llosa-e-os-miseraveis-paulo-ronai-e-a-comedia-humana/

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NOTAS

[1] Todavia, é uma leitura de toda a vida, e de certa forma uma reminiscência da adolescência. O ensaio começa assim: “Naquele ano de 1950, o inverno, no internato do Colégio Militar Leoncio Prado, de Lima, era úmido e cinza, a rotina embrutecedora e a vida um tanto infeliz. As aventuras de Jean Valjean, a obstinação de sabujo de Javert, a simpatia de Gavroche e o heroísmo de Enjolras apagavam a hostilidade do mundo e transformavam a depressão em entusiasmo nas horas de leitura, roubadas às aulas e à instrução militar, que me transportavam para um universo de extremos incandescentes na desgraça, no amor, na coragem, na alegria, na vileza. A revolução, a santidade, o sacrifício, o cárcere, o crime, homens super-homens, virgens ou putas, santas ou perversas, uma humanidade atenta ao gesto, à eufonia, à metáfora. Fugir para lá era um grande refúgio: a vida esplendia da ficção me dava forças para suportar a vida verdadeira. Mas a riqueza da literatura também fazia a realidade real ficar mais pobre (…) Se estamos há tantos séculos escrevendo e lendo ficções, algum motivo deve haver. Eu sei que naquele inverno de 1950, com uniforme, garoa e neblina, no alto do escarpado de La Perla, graças a Os Miseráveis a vida foi muito menos miserável para mim.”

Utilizo aqui, como nas demais citações, a tradução de Paulina Wacht & Ari Roitman (Ed. Alfaguara)

[2] Deve-se lamentar a falta de cortesia dos tradutores de A Tentação do Impossível para com as traduções que aclimataram o texto de Hugo no Brasil. Eles perderam uma ótima oportunidade para defender o uso de “monstros pontilhosos”, ao invés de “monstros melindrosos”, como aparece nas duas traduções que li e que acredito serem as mais prestigiosas: a de Carlos dos Santos (publicada pelo Círculo do Livro) e a de Frederico Ozanam Pessoa de Barros (esta eu li, numa curiosa sincronicidade, justamente no ano da publicação de La Tentación de lo Imposible, 2004), atualmente editada pela CosacNaify. O termo “melindrosos” talvez numa primeira sacada parece mais restrito a modulações psicológicas, enquanto “pontilhosos” já nos remete a uma convivência de sombra e luz, mais estética. Mesmo assim, “melindrosos” é o termo com que o leitor brasileiro do romance convive, daí considerar o descaso dos tradutores digno de nota.

[3] O que estou colocando como princípio que não verificarei: não suporto musicais, com as exceções de praxe, e para mim as piores horas ligadas ao cinema de que me lembro são as que perdi com os horrorosos Mary Poppins e My fair lady.

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26/10/2013

O HERÓI DISCRETO: um Vargas Llosa “eficiente, tímido e funcional”. Ou seja, muito pouco.

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“Você não sabe em que país vivemos, compadre?”

“Desde que fui readmitido  na corporação, já estive na serra,na selva, em Lima. Rodando pelo Peru inteiro, pode-se dizer…”

(trechos de O herói discreto)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada no Caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, em 26 de outubro de 2013: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/10/1362157-critica-vargas-llosa-reaviva-personagens-em-narrativa-com-tempero-dramalhonico.shtml)

A decepção com o fraco O sonho do celta (2010), seu romance anterior, fez crescer a expectativa do retorno ficcional de Mario Vargas Llosa ao país natal. Afinal, excetuando-se A guerra do fim do mundo (1981), o Peru foi o cenário das suas maiores realizações no gênero, cujos derradeiros lampejos foram Lituma nos Andes (1993) e Cadernos de Don Rigoberto (1997), cujos protagonistas, aliás, marcam presença em O herói discreto [ “El héroe discreto”, que comento na tradução de Paulina Wacht & Ari Roitman].

Duas histórias se alternam (e depois se entrelaçam): em Piura—para onde volta o veterano Lituma em suas errâncias na função policial (e suas aventuras, ao longo de vários livros, nos proporcionaram uma das mais notáveis Macronarrativas contemporâneas, uma comédia humana peruana)—a tentativa de extorsão de um modesto comerciante, dono de uma frota de veículos, Felícito Yanaqué; em Lima, o casamento entre um empresário de peso, Ismael Carrera, e uma empregada doméstica, com a conivência de seu gerente e amigo, Don Rigoberto, o qual, prestes a se aposentar, é ameaçado pelos herdeiros “legítimos” e lesados (além disso, ele tem que lidar com as aparições de um misterioso e mefistofélico senhor na vida do filho adolescente, Fonchito: “E agora acontece que aquele tal que não existe se meteu com a nossa família, o que me diz disso?”)).

O título do livro poderia ser aplicado aos dois, Rigoberto ou Felícito: cada um a seu modo “discreto” enfrenta forças obscuras e ameaças; porém, é o comerciante de Piura que se torna famoso em seu modesto heroísmo de cidadão comum e decente, ao não compactuar com a exigência de pagamento de uma quantia mensal aos que lhe oferecem “proteção”. A amante, por exemplo, descobre que “sob aquele aspecto de homezinho insignificante, tão magrinho, tão pequeno, um caráter robusto e uma vontade à prova de balas”.

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O lado mais interessante das duas narrativas, afora os confrontos íntimos entre os personagens recorrentes de outras obras e as mudanças na fisionomia dos espaços sociais em que os conhecemos, é a incorporação de uma das modalidades mais insidiosas da criminalidade contemporânea: aquela que envolve os membros da própria família, sinalizando a ruptura de valores e gerações.

O tempero “dramalhônico”, decalcado da paixão hispânica pelas telenovelas exageradas, assim como acontecia no maravilhoso Tia Júlia e o escrevinhador (1977) faz com que um bom naco do livro seja bastante divertido.

Contudo, a diluição implacável que vem corroendo a obra llosiana aqui se faz aguda e seu retorno à pátria não consegue revitalizá-la. O terço final, continuando a analogia anterior, lembra o ritmo amorfo das nossas telenovelas atuais. Pior ainda, a outrora multifacetada e polifônica visão do autor de Conversa no Catedral (1969) se resolve agora num elogio tão raso do que outrora chamávamos valores pequeno-burgueses (com os seus desagradáveis componentes de conformismo e tacanhice) que chega a ser chocante. De fato, o simpático sargento Lituma (tão subaproveitado na história) acaba apontando o lado mais deprimente desses valores, ao ficar estupefato com o tratamento dado pelo tão correto don Felícito ao filho (que ele sempre desconfiou não ser realmente dele): “Nunca imaginei que alguém pudesse dizer essas barbaridades que o senhor disse ao seu filho lá na prisão. Fiquei com o sangue gelado, juro.” Recebendo a seguinte resposta (como se o fato de Miguel não ser do seu sangue justificasse tudo): Não é meu filho. Se o autor peruano queria fazer o elogio do “cidadão comum decente” não podia ter escolhido pior personagem. Ademais, a trama que envolve Fonchito (e as histórias que ele e sua família trocam entre si), sobre a qual eu depositava tanta expectativa, é frustrante (estamos longe das delícias de Elogio da Madrasta & e dos Cadernos de don Rigoberto).

Num ensaio de A verdade das mentiras (1990), LLosa criticou acerbamente Graham Greene por se resignar a ser um “escritor eficiente, tímido e funcional”. Se avaliado pelos seus últimos cinco romances– A festa do bode, O paraíso na outra esquina, Travessuras da menina má, O sonho do celta e este O herói discreto (com a ressalva de que O paraíso na outra esquina, de 2003, ainda é o mais vigoroso entre eles), a caracterização cairia como uma luva para o nobel 2010.

TRECHOS SELECIONADOS

“E então o transportista, com lágrimas nos olhos, começou a falar do pai para uma Mabel assustada. Nunca, em todos os anos em que estavam juntos, ela o tinha ouvido se referir ao pai dessa maneira tão emotiva (…)  Não era um homem que manifestasse afeto dando abraços e beijos no filho, nem dizendo essas coisas carinhosas que os pais dizem aos filhos. Era severo, duro, e até agia com mão de ferro quando se enfurecia. Mas demonstrou que o amava dando-lhe estudos, roupa, alimentação, por mais que ele mesmo não tivesse o que vestir ou o que botar na boca (…) Era graças a esse arrendatário analfabeto que a Transportadora Narihualá existia. Seu pai era pobre mas era grande pela retidão da sua alma, porque nunca fez mal a ninguém, não transgrediu as leis, nem guardou rancor à mulher que o abandonou deixando um garotinho recém-nascido para criar…”

“Quando o dr. Arnillas saiu, Lucrecia começou a chorar , desconsolada. Rigoberto  tentava em vão acalmá-la. Ela tremia com os soluços e escorriam lágrimas por suas bochechas. Coitadinha, coitadinha, sussurrava, quase se sufocando. Eles a mataram, foram esses canalhas, quem mais poderia ser. Ou mandaram sequestrá-la para roubar tudo o que Ismael deixou.  Justiniana foi buscar um copo d´água com umas gotinhas de elixir paregórico que, finalmente, a tranquilizaram. Permaneceu na sala, quieta e triste. Rigoberto ficou abalado ao ver a sua mulher tão abatida. Lucrecia tinha razão. Era bem possível que os gêmeos estivessem por trás dessa história; eles eram os mais prejudicados e deviam estar furiosos com a ideia de que toda a herança podia escapar das suas mãos. Meus Deus, que histórias surgiam na vida cotidiana; não eram obras-primas, estavam mais perto das novelonas venezuelanas, brasileiras, colombianas e mexicanas que de Cervantes e Tolstoi, sem dúvida. Mas não tão distantes de Alexandre Dumas, Émile Zola, Dickens ou Pérez Galdós.”

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25/10/2013

O(s) Peru(s) de Lituma (Vargas Llosa- Apetite pela totalidade IV)

 

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A literatura não é uma ciência lógica, por isso a figura de Mario Vargas Llosa propõe essa estranha e desconfortável equação: uma personalidade pública que jamais conseguiria meu voto, quanto mais minha admiração, a julgar pela sua plataforma política, afeita à untuosidade do neoliberalismo, e um escritor absolutamente admirável.

O  mais recente romance desse dr. Jekyll & mr. Hyde da América Latina, Lituma nos Andes, reaproveita um dos inconquistáveis, o grupo de amigos cujas conversas eram um dos múltiplos planos narrativos do maravilhoso A Casa Verde (1965), ambientado no litoral e na selva. Agora, o cabo Lituma (também presente em Quem matou Palomino Molero?, de 1986) está em Naccos, lugarejo que continua a existir devido à difícil construção de uma estrada. Esses ermos, essas alturas andinas, já haviam derrotado o protagonista de História de Mayta (1984), o último projeto ambicioso de Llosa antes de Lituma, e que aliás causou polêmica e reações negativas, mas mantém intacta sua força dez anos depois.

Lituma e Tomasito, seu auxiliar, averiguam o sumiço de três sujeitos que poderiam ter sido executados por guerrilheiros do Sendero Luminoso (os “terrucos”) ou, como vai ficando mais provável (ainda que implausível), sacrificados aos “apus”, antigos espíritos dos cerros, numa conspiração orquestrada pelo depravado e sinistro casal de cantineiros, Dionísio e Adriana.

Aprofundando ainda mais o painel romanesco que vem compondo do Peru (com dimensão universal) desde Batismo de fogo(1962), Llosa mostra ironicamente como Lituma, “autoridade oficial” em Naccos, é um arremedo da lei e da ordem em meio ao caos, andino e cósmico: uma paisagem avassaladora, que pode desmoronar a todo instante (o que de fato ocorre, numa das melhores passagens do romance); uma luta política que vitima até incautos turistas franceses; uma ritualização da violência e da animalidade, que remonta aos mais primevos costumes humanos. Não à toa, Dionísio tem o nome do deus grego da embriaguez e do desregramento cujas festas e carnavais foram a origem da tragédia.

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Em Lituma nos Andes tudo é degradado, há uma paródia do mítico e do aventuresco: até o relato (um dos muitos que compõem o romance) da ação heróica do primeiro marido de Adriana, Timóteo, que liberou o povoado dela de um “pishtaco” (uma modalidade andina de vampiro) e que poderia lembrar as façanhas de um Teseu ou Perseu, fica deformado pela escatalogia, pois ele marca seu caminho no antro do monstrengo não com um fio de ariadne ou qualquer outro dos nobres recursos mitológicos, mas com seus próprios excrementos.

Está em discussão, na verdade, utilizando o avassalador isolamento andino, é a derrocada da frágil razão ocidental diante do irracionalismo e de uma crescente barbárie, concomitantemente à falência das grandes ideologias universais. Tudo é equacionado pela violência, tão opressiva e atordoante no livro quanto a paisagem. Llosa não nos poupa nem do canibalismo, passando por um terrificante massacre, efetuado pelos “terrucos” de vicunhas, os adoráveis e espertos (e muito malfadados) bichinhos que servem para alguns imbecis espécimes da raça humana ostentarem uma sanguinolenta elegância, e por uma frenética dança na qual o momento triunfal consiste em arrancar cabeças de patos vivos.

As conversas constituem boa parte da narrativa e evidenciam, claro, a marcante influência de Faulkner, mestre no recurso. Pode-se até argumentar que o grande escritor peruano está repisando esse e outros artifícios narrativos que fizeram de Conversa na Catedral (1969) um dos grandes romances do século. Não importa: Lituma nos Andes vai crescendo na leitura e na memória  deixando no ar a dúvida se é a porção Jekyll ou a porção Hyde que engendra esses romances perturbadores e poderosos.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em treze de setembro de 1994)

 VER NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/10/25/o-peru-de-pantaleon-pantoja-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-ii/

https://armonte.wordpress.com/2013/10/25/varios-romances-num-so-conversa-na-catedral-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-i/

https://armonte.wordpress.com/2012/06/09/dramalhao-e-vocacao-literaria-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-iii/

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A FESTA DO BODE (ou como a obra de Vargas Llosa foi tomando a feição do best seller)

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em três de outubro de 2000)

Sem contar seus magistrais romances de outras décadas (muitos dos quais reeditados pela Companhia das Letras em novas versões), Mario Vargas Llosa, o maior ficcionista vivo da América Latina, nesses anos 90 que estão por terminar publicou dois livros magníficos: Lituma nos Andes & Os Cadernos de Don Rigoberto.

Longe da atividade política, da qual participou numa espécie de surto neoliberal constrangedor, ele ousa agora, em A festa do bode [lançado pela ARX, ex-Mandarim, em tradução do Wladir Dupont][1], insistir num filão que parecia já esgotado: o retrato de um ditador latino-americano, no caso o Generalíssimo Trujillo, o Bode, o qual tiranizou durante trinta anos a República Dominicana até ser assassinado em 1961.

Llosa narra o último dia de vida de Trujillo. Além disso, variando o foco narrativo, narra a vida dos seus assassinos, a maioria dos quais acabou sendo torturada durante meses e depois executada em meio ao processo de transição da ditadura trujillista para a “democracia” (ou algo remotamente parecido), trabalho delicado de ourivesaria realizado por Joaquim Balanguer, que de presidente-fantoche de Trujillo passa a presidente de fato.

Para costurar a estrutura narrativa, conta-se a volta para a República Dominicana, trinta e cinco anos depois, de Urania, a filha de um ex-colaborador de Trujillo, o senador Cabral, que no momento do assassinato estava “em desgraça” dentro do Regime. Urania odeia o pai porque ele a usou como instrumento para se reabilitar com o Bode: como o “Pai da Nação”, mesmo aos 70 anos, gosta de deflorar mocinhas, Cabral se deixa convencer a enviar a filha de 14 anos para ele, duas semanas antes da sua execução.

A Festa do Bode é bem-vindo numa época em que se começa a esquecer a horrível desmoralização social que as ditaduras militares trouxeram para a América Latina, e da qual mal se recupera; numa época em alguns já sentem “pena” de Pinochet, como se ele fosse um velhinho comum. O que passou, passou? Não. Nunca. Jamais. Porque não devia ter acontecido.

Em compensação, o livro deixa a desejar nos seus procedimentos narrativos: Llosa sempre se destacou no “chorus line” dos romancistas latino-americanos que retrataram ditaduras por sua genial capacidade de manipular o tempo na narrativa, de forma a justapor várias situações cronológicas diferentes num mesmo entrecho. Esse virtuosismo se empobrece em A Festa do Bode. Há vários focos narrativos, porém eles não constroem uma visão prismática dos fatos (como os romances anteriores, extremamente complexos). Quando um personagem dá lugar a outro, apenas reitera os mesmos acontecimentos, de forma diferente. Quando se pensa na riqueza que os múltiplos focos e versões davam a livros como A cidade e os cachorros, A casa verde, Conversa na Catedral, Pantaléon e as visitadoras, A guerra do fim do mundo ou Lituma nos Andes…ou então na impactante maneira como Llosa fingia, em História de Mayta, seguir os procedimentos do romance-reportagem, do chamado “jornalismo literário”, para depois informar (ao próprio personagem-título) que inventara e distorcera deliberadamente várias informações e detalhes biográficos, subvertendo a pretensa objetividade jornalística…

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Nem por isso, o novo romance deixa de ter momentos poderosos, entre eles o capítulo que mostra Pedro Livio, um dos executores de Trujillo, no hospital ao qual foi levado em função de ferimentos no tiroteio (numa patetada absurda, foi um de seus companheiros que o feriu), sendo torturado pelo chefe da inteligência de Trujillo, Johnny Abbes, numa situação claustrofóbica, sem saber se o golpe foi bem sucedido ou não.

Também, por mais que já se tenha lido descrições de tortura, as do livro são, ainda assim, impressionantes (e pensar que há uma parte da população nostálgica com relação à truculência militar). E há a figura ambígua do Presidente Balanguer, a mostrar como as chamadas “transições para a democracia” foram feitas a um custo terrificante. Mais que tudo, porém, o romance é um grande libelo contra os EUA e a sua interferência que, segundo seus interesses do momento, faz com que apóie ou dissolva regimes de exceção.

E a prova maior que a habilidade de Vargas Llosa não se esgotou, mesmo que ele pareça convicto de que o leitor atual não tem mais paciência ou concentração para complexidades narrativas, está no fato de que nem os mais consagrados best sellers conseguem o ritmo veloz e o suspense que ele imprimiu ao seu romance. O autor deste artigo não gostaria que um dos maiores escritores do mundo competisse com Michael Crichton, Tom Clancy, Jeffrey Archer ou similares. Se, todavia, for esse o rumo dos ventos na carreira do autor de A Festa do Bode, com certeza superará a todos eles.


[1] Título original: La fiesta del chivo

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O Peru de Pantaleón Pantoja (Vargas Llosa- Apetite pela totalidade-II)

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em sete de janeiro de 1997)

O Peru anda em destaque por causa do ressurgimento inesperado da guerrilha Tupac Amaru no episódio da embaixada do Japão. Na década de 70, fizeram muito sucesso no Brasil os livros do peruano Mario Vargas Llosa. Alguns poderão dizer que devido ao fato de estarmos em plena ditadura o leitor brasileiro estava ávido por radiografias de países em que situações similares (ou piores). Ainda mais porque praticamente não tivemos obras literárias comparáveis às dos hispano-americanos nesse período, com as exceções de praxe.

De todo modo, Vargas Llosa continuou a produzir grandes romances após os anos 70 (basta lembrar de A guerra do fim do mundo, História de Mayta, O Falador,  Elogio da Madrasta, Lituma nos Andes) e pense-se o que se quiser de seus posicionamentos políticos, ainda hoje é um dos maiores ficcionistas do mundo. Por isso, é interessante acompanhar a iniciativa da Companhia das Letras de oferecer ao leitor dos anos 90 novas versões dos seus livros de Llosa lançados por aqui na época da ditadura, começando pelo seu primeiro romance cômico, o implacável Pantaleón e as visitadoras, agora numa versão da mais-que-competente Heloísa Jahn (a anterior, de Remy Gorga, Filho, publicada pela Nova Fronteira, continua em circulação). Assim, podemos verificar se literariamente tais livros sobreviveram ao clima ideológico da época, ou ficaram datados irremediavelmente.

No caso de Pantaleón, cuja publicação original se deu em 1973, o leitor fique tranqüilo. É ainda um delicioso exercício de ironia. Nele, mostra-se como o exército peruano resolve criar um serviço de prostitutas, as “visitadoras”, para os soldados em ativa na selva. É uma necessidade imperiosa: os guardiões da pátria acabam passando em armas as moças locais e até as senhoras casadas, estuprando-as e desgraçando-as.

O escolhido para ser o encarregado das visitadoras é o honesto e competente capitão Pantaleón Pantoja, que tem de se mudar com a família par a selva, contratar as prestadoras desse serviço patriótico, organizar os horários e escalas de visitação, numa missão extremamente detalhada em relatórios burocráticos, mas que não lhe serve em nada em termos de apresentação social, pois tem de tomar a aparência de um cafetão e freqüentar os antros de Iquitos, a cidadezinha amazônica onde transcorre a ação do livro.

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E como levar a sério relatórios conscienciosos nos quais as relatadas têm alcunhas como Peitinhos, Chuchupe ou Peludinha? Paralelamente, cresce a figura do místico exaltado, irmão Francismo, e sua pregação da martirização, como contraponto da carreira do capitão proxeneta, martirizado pelo cumprimento do dever:

“É verdade que o senhor passava pessoalmente pelas armas as candidatas ao Serviço de Visitadoras?”

“Fazia parte do exame de qualificação, meu general. Para verificar aptidões. Eu não podia me apoiar no testemunho dos meus colaboradores. Havia constatado a existência de favoritismos, subornos.”

“Não sei como o senhor não acabou tuberculoso. Ainda não cheguei a uma conclusão se o senhor é um bobalhão angelical ou um cínico de primeira grandeza.”

Talvez o grande achado do livro seja a figura do capitão Pantaleón Pantoja, com sua impecável folha de serviço e a disposição de fazer tudo do modo mais severo e organizado possível. Pois a degradação social e moral dele e de sua família (a qual sequer tem o direito de morar na Vila Militar), por conta do serviço de atendimento que ele tem de fornecer ao exército, permite a Llosa mostrar como uma instituição pode queimar o que tem de melhor, de mais digno e mais sério, para apaziguar, reprimir e submeter os aspectos rasteiros e baixos do ser humano, e que vêm à tona de uma maneira ou outra.

Não pense o leitor que vai se deparar com algo tipo Dona Anja e quejandos, onde uma pálida sátira convive com apelações duvidosas. Llosa é um mestre da construção romanesca (e estava no auge da maestria, é só lembrar que Pantaleón e as visitadoras veio logo após o formidável Conversa na Catedral) e mostra os desdobramentos da decisão do exército em criar o serviço urgente de visitação por meio dos mais variados recursos (diálogos simultâneos, cartas, memorandos, relatórios). E, permeando tudo, o humor corrosivo (que até então não era praxe na sua carreira), mas suficientemente humanista para fazer desse capitão, desse bobalhão angelical, ridículo e patético (se não for um cínico de primeira grandeza, embora pareça mais cínica uma instituição que o usa e destrói, uma instituição que cria, como contrapartida do seu arbítrio, místicos e guerrilheiros exaltados, que às vezes podem surpreender até o neoliberalismo triunfante dos nossos dias) um personagem de primeira grandeza.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/10/25/varios-romances-num-so-conversa-na-catedral-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-i/

https://armonte.wordpress.com/2012/06/09/dramalhao-e-vocacao-literaria-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-iii/

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Vários romances num só: CONVERSA NA CATEDRAL (Vargas Llosa – Apetite pela totalidade I)

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O MEIO SÉCULO DA CARREIRA DE VARGAS LLOSA E SEU PONTO ALTO

( resenha publicada originalmente em “A Tribuna” de Santos, em 11 de agosto de 2009)

Este ano, o peruano Mario Vargas Llosa (aos 73 anos) comemora meio século de carreira (iniciada com a publicação da coletânea Os Chefes; o primeiro romance apareceria em 1962: A cidade e os cachorros), ocupando o topo entre os romancistas hispano-americanos. Não há quem se lhe compare em virtuosismo, recursos técnicos e amplidão. Mesmo que seus últimos romances (A festa do bode; Travessuras da menina má) não estejam entre suas maiores realizações, são indiscutivelmente hábeis e envolventes e O paraíso na outra esquina ainda guarda o sopro do melhor Llosa.

A Alfaguara, felizmente, vem publicando novas traduções de seus livros, inclusive do formidável A guerra do fim do mundo (1981), e a ARX acaba de lançar nova edição da versão de Wladir Dupont (é a segunda no país, a primeira foi realizada por Olga Savary e publicada pela Francisco Alves e depois pelo Círculo do Livro) para sua obra máxima, Conversa na Catedral (1969). A capa é um espanto de feiúra e erro: apresenta dois jovens conversando numa mesa, como se o romance tratasse de um bate-papo entre mauricinhos. Mas ela não é tão esdrúxula quanto a orelha da lavra do próprio tradutor (o qual cometeu vários deslizes e erros de interpretação ao longo do texto; por exemplo, na pág. 268, Amália está admirando o dormitório da amante de Cayo Bermúdez, chefe de segurança da ditadura do General Odría nos anos 50, Hortênsia, e não de sua antiga patroa, Dona Zoila, como ali aparece; o erro é endossado poucas linhas depois): ele simplesmente resume de forma errônea a história do livro que traduziu! É difícil, certamente, verter um texto para outra língua e ao mesmo tempo prestar atenção no seu enredo.

Disparates à parte, Conversa na Catedral é muito complexo: Llosa usou e abusou dos seus recursos como narrador, fazendo com que o seu painel da corrupção e desmoralização geral do período odriísta seja acompanhado por meio de diálogos intercalados (misturando várias situações), solilóquios, discursos indiretos livres (quando se confundem o discurso do narrador e do personagem) diálogos estratégicos. O principal deles, que dá título ao livro, é na espelunca Catedral, após o reencontro inesperado entre o protagonista, Santiago Zavala e o antigo chofer da sua família (o pai dele, don Fermín, ocupava uma posição importante no regime de Odría, até cair em desgraça), Ambrósio (amante da já referida Amália e que compartilha com Fermín um segredo estrategicamente enovelado pela narrativa). Quando se reencontram, os dois estão “ferrados” na vida: Zavalita  afundou-se numa medíocre carreira de jornalista e Ambrósio, que chegou a ser chofer e capanga de Cayo Bermúdez, mata cachorros a pauladas no canil municipal. Seu bate-papo agiganta-se até se tornar um afresco do Peru (), envolvendo uma gama balzaquiana de personagens.

Entre eles, destaca-se Cayo Bermúdez, o homem forte do regime, com sua cara inexpressiva, sua figura apagada e miúda, e sua capacidade de corromper e vigiar a todos. Vargas Llosa já contou como surgiu essa figura fascinante, inspirada na impressão que teve numa audiência, quando estudante, de Alejandro Esparza Zañartu: “era o homem mais odiado do regime… conseguiu um eficiente sistema de delações e informantes que acabou permitindo que a ditadura durasse oito anos —provavelmente não duraria tanto sem ele. Eu me impressionou muito quando o vi: era um homem insignificante, que mal sabia se expressar e que transmitia a impressão de uma grande mediocridade. E pensar que esse homem concentrava semelhante poder!” A banalidade do Mal.

Quando Vargas Llosa ganhará o Nobel?

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nota- Ele ganhou no ano seguinte (2010)

VER TAMBÉM NO BLOG:

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ANOTAÇÕES DE LEITURA- agosto, 2009

“Eu quisera que meus livros fossem lidos como eu li os romances de que gosto. Os romances que me fascinaram, mais do que entrar pela inteligência, através do puro intelecto, da pura razão, me enfeitiçaram literalmente, quer dizer, se converteram em histórias que de certa forma destruíram toda capacidade crítica em mim. E me faziam perguntar: O que vai acontecer? O que vai acontecer? Este é o tipo de romance que eu gosto de ler e este é o tipo de romance que eu gostaria de escrever. Então para mim é muito importante que todo elemento intelectual, que é inevitável que esteja presente em um romance, de alguma forma esteja dissolvido fundamentalmente em ações, em episódios que deveriam seduzir o leitor não por suas idéias, mas por sua cor, por seu sentimento, suas emoções, suas paixões, por sua novidade, por seu caráter insólito, pelo suspense e o mistério que possa emanar deles. Para mim, a técnica do romance é fundamentalmente conseguir isso, conseguir diminuir e, se possível, abolir a distância entre a história e o leitor. Nesse sentido eu creio que sou um escritor do século XIX. Para mim o romance continua sendo o romance de aventura, que se lê desse modo especial, tomado pela história”.

Essas palavras  podem ser encontradas no livro de Ricardo A. Setti, Conversas com Vargas Llosa (Brasiliense, 1986). Embora haja uma verdade profunda nelas, creio que também é possível declarar que Llosa é um típico representante do romance no sentido modernista: enciclopédico, labiríntico e total, no sentido joyceano, e no caso dele muito especificamente, no sentido faulkneriano.

Não foram poucas as vezes em que ele se declarou um admirador de Faulkner, tendo usado com muito proveito suas técnicas, inclusive a técnica de fazer a história surgir de conversas, de colóquios nos quais muitas vezes os fatos se refratam em diversas versões, que se opõem e se complementam. Três autores, aliás, sempre apareceram muito nas entrevistas e ensaios de Vargas Llosa: duas admirações constantes, Faulkner e Flaubert, e uma relação de amor e ódio: Sartre (aliás, ele publicou um livro inteiro para se purgar do fantasma sartreano, Contra vento e maré), com o qual acabou sendo injusto, tachando seus romances de muito ruins, o que está longe de ser a verdade.

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Um dos aspectos mais relevantes de CONVERSA NA CATEDRAL tem uma feição tipicamente sartreana: além das conversas (de Zavalita com Ambrosio, que é matriz do romance; com o jornalista desiludido, literato falhado, Carlitos; também tem um diálogo entre Ambrosio e Don Fermín, entre Ambrosio e Queta), dos diálogos interpostos, da discreta narrativa em 3ª. pessoa, dos discursos indiretos livres, enfim, de toda a pletora de recursos explorados no romance, um procedimento narrativo (que Llosa praticará com muito proveito inclusive no recente O paraíso na outra esquina) é o do solilóquio que Zavalita mantém consigo mesmo e que espelha sua perplexidade, sua frustração e sua má consciência (que origina situações em que ele age de má fé, no sentido sartreano do termo, de descompasso entre sua ação e sua consciência). Solilóquio + dúvidas= Hamlet.

Entre outras, a leitura de CONVERSA NA CATEDRAL me fez sonhar (um dos muitos projetos que já acalentei) em perseguir num estudo o arquétipo de Hamlet na ficção da modernidade, encarnado especialmente em intelectuais e artistas. O próprio Mathieu de Os caminhos da liberdade (a trilogia de Sartre formada por A idade da razão, Sursis & Com a morte na alma, que eu acho sensacional, malgré o que Llosa possa dizer contra seu antigo mestre),  e também os heróis e heroínas de Os mandarins (Simone de Beauvoir), Sem olhos em Gaza (Huxley), O jogo da amarelinha (Cortazar), O carnê dourado (Doris Lessing), O lobo da estepe (Hesse), só para ficar em alguns poucos exemplos notáveis.

Mas voltemos ao nosso amigo Zavalita, que começa a participar nem sabe bem por que nas reuniões clandestinas do Partido Comunista peruano (ainda que como “simpatizante”) quando se torna amigo de Aída e  Jacobo (o caso é que ambos são apaixonados por Aída e Jacobo utiliza as reuniões clandestinas para separar Aída e Zavalita e se aproximar dela).

Vejamos algumas passagens: “Tinha sido nesse segundo ano [na universidade San Marcos], Zavalita, ao ver que não bastava aprender marxismo, que também fazia falta acreditar? Provavelmente o tinha fodido a falta de fé, Zavalita. Falta de fé para crer em Deus, menino ? Para crer em qualquer coisa, Ambrosio… O pior era ter dúvidas, Ambrosio, e o maravilhoso poder fechar os olhos e dizer Deus existe, ou Deus não existe, e acreditar… Então a vida se organizaria sozinha e a gente já não se sentiria vazio, Ambrosio.” “… e isso o preocupava tanto, Zavalita? dizia Aída. E Jacobo, se de todas as maneiras ele tinha que começar acreditando em algo era preferível crer que Deus não existe a crer que existe. Santiago também o preferia, Aída, ele queria se convencer que Politzer tinha razão, Jacobo. O que o angustiava era ter dúvidas, Aída, não poder estar seguro, Jacobo… As dúvidas eram fatais, dizia Aída, paralisam-no e você não pode fazer nada, e Jacobo: passar a vida esmiuçando será verdade? torturando-se será mentira? em vez de agir… Para agir, era preciso acreditar em algo, dizia Aída…” “Sempre mentindo, a vida toda fingindo… No colégio, em casa, no bairro, no Círculo, na Facção, em La Crónica. Toda a vida fazendo coisas em que não acreditava, toda a vida dissimulando… E toda a vida querendo acreditar em algo. E toda a vida mentira, não acreditando.” “Tinha se dedicado furiosamente a ler, a trabalhar no Círculo, a acreditar no marxismo, a emagrecer.” “Eu já invejava as pessoas que acreditavam cegamente em alguma coisa, Carlitos” “E se você tivesse se inscrito naquele dia, Zavalita, pensa. A militância o teria arrastado, comprometido cada vez mais, teria dissipado as dúvidas e em alguns meses ou alguns anos teria se tornado um homem de fé, um otimista, um obscuro e puro herói a mais? Teria vivido mal, Zavalita, como Jacobino e Aída, pensa, entrado e saído da cadeia algumas vezes, sendo admitido e despedido de sórdidos empregos e, em vez de editoriais em La Crónica contra os cachorros raivosos, escreveria nas páginas mal impressas de Unidad, quando tivesse dinheiro e não fosse impedido pela polícia, pensa, sobre os avanços científicos da pátria do socialismo e a vitória no sindicato dos  panificadores de Lurín… ou teria sido mais generoso e entrado para um grupo insurrecional e sonhado e atuado e fracassado nas guerrilhas e estaria na prisão, como Héctor, pensa, ou morto e decomposto na selva, como o cholo Martinez, pensa, e feito viagens semiclandestinas a Congressos da Juventude, pensa, Moscou, levando saudações fraternais a Encontros de Jornalistas, pensa, Budapeste, ou recebido  treinamento militar, pensa, Havana ou Pequim. Você teria se formado em Direito, teria caso, teria sido assessor de um sindicato, deputado, mais desgraçado, a mesma coisa ou mais feliz? Pensa: ai, Zavalita.” (04-05 de agosto)

É incrível como nunca acertam nas capas: tenho uma edição da Francisco Alves, uma do Círculo do Livro e agora esta pela ARX, e todas são feíssimas e pouco inspiradas (é só ver a foto acima). A melhor ainda é a da edição anterior (de alguns anos atrás) da mesma tradução de Vladir Dupont.

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Creio que se trata da obra-prima de Vargas Llosa, apesar da quantidade de títulos impressionantes. Basta lembrar de A guerra do fim do mundo, Lituma nos Andes, A casa verde, Tia Júlia e o escrevinhador, A cidade e os cachorros, Cadernos de Don Rigoberto,  livros que ficam pouco atrás de CONVERSA NA CATEDRAL; tem também os deliciosos Pantaléon e as visitadoras, Elogio da Madrasta, O paraíso na outra esquina, Quem matou Palomino Molero? , e até A festa do bode e Travessuras da menina má têm seu interesse (apesar de mais fracos). E como esquecer dos surpreendentes e inusitados História de MaytaO falador?

     Tenho lido muito durante esses anos todos a ficção de Vargas Llosa (que também é admirável ensaísta) e creio que posso afirmar: CONVERSA NA CATEDRAL é um romance total, um daqueles livros absolutos,  uma visão caleidoscópica e assombrosa da ditadura do general Odría, que deu o golpe no Peru no finalzinho dos anos 1940 e impôs um regime ditatorial por boa parte da década de 50. E Vargas Llosa o publicou em 1969 (portanto, trata-se de uma obra quarentona), quando tinha apenas 33 anos.

É claro que já tinha dado uma ideia mais do que precisa da dimensão do seu talento porque os seus dois primeiros romances, A cidade e os cachorros (durante anos, conhecido no Brasil, e foi assim que eu o li, como Batismo de fogo), em 1962, e A casa verde, de 1965,  eram empreendimentos ciclópicos e singulares (A casa verde ainda se desdobraria em outros devido ao personagem Lituma). Mesmo assim, há algo de incomparável no fôlego e na impressão de totalidade que nos dá o romance que estou relendo, após muitos anos (ainda que na descuidada –em vários pontos–versão de Dupont). O único caso similar das últimas décadas que eu conheço é Fado Alexandrino (1983), um dos grandes romances de António Lobo Antunes.

O título vem do reencontro entre Santiago Zavala, o Zavalita, com o antigo chofer da família, Ambrosio. Santiago vai ao canil municipal  porque homens da carrocinha pegaram seu cão, Batuque (como eles ganham uma miséria e por número de apreensões, às vezes não se furtam de roubar animais, ou mesmo de tirá-los à força dos donos, como aconteceu com a mulher de Santiago). A ironia é que ele, editorialista, vem escrevendo uma série a respeito da raiva e pedindo medidas das autoridades para conter o número de cães na capital. No canil, ele testemunha uma espantosa e bárbara execução de um cachorro (mas consegue resgatar o seu): dois funcionários enfiam-no num saco e o matam a pauladas. Um deles é Ambrosio. No começo do capítulo, saindo do serviço, Santiago (que acabou de fazer 30 anos) se pergunta “em que ponto se fodeu”, “em que ponto o Peru se fodeu”. E verá em Ambrosio um espelho, mais velho, numa escala social diferente, um outro tipo de derrota, de embotamento, de sensação de ter sido vencido pela vida. Aquela sensação de logro existencial que se abate sobre os personagens de Educação Sentimental (do autor predileto de Vargas Llosa, Flaubert, a respeito do qual ele escreveu o magistral ensaio A orgia perpétua), no final de suas trajetórias pelas aventuras da sua geração. A má consciência de Santiago Zavala como homem de imprensa, como marido, como peruano (depois conheceremos os sonhos de sua geração) já aparece logo no princípio de CONVERSA NA CATEDRAL.

E “Catedral” é o nome do boteco, uma espelunca, em que ele e Ambrosio bebem durante horas, numa conversa que permeará as quase 800 páginas (na edição ARX) do romance. Um nome significativo, uma vez que o começo da revolta de Santiago contra sua classe social e sua família foi o anti-clericalismo, a repulsa pelos padres e pelo catolicismo.

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Como eu já disse, a conversa entre Santiago e Ambrosio (em torno da qual ronda um segredo bombástico sobre o pai de Santiago, que está no cerne da trama do romance), ambivalente e exasperante, permeia o romance inteiro. Mas, como é seu hábito, e uma das marcas do seu virtuosismo técnico, Llosa faz com que duas ou várias situações fiquem sobrepostas em cada passagem da narrativa. Um exemplo: no capítulo VII da primeira parte (são quatro ao todo), Ambrosio conta a Santiago como conheceu seu pai, Trifulcio; ao mesmo tempo, vemos Trifulcio no seu longo tempo de prisão (há uma cena em que ele e seus companheiros, atirando pedras, conseguem matar uma ave de rapina e toscamente assá-la, havendo uma disputa feroz pelos pedaços; também vemos como sua força é lendária, tanto que Dom Melquíades, possivelmente o diretor da prisão, traz um dos pilares do governo Odría , Emilio Arévalo, cujo filho, Popeye, será muito amigo de Santiago e casará com sua irmã, para uma demonstração), depois a libertação (ele trabalhará para Arévalo), em diálogos que se intercalam com as diligências do homem forte do governo Odría, Cayo Bermúdez para dominar os serviços de inteligência do regime e esmagar os “subversivos”; vemo-lo primeiro com militares, depois num diálogo com o homem que o chamou para fazer parte do governo (e o qual ele está visivelmente solapando e colocando em posição subalterna) e depois com civis poderosos (entre eles, Arévalo e Don Fermín, o pai de Santiago); também vemos torturadores em ação (e um dos torturados, ficamos sabendo, é Trinidad, o companheiro de Amália, a empregada da casa dos Zavala, a quem Santiago e Popeye, como autênticos playbozinhos,  tentaram seduzir numa noite em que a família estaria ausente, causando a demissão dela; ela será o grande amor da vida de Ambrosio; parte da trajetória de Amália, a mais ligada a Trinidad, tínhamos acompanhado num capítulo anterior, contudo parecia que era mitomania de Trinidad a perseguição política e sua morte misteriosa parecia indicar mais que ele era “ruim da cabeça” do que maus-tratos nos chamados “porões da ditadura”); vemos como é o encontro entre Ambrosio e Trifulcio (em que o pai tenta roubar dinheiro do filho, ameaçando-o com uma faca), vemos como Ambrosio saiu de sua cidade natal, e tendo ajudado o jovem Cayo Bermúdez a raptar sua futura esposa (que se tornou uma virago), ir à capital pedir um emprego ao poderoso Robespierre do regime Odría, como ele se transforma no chofer de Bermúdez e como se envolve com os profissionais de repressão e tortura.

Tudo isso sem grandes necessidades de explicações e de narrativas muito longas e descritivas. Não, tudo através do intercalamento magistral de diálogos… Tudo puxado (neste capítulo) pelas reminiscências de Ambrosio com relação à sua mãe… O romance como exercício de virtuosismo e como cosmovisão…

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09/10/2013

SONHO DO CELTA, PESADELO DO LEITOR

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em  04 de outubro de 2011)

“Esta era a palavra que melhor descrevia como ele sempre se sentira, na Irlanda, na Inglaterra, na África, no Brasil, em Iquitos, no Putumayo: um banido. Durante boa parte da vida, Roger se gabou dessa condição de cidadão do mundo… alguém que não é de lugar nenhum porque é de todos os lugares. Por muito tempo pensou que esse privilégio lhe dava uma liberdade que aqueles que viviam ancorados no mesmo lugar desconheciam. Mas Tomás de Kempis tinha razão. Ele nunca sentiu que pertencia a um lugar porque a condição humana era isto: um desterro neste vale de lágrimas, um destino transitório até que, com a morte e o além, homens e mulheres voltariam para o ninho, para a sua fonte nutriz, onde viveriam por toda a eternidade”.

No ano passado, Mario Vargas Llosa ganhou o Nobel, em meio à expectativa pelo seu novo romance, O sonho do celta[El sueño del celta, em tradução de Paulina Wacht & Ari Roitman] . Afinal, tirando O paraíso na outra esquina (2002), suas últimas realizações no gênero deixaram muito a desejar.

O que vinha ficando evidente, em contrapartida a esse declínio de qualidade, era o desencanto do autor peruano com o ideário neoliberal, a confiança no mundo globalizado pós-industrial, cuja causa ele abraçara tão apaixonadamente.  Nesse sentido, a trajetória que retrata em O sonho do celta é emblemática: Roger Casement é o irlandês que, no final do século 19, vai para a África (servindo à Coroa britânica)  imbuído da ideologia em tripé que sustentou a colonização e o posterior imperialismo das potências ocidentais: civilização, cristianismo e comércio.

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No Congo, ele testemunha horrores (o domínio belga foi um dos  mais brutais da história) contra os negros, de tal monta, que o levam a redigir um relatório que o torna célebre no mundo todo (e é preciso lembrar que, à época, não havia os meios de comunicação à disposição, embora fosse já época de uma opinião pública forte). A desilusão de Casement com a empreitada colonial ficará completa quando, ao viajar pelo Putumayo, a porção peruana da Amazônia, constatar ali horrores similares e novamente a desfaçatez do homem branco. A conseqüência mais importante na vida de Sir Roger (sim, ele ganha o título honorífico) é que ele resolve cuspir no prato que comeu, ou seja, abraça a causa do nacionalismo irlandês contra a Inglaterra e procurará firmar uma aliança com os alemães, ao eclodir a Primeira Guerra, para acelerar a independência da Irlanda. Por essa razão,  é preso como traidor e condenado á forca. Para fomentar o clima de antipatia contra ele divulgam-se trechos dos seus diários onde sua “vida secreta”, como homossexual cujas experiências fundamentais foram com negros, nativos, enfim, outras raças, é exposta escandalosamente.

O sonho do celta relata a vida de Casement, já preso, a partir da espera para ver se a petição de indulto da pena de morte seria concedida. Infelizmente, Vargas Llosa perdeu mesmo a mão de escritor: mesmo que tenha inventado mil coisas, há um ar de biografia ficcional careta e certinha que fulmina qualquer admiração pelo esforço de recriar a vida do intrépido e corajoso irlandês. O pior é que o romancista que nos fez entrar na cabeça de tantos personagens, inclusive os mais repulsivos, como a eminência parda da ditadura Cayo Bermúdez em Conversa na Catedral, ou o fanático republicano Moreira César em A guerra do fim do mundo, nunca consegue nos fazer entrar na cabeça de Roger Casement. Parece que ele o vê à distância, sem nunca se aproximar de fato do seu “sonho”, a não ser com os recursos do best seller ( Llosa não nos poupa nem dos clichês mais banais, como o do carcereiro que é duro e hostil a princípio e depois vai se tornando amigo do suposto traidor degenerado).

Aliás, eu não me surpreenderia em ver O sonho do celta transformado num filme em Hollywood e ganhando o Oscar. Ele tem todos os ingredientes para se transformar num daqueles filmes amorfos (tipo Entre dois amores, Dança com lobos, O paciente inglês), bem produzidos, com um ótimo protagonista, ótimos cenários, ótimos figurinos, tema politicamente correto e um destino tão certo e implacável quanto a forca para Sir Roger Casement: a irrelevância das Sessões da Tarde.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2011/10/04/rumo-ao-oscar-e-ao-tony-passando-pelo-nobel/

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21/02/2013

Leituras em espelho: Dois Jonas e suas formidáveis baleias: Vargas Llosa e OS MISERÁVEIS, Paulo Rónai e A COMÉDIA HUMANA

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I

“O cristianismo conduz a poesia à verdade. Como ele, a musa moderna verá as coisas  com um olhar mais elevado e mais amplo. Sentirá que tudo na criação não é humanamente ´belo´, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz. Perguntar-se-á se a razão estreita e relativa do artista deve ter ganho de causa sobre a razão infinita, absoluta, do criador; se cabe ao homem retificar Deus; se uma natureza mutilada será mais bela; se a arte possui o direito de desdobrar, por assim dizer, o homem, a vida, a criação; se cada coisa andará melhor, quando lhe for tirado o músculo e a mola; se, enfim, o meio de ser harmonioso é ser incompleto. É então que, com olhar fixo nos acontecimentos ao mesmo tempo risíveis e formidáveis, e sob a influência deste espírito de melancolia cristã e de crítica filosófica que notávamos há pouco, a poesia dará um grande passo, um passo decisivo, um passo que, semelhante ao abalo de um terremoto, mudará toda a face do mundo intelectual. Ela se porá a fazer como a natureza, a misturar nas suas criações, sem entretanto confundi-las, a sombra com a luz, o grotesco com o sublime, em outros termos, o corpo com a alma, o animal com o espírito, pois o ponto de partida da religião é sempre o ponto de partida da poesia. Tudo é perfeitamente coeso (…) E aqui, permitam-nos insistir, pois acabamos de indicar o traço característico, a diferença fundamental que separa, em nossa opinião, a arte moderna da arte antiga, a forma atual da forma extinta, ou, para nos servirmos de palavras mais vagas, porém, mais acreditadas, a literatura romântica da literatura clássica (…)como meio de contraste, o grotesco é, segundo nossa opinião, a mais rica fonte que a natureza pode abrir à arte. Rubens assim o compreendia, sem dúvida, quando se comprazia em misturar com o desenrolar de pompas reais, com coroações, com brilhantes cerimônias, alguma hedionda figura de anão da corte. Esta beleza universal que a Antiguidade derramava solenemente sobre tudo não deixava de ser monótona; a mesma impressão, sempre repetida, pode fatigar com o tempo. O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-se necessidade de descansar de tudo, até do belo…”

        (Victor Hugo, Prefácio de Cromwell)

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Eu não sei quantas pessoas ainda têm coragem ou disposição de encarar o tempo exigido pela leitura de Os Miseráveis (1862), embora seja uma experiência altamente gratificante. O certo é que seu enredo folhetinesco e mirabolante continua exercendo apelo enorme sobre o público, como se pode constatar pelas periódicas e já incontáveis transposições para outros veículos. O mais eloquente símbolo do seu sucesso é a permanência em cartaz do musical que originou o filme de Tom Hooper (aquele mesmo do medíocre O Discurso do Rei), com Hugh Jackman e o grande Russell Crowe nos papéis centrais, Jean Valjean e Javert (contudo, a figura mais badalada da produção é Anne Hathaway, no papel da desventurada Fantine).

Fascinado pela obra-prima de Victor Hugo, e pelo próprio universo “titânico” do gênio literário francês, Mario Vargas Llosa mergulhou por dois anos em Os Miseráveis e na sua fortuna crítica[1].

O resultado foi um curso em Oxford, em 2004, e um ensaio, A Tentação do Impossível (La tentación de lo imposible), publicado no mesmo ano, muito superior às mais recentes produções romanescas do peruano (Travessuras da Menina Má; O Sonho do Celta), o qual sempre foi excelente crítico literário: A Orgia Perpétua e A Verdade das Mentiras estão entre os títulos vargasllosianos obrigatórios[2].

Ele toma como mote um trecho de Alphonse de Lamartine (1790-1869), em que este condena seu contemporâneo porque “A mais homicida e mais terrível das paixões que se pode infundir às massas é a paixão do impossível”. Pois Hugo, desdenhando das leis humanas, da justiça dos homens, desmistificava em seu portentoso livro todo o sistema judiciário, quase que antecipando Kafka, quando este —em O Processo— decreta que “A mentira se converte em ordem universal”:

“A acusação de Lamartine a Victor Hugo lembra uma afirmação que encontrei num livro de Eric Hobsbawm [Rebeldes primitivos], segundo a qual o que os príncipes alemães mais temiam em seus súditos era o entusiasmo, porque este, a seu ver, era semente de agitação, uma fonte de desordem. Lamartine e os príncipes alemães tinham razão, é claro. Se o objetivo proposto é manter a vida social dentro dos cânones escritos, imersa numa ordem imutável como a astral ou a do trajeto dos trens, o entusiasmo e a alucinação ou miragem transitórios que uma ficção bem-sucedida produz é um inimigo potencial, um imprevisto que pode desorganizar a vida, espalhando a dúvida e a discórdia e estimulando o espírito crítico, dissolvente, capaz de provocar múltiplas fraturas na arquitetura social.”

Kafka é um autor moderno. Llosa nos mostra quão antiquado (uma das razões do seu encanto perene, diga-se de passagem) é Os Miseráveis como romance, uma vez que o narrador (“o divino estenógrafo”)  ali usurpa o papel de Deus, interferindo na ação, fazendo comentários, digressões autobiográficas, explicando para o leitor nos menores detalhes suas intenções e as dos personagens, ou seja, uma Voz asfixiante e autoritária. Não fosse Hugo um misto de escritor, ideólogo, presença carismática e profeta, uma daquelas figuras oitocentistas “maiores que a vida”, como Tolstói e Walt Whitman.

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Essa desmesura do narrador/autor se reflete nos seus protagonistas, “monstros pontilhosos[3], todos levando ao extremo (não à toa o autor de O Corcunda de Notre-Dame propôs o Sublime e o Grotesco como movimentos pendulares da criação artística) suas características. O exemplo mais acabado é o policial Javert, encarnação inumana do apego ao dever, perseguindo por décadas um prisioneiro evadido que roubara um pedaço de pão! O próprio herói, Jean Valjean, chega às raias do sobre-humano, com suas ações de auto-sacrifício (além da sua força física descomunal), que sempre desbaratam a estabilidade que por vezes consegue na sua longa trajetória de perseguido.

Sim, eles nos parecem monstruosos e não raro foram acusados de inverossímeis por críticos que não perceberam que esses exageros descabelados de Os Miseráveis (que o tornam o maior dos romances românticos, a meu ver) apontam para uma dimensão alegórica. Ainda que com ambientação histórica definida (com alguns anos-chaves:  1817 e 1832), estamos diante de uma alegoria sobre a luta do Bem e o Mal, sobre o Progresso e a presença de Deus nos caminhos tortos da humanidade; e mais ainda, esses exageros apontam para uma ambição inerente ao gênero, de ser “total”, de apresentar uma realidade ficcional autônoma, uma realidade paralela. “Romance: mundo imerso no mundo”, dizia Osman Lins (eu gosto muito de citar essa frase), e Os Miseráveis é um dos exemplos consumados dessa vocação, a qual efetivamente foi pedra-de-toque do próprio Llosa, ao criar seus monumentais Conversa na Catedral e A Guerra do Fim do Mundo  (este último, inclusive, nascido a partir da leitura de um livro  marcadamente ciclópico, à Victor Hugo: Os Sertões). Ele sempre deixou claro sua dívida com relação aos romances “totalizantes” (como Moby Dick ou Guerra e Paz).

Hugo chegou a afirmar que seu romance era “uma espécie de ensaio sobre o infinito”; já Vargas Llosa o chama de “maravilhosa irrealização da realidade”, que no entanto parece mais real que a vida.

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Por isso, não deixa de ser adequado, digam o que quiserem os críticos do resultado fianl, que uma obra com essas características tenha sua melhor tradução atual na altissonância e na teatralidade mais assumida dos recitativos de um musical (o que estou colocando como princípio que não verificarei: não suporto musicais, com as exceções de praxe, e para mim as piores horas ligadas ao cinema de que me lembro são as que perdi com os horrorosos Mary Poppins e My fair lady):

“Uma idêntica teatralidade transforma a batalha de Waterloo de Os Miseráveis num espetáculo sublime em que os vencedores e vencidos interpretam soberbamente os papéis atribuídos a eles por um Ser Supremo a quem o Imperador dos Frances começava a estorvar (…) Deus decidira o resultado do combate de antemão. Pois bem, se o fim da batalha já está escrito antes do conflito e das cargas e assaltos, do tiroteio ensurdecedor e do chiado dos sabres, o que resta a esses combatentes incapazes de mudar o rumo daquela partida de xadrez com movimentos inflexivelmente programados da qual são peões obedientes? Restam o gesto, a destreza formal, a retórica, a elegância e a beleza com que interpretam seus papéis, enriquecendo-o com petulâncias românticas como Ney ao pedir em altos brados que todos os projéteis da artilharia inglesa fossem se alojar no seu ventre ou o enfeando como o general Blücher ao ordenar a matança dos prisioneiros. Na maravilhosa irrealização da realidade, ou ficcionalização da história, que é o capítulo sobre Waterloo… o divino estenógrafo pode afirmar por isso, com toda legitimidade, que o verdadeiro vencedor de Waterloo foi Cambronne.

   Na realidade fictícia, as revoluções não são uma imperfeita, caótica, convulsa, ambígua criação coletiva de consequências imprevisíveis, mas um fenômeno inelutável e impessoal que vai além do social, tanto quanto um terremoto ou um ciclone (…) Para entender o que é uma revolução, segundo o narrador de Os Miseráveis, é preciso trocar-lhe o nome—e nesse mundo de identidades volúveis, trocar de nome significa trocar de papel ou função—e chamá-la de Progresso. E para se entender o que significa essa palavra também é preciso trocar seu nome por Amanhã, ou seja, o futuro…. Há um Destino, traçado desde que os seres humanos existem, que dotou a sociedade de um dinamismo que, ainda que tenha que passar por provas agônicas, sistematicamente a impulsiona rumo a formas superiores de vida material, cultural e moral…”

Afinal, já disse outro autor oceânico que somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos.

(a resenha acima, sem as notas de rodapé, foi publicada originalmente em A TRIBUNA de santos, em12 de fevereiro de 2013)

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II

“Não transforma a sociedade o homem, segundo os meios em que se desenvolve sua ação, em outros tantos indivíduos diferentes, à semelhança das variedades em zoologia? As diferenças entre um soldado, um operário, um administrador, um advogado, um desocupado, um sábio, um homem de Estado, um comerciante, um marujo, um poeta, um mendigo, um padre, são, conquanto mais difíceis de apreender,  tão consideráveis como as que há entre o lobo, o leão, o asno, o corvo, o tubarão, o lobo-marinho, a ovelha etc. Existiram, pois, e existirão sempre, espécies sociais como há espécies zoológicas. Se Buffon fez um trabalho magnífico  tentando apresentar num livro o conjunto da zoologia, não seria desejável uma obra desse gênero com relação à sociedade? Mas a natureza estabeleceu para as variedades animais limites dentro dos quais a sociedade não podia permanecer. Quando Buffon descrevia o leão, em poucas palavras nos apresentava a leoa, ao passo que na sociedade a mulher nem sempre se limita a ser a fêmea do macho. Pode haver, num casal, dois seres perfeitamente dessemelhantes. A mulher de um negociante é, muitas vezes, digna de ser a de um príncipe, e muitas vezes a de um príncipe não vale a de um artista. O estado social tem acasos que a natureza não se permite, porque ele é a natureza mais a sociedade. A descrição dessas espécies sociais era, pois, pelo menos o dobro das espécies animais, não se considerando senão os dois sexos. Enfim, entre os animais há poucos dramas, entre eles não se gera a confusão, eles se atiram uns sobre os outros, e eis tudo. Os homens, é verdade, também se atiram uns sobre os outros, mas o grau de inteligência que os diferencia torna a luta muito mais complicada.  Se alguns sábios não admitem que a animalidade se transvaza na humanidade por uma imensa corrente de vida, pode entretanto o merceeiro tornar-se par-de-França e o nobre descer por vezes ao mais baixo nível social (…) Assim, pois, a obra a empreender devia ter uma tríplice forma: os homens, as mulheres e as coisas, isto é, as pessoas e a representação material que elas dão de seu pensamento; em resumo, o homem e a vida (…) Como, porém, tornar interessante o drama de três ou quatro mil personagens que a sociedade apresenta? Como agradar, ao mesmo tempo, ao poeta, ao filósofo e às massas que querem a poesia e a filosofia sob imagens empolgantes?”

                  (Honoré de Balzac, Préfácio à Comédia Humana)

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A 4ª. edição de Balzac e A Comédia Humana[4], de Paulo Rónai (1907-1992) reaparece na esteira do relançamento dos 17 volumes de traduções da obra balzaquiana que ele coordenou nos anos 1940-50. Há todo um charme recôndito no pequeno volume, onde o húngaro, que viveu no Brasil boa parte da sua existência, destila sua íntima convivência com os textos do autor de A Comédia Humana e nos faz relevar os aspectos datados, até mesmo superados, das suas análises, principalmente as literárias[5], pois se o texto de Rónai é um manancial de informações valiosas e de conhecimento de primeira mão,por vezes soa esquemático demais, meio professoral e “quadradinho” (por exemplo, nele se fala em  “qualidades típicas do espírito francês”, em “ilustre gentil-homem”—e ele não está falando de um personagem de Balzac, não, mas de um estudioso de sua obra!; há também afirmações genéricas do tipo: “A Comédia Humana presta-se a todas as interpretações”).

Como atualmente há uma falta constrangedora de textos que tenham clareza didática e que ajudem o leitor comum a atravessar certas obras-selvas, é provável que esse defeito evidenciado pelo transcorrer do tempo venha a ser tomado como uma qualidade (também não se pode esquecer que os textos surgiram tendo como base conferências nas quais Rónai se esforçava em aproximar a obra balzaquiana do leitor brasileiro da época).

A primeira seção, O mundo de Balzac enfatiza a vitalidade e permanência da Comédia naqueles meados do século XX, em pleno pós-Segunda Guerra; e enfatiza também o que Rónai toma (a meu ver, discutivelmente) como o maior achado do autor francês: “Foi ele quem primeiro teve a ideia genial de basear a literatura de ficção em estudos e pesquisas, aplicando à sociedade de seu próprio tempo o método de documentação com que Walter Scott, em seus romances históricos, transfigurava o passado”.

Mais aceitável é essa outra consideração: “A volta sistemática das mesmas personagens dentro de diversos romances era, em verdade, invenção originalíssima e de grande alcance”, mas a sequência é duvidosa já é duvidosa: Balzac pretendeu “eliminar a maior imperfeição inerente ao gênero, qual seja, a incapacidade de dar uma ilusão completa da realidade” Que Balzac achasse que havia essa “imperfeição inerente ao gênero”, tudo bem. Seu crítico nunca poderia encampar essa visão basicamente distorcida do alcance de um romance (e quem leu a parte dedicada ao estudo que Vargas Llosa fez de Os Miseráveis compreenderá minhas reservas com relação a afirmações desse tipo).

Como profundo conhecedor até da genética textual balzaquiana, o organizador da Comédia Humana brasileira permite que acompanhemos a reescritura atordoante que foi necessária para a unificação da obra, após a decisão do seu criador de ligar entre si os relatos mais diversos (Rónai também discute a falta de “uma ordem cronológica de leitura”, “o que se poderia julgar uma fraqueza de sua obra”, no sentido da comodidade dos leitores!!??; felizmente, reconhece que Balzac não levou a cabo tal ordenação intencionalmente, e que essa “lacuna” obedece a um critério artístico superior do que a mera “comodidade dos leitores”): “no vasto edifício de A Comédia Humana quase tudo tem significação, até as irregularidades, as assimetrias, as aparentes inconsequências, todas elas subordinadas ao fim principal, que consiste em dar uma imagem tão completa e fiel quanto possível da complexa realidade moderna.” Só gostaria que o tom não fosse quase de justificação.

O mais da seção se preocupa em elencar alguns “enigmas” na arquitetura da vasta construção e mencionar alguns de seus investigadores, que mais do que balzaquianos parecem sair do mundo do Flaubert de Bouvard e Pécuchet [embora algumas vezes eu mesmo me sinta saído desse mundo].

Não se pode esquecer que Rónai também analisa um romance não tão conhecido como Ilusões Perdidas, Eugénie Grandet ou Pai Goriot, e que faz parte do primeiro volume: Memórias de duas jovens esposas, para exemplificar o método de trabalho balzaquiano, aquele vezo obsessivo de estar sempre anunciando projetos em sua Correspondência, e as suas sucessivas transformações. É a parte mais interessante de O mundo de Balzac.

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Gosto muito da segunda seção, O Pai Goriot dentro da literatura universal, talvez pelo tanto que goste do romance, mesmo que ele comece com um clichê de doer (por ser clichê e pelo preconceito social): “A costureirinha que, mal lidas vinte páginas, depõe bocejando A Educação Sentimental verte abundantes lágrimas no fim de um romance de Delly, velozmente devorado”.

Mas o fato é que ele expõe de forma cabal a importância estratégica da história de Rastignac para se compreender as leis psicológicas e sociais que regem o mundo da Comédia. É seu livro-síntese, sua chave.

E, ademais, ele explora a questão do leitmotiv “matar o mandarim”, fazendo uma genealogia das obras que trataram o assunto, de uma forma erudita, porém nada preciosista ou acadêmica, uma aula modelar de historicismo literário, que roça a literatura comparada de uma forma muito saborosa. A meu ver, é o ponto alto de Balzac e A Comédia Humana.

Apesar de achar um pouco ultrapassada e rígida as distinções entre “romances” e “contos longos” de A Comédia Humana, o interesse maior de Balzac contista, a terceira seção, está na útil distinção—que só um especialista na obra completa poderia fazer—entre as duas classificações que se pode fazer desses textos mais curtos, os independentes e os “explicativos” (“isto é, que esclarecem outras obras ou por estas se esclarecem”). E nos dá a pista desses últimos, num belo roteiro para quem quer se aventurar pela leitura do conjunto, pois são os textos mais difíceis de avaliar. E é bom lembrar que o primeiro volume se inicia com dois desses “contos”, e aliás admiráveis: Ao Chat-qui-pelote & O baile de Sceaux (concordo com Rónai, principalmente com relação ao segundo, que os finais dessa linha de textos insertos na Comédia são meio abruptos e apressados).

Acho que essa seção é uma grande contribuição ao conhecimento didático, por assim dizer, da obra de Balzac, independentemente da discussão de gêneros literários.

Não gosto do tom justificativo que retorna em O estilo de Balzac, a quarta seção: será que um gênio desses precisa de escusas? Pois é, dizia-se (e Proust o afirmou muitas vezes) que Balzac escrevia mal. E daí? Isso não significa mais nada. Na verdade, Rónai chegará à conclusão óbvia: “O nosso autor, como os grandes escritores antigos, exige o sacrifício de certos hábitos de leitura, compensando-a com um rico, intenso conteúdo humano, sempre atual”.

Gosto é das amostras do Balzac anterior às obras da Comédia, que perpetrou trechos como este:”A condessa acorreu com a velocidade de um milhafre”. E como amostra de que a prosa de ficção é muito mais do que um estilo totalmente trabalhado, ele nos dá trechos hilários que persistem em textos do grande ciclo, como Modesta Mignon, onde uma moça está “com o nariz aberto ao perfume da flor azul do ideal”.

E gosto é da técnica utilizada por Rónai de mostrar como Balzac operava (por acréscimos), através de preciosas análises de trechos (que considero outro ponto alto do livro). Ele também acaba nos mostrando que o autor de La rabouilleuse é, como Victor Hugo, um praticante do narrador asfixiante: “Desde o início, ele faz sentir que já sabe toda a história e está apenas procurando a melhor maneira para comunicá-la ao leitor”. Como exemplo, justamente um trecho daquele romance, traduzido por aqui como Um conchego de solteirão:

“Jean-Jacques Rouget, a quem o pai acabara controlando com severidade ao reconhecer-lhe a estupidez, ficou solteiro por graves razões, cuja explicação constitui parte importante desta história. Seu celibato foi em parte causado por culpa do doutor, como se verá mais tarde. Agora é necessário examinar os efeitos da vingança exercida pelo pai na pessoa de uma filha que não considerava sua e que, no entanto, podem acreditá-lo, lhe pertencia legitimamente.”

   Outro ponto importante levantado por Rónai nessa seção é a terminologia inovadora utilizada por Balzac, e tomada de empréstimo ás ciências naturais, muito em voga àquela altura, o que sublinha—até estilisticamente—o lado enciclopédico que o romance assumiria como uma de suas vocações naturais. Mas para o seu estudioso há o reverso: “O estilo de Balzac falando em seu próprio nome é justamente aquele em que se censura o maior número de falhas: a heterogeneidade, as pretensões a cientista e historiador, a banalidade ou a incongruências das imagens, a exuberância, às vezes caótica”. Será que podemos, hoje, subscrever uma passagem dessas (que, diga-se de passagem, reverbera em outras, do tipo: “Muito provavelmente o melhor estilo é aquele que não se percebe”)?

De qualquer forma, no final toda esse pró-e-contra se mostra estéril e irrisório justamente porque Rónai dá um golpe baixo: transcreve uma imensa passagem (que ocupa quase três páginas) de O Primo Pons, que liquida a discussão, de tão bela e expressiva que é.

edição anterior de bcm

Quanto à quinta seção, Paris, personagem de Balzac, é prejudicada por um certo tom moralista convencional (“A Paris de Balzac, para dizer a verdade, pouco tem de idílico. O seu brilho lembra o da chama que atrai os insetos noturnos para queimá-los. Se os insetes pudessem refletir! Se olhassem um instante sequer para o chão, cheio de asas queimadas, de corpos carbonizados de seus semelhantes! Eles, porém, só sabem olhar para a luz, só têm uma vontade, chegarem-se a ela o mais possível, aquecerem-se a ela”, dá para acreditar que na seção anterior ele analisou com precisão as pérolas de breguice do estilo do autor francês?) que impregna o levantamento (numérico, inclusive) da presença da metrópole na Comédia. Mesmo assim, ocorre um fenômeno bacana sobre o qual seria um pecado passar em branco: de repente, Rónai se investe de um espírito de prosador à Balzac, veja-se:

“Se Londres a igualava no número dos habitantes e a superava como empório comercial, ficava-lhe atrás no colorido, nas atrações, no movimento de estrangeiros. Roma, centro perene do catolicismo, ainda não era capital da Itália e, na atmosfera de suas ruas, ao cheiro do incenso misturava-se o mofo das glórias passadas. Madri definhava uma lenta decadência, Berlim era apenas o centro de um pequeno estado prussiano, a capital dos czares ficava longe, atrás do nevoeiro, no meio do deserto. Viena, sim, que reluzia, abrilhantada pela auréola de uma esplêndida corte, ostentando uma beleza alegre e harmoniosa; mas dava a impressão artística de uma joia sem comunicar o espanto de uma metrópole gigantesca…”

pele de onagro

Além da história paradigmática de Rastignac, há outra fábula exemplar da trituração de ideais e pessoas executada em (e por) Paris: a do primo Pons e de seu amigo Schmucke, humilhados e espoliados, e que são o epítome do seguinte axioma: “Frequentemente escolhe uma das figuras mais inexpressivas, mais anódinas, que parecem levar a vida mais monótona, que são a negação de todo o romanesco, uma personagem totalmente desinteressante—como se tivesse apostado demonstrar-nos a existência de paixões e dramas sob qualquer disfarce”

   Até essa altura temos cinco seções sólidas e, no mínimo, úteis, com pequenos senões ou detalhes que nos soam hoje datados. Há um epílogo bonito, também, com forte sabor de reminiscência da infância e da juventude, À maneira de epílogo: adeus a Balzac, em que ele historia suas relações pessoais com o fenomenal criador da Comédia Humana de uma maneira que parece desapaixonada, mas só na superfície, pois é de tanto que ama Balzac e sua obra e de tanto que a conhece que ficou esse ar de coisa já tão despojada e simples que nem parece ser resultado de anos de leituras, pesquisas, estudos e reflexões. Parece uma coisa dada (inteligentemente, a nova edição complementou-a e lhe deu uma nova profundidade com a inclusão do texto sobre a história da edição brasileira da Comédia Humana).

Todavia, é meio indefensável a sexta parte, O Brasil na obra e na vida de Balzac, a não ser como curiosidade. Novamente, registre-se o assombroso conhecimento de firulas e detalhes do conjunto de 89 romances e contos, mas é muito tiro para caçar moscas e formigas, para nos dar as parcas referências ao nosso país, e um único personagem. Lendo, tive a mesma aflição e sensação de inutilidade de quando li alguns dos ensaios de Cultura & Imperialismo, de Edward W. Said, aqueles em que queria, por exemplo, vincular as existências das heroínas de Jane Austen com o sofrimento dos jamaicanos. São páginas e páginas, em Rónai e Said (com a crucial diferença que, no segundo, se efetua–ou se tenta efetuar– uma desconstrução ideológica muito consciente), a  nos escancarar um grande vazio. Só porque Balzac, numa carta, quando está frustrado com o fracasso de sua carreira, aventa a possibilidade de fugir para o Brasil, insinuam-se mundos e fundos.

O que ela registra, talvez, é uma possível gratidão do autor húngaro pelo país que o acolheu.

Felizmente, assim como o efeito conjunto de A Comédia Humana absorve, sem maiores problemas, a moça com o nariz aberto ao perfume da flor azul do ideal, Balzac e A Comédia Humana absorve essa dispensável seção. Ao comentar (no texto em apêndice) a presença brasileira de  (e não a presença do Brasil em) Balzac, ele diz: “E talvez me seja permitido incluir entre os subprodutos dessa renascença balzaquiana mais dois livros de minha autoria: Balzac e A Comédia Humana e Um Romance de Balzac: A Pele de Onagro…” Modéstia pura: longe de ser apenas um subproduto, seu livro  tornou-se um pequeno clássico que resiste há 66 anos, tempo incomensurável para qualquer estudo crítico.

(o texto acima foi escrito especialmente para o blog, em 20-21 de fevereiro de 2013)

paulo rónai


[1] Todavia, é uma leitura de toda a vida, e de certa forma uma reminiscência da adolescência. O ensaio começa assim: “Naquele ano de 1950, o inverno, no internato do Colégio Militar Leoncio Prado, de Lima, era úmido e cinza, a rotina embrutecedora e a vida um tanto infeliz. As aventuras de Jean Valjean, a obstinação de sabujo de Javert, a simpatia de Gavroche e o heroísmo de Enjolras apagavam a hostilidade do mundo e transformavam a depressão em entusiasmo nas horas de leitura, roubadas às aulas e à instrução militar, que me transportavam para um universo de extremos incandescentes na desgraça, no amor, na coragem, na alegria, na vileza. A revolução, a santidade, o sacrifício, o cárcere, o crime, homens super-homens, virgens ou putas, santas ou perversas, uma humanidade atenta ao gesto, à eufonia, à metáfora. Fugir para lá era um grande refúgio: a vida esplendia da ficção me dava forças para suportar a vida verdadeira. Mas a riqueza da literatura também fazia a realidade real ficar mais pobre (…) Se estamos há tantos séculos escrevendo e lendo ficções, algum motivo deve haver. Eu sei que naquele inverno de 1950, com uniforme, garoa e neblina, no alto do escarpado de La Perla, graças a Os Miseráveis a vida foi muito menos miserável para mim.”

Utilizo aqui a tradução de Paulina Wacht & Ari Roitman.

[2] Foi a leitura do primeiro, apaixonante, que me motivou a ler os romances do próprio Llosa. Tive a sorte de começar pelo melhor de todos, Conversa na Catedral.

[3] Deve-se lamentar a falta de atenção dos tradutores de A Tentação do Impossível para as traduções que aclimataram o texto de Hugo no Brasil. Eles perderam uma ótima oportunidade para defender o uso de “monstros pontilhosos”, ao invés de “monstros melindrosos”, como aparece nas duas traduções que li e que acredito serem as mais prestigiosas no Brasil: a de Carlos dos Santos (publicada pelo Círculo do Livro) e a de Frederico Ozanam Pessoa de Barros (esta eu li, numa curiosa sincronicidade, justamente no ano da publicação de La Tentación de lo Imposible, 2004), atualmente editada pela CosacNaify. O termo “melindrosos” talvez numa primeira sacada parece mais restrito a modulações psicológicas, enquanto “pontilhosos” já nos remete a uma convivência de sombra e luz, mais estética. Mesmo assim, “melindrosos” é o termo com que o leitor brasileiro do romance convive e considero o descaso dos tradutores digno de nota.

vida de balzac

[4] Os seis ensaios (e mais um epílogo proustiano) que são o cerne do volume foram publicados em 1947, para acompanhar a monumental edição de A Comédia Humana, então levada a cabo pela editora Globo [o empreendimento foi de 1946 a 1955], para a qual Rónai também escrevera uma biografia sucinta e exemplar de Balzac.

Na edição atual, foi incluído um texto do próprio Rónai, do final dos anos 1980, onde conta a história da lendária edição em 17 volumes.

O volume ainda é enriquecido com índices e listas bibliográficas, funcionando como uma homenagem a Rónai. Nada mais merecido. Permito-me somente observar que A Comédia Humana acaba ocupando um papel coadjuvante na coisa toda.

[5] Curiosamente, numa época em que se crucifica a obra de Monteiro Lobato pelo conteúdo racista (chegando-se a postular uma proibição da circulação escolar de Caçadas de Pedrinho) e que a própria Globo (que publica Balzac e A Comédia Humana através do selo Biblioteca Azul) tratou de alterar o título de O caso dos dez negrinhos  para E não sobrou nenhum, não houve manifestação de espécie alguma, nem ninguém da editora procurou colocar panos quentes, em certas passagens de Rónai que poderiam soar como racistas aos ouvidos de hoje, como na seção intitulada O Brasil na vida e na obra de Balzac, onde aparece um “comércio de pretos”. O que prova que sempre há grita onde há mídia.

balzachugo

09/06/2012

DRAMALHÃO E VOCAÇÃO LITERÁRIA (Vargas Llosa- Apetite pela Totalidade III)

 

 Escritos entre dois projetos ciclópicos e avassaladores (Conversa na Catedral, 1969, e A Guerra do Fim do Mundo, 1981), Pantaleão e as visitadoras (1973) e  Tia Julia e o escrevinhador (1977) correram o risco de ser vistos como “tempos fracos” da obra de Mario Vargas Llosa,  meros exercícios farsescos. O tempo provou que não eram, e o leitor brasileiro pode confirmar o virtuosismo de ambos nas novas traduções lançadas pela Alfaguara.

     Tia Julia e o escrevinhador, reaparecendo em sua terceira versão, feita por José Rubens Siqueira, transcorre em meados dos anos 50 e alterna o relato do romance surgido entre Varguitas, 18 anos, e a irmã de uma de suas tias, Julia, boliviana divorciada de 32 anos (fato inspirado na vida do próprio Llosa e seu primeiro casamento), com os enredos  criados pelo compatriota de Julia, Pedro Camacho, o qual escreve várias novelas de rádio ao mesmo tempo e se torna uma celebridade em Lima. As duas tramas se complicam: a família de Varguitas descobre o que se passa entre ele e Julia e arma-se um complô no seio do numeroso clã para separá-los (o que os obriga a tentar o casamento em povoados provincianos, burlando o fato de Varguitas ser ainda “menor”); Pedro Camacho começa a misturar personagens de novelas diferentes, ressuscitar mortos, trocar profissões, até que, armada a mais completa barafunda, seja obrigado a matar a todos por meio de cataclismos divertidos (num dos melhores episódios, que a princípio é uma final de campeonato de futebol e depois se metamorfoseia em tourada, há lançamento de gás lacrimogêneo, multidões pisoteadas, policiais suicidando-se, amantes que só na agonia se enlaçam finalmente)…

   Esse foi o aspecto mais destacado com relação ao livro: seu mergulho no coração do dramalhão, esse fascínio pelos enredos mirabolantes e exaltados, um vôo pelo exagero do folhetim, que o torna irmão do García Márquez de O amor nos tempos do cólera, do melhor Manuel Puig (o de Boquinhas Pintadas, A traição de Rita Hayworth, O beijo da mulher aranha) e o cinema de Pedro Almodóvar.

   Só é necessário fazer a ressalva de que os supostos enredos de Pedro Camacho são escritos com o tom e a atmosfera do dramalhão, mas na verdade rompem com as convenções dos argumentos, com o decoro sexual que se esperava na época. Llosa hipertrofia as características do gênero de forma a tornar evidentes as fantasias e fetiches dos espectadores, um pouco como o Nélson Rodrigues de A vida como ela é, ou o Dalton Trevisan das seus perversos folhetins curitibanos (Virgem louca, loucos beijos, por exemplo), fazendo um bem armado contraponto à crônica de costumes da burguesia limenha representada pela família de Varguitas e o escândalo criado por Julia.

   Além disso, Tia Julia e o escrevinhador é, como A escolha de Sofia, de William Styron, uma belíssima reflexão sobre o desenvolvimento da vocação literária, que está na base do enleamento de Varguitas, candidato a escritor (e ambiciosíssimo), com a situação de Pedro Camacho, demiurgo do rádio, criador de mundos, artista medíocre e no entanto atado à mesma rotina estafante de criar, criar, criar, como um Balzac ou um Flaubert: todas as suas horas estavam tomadas com a produção de novos roteiros: __ Se eu paro, o mundo vem abaixo —murmurou.”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em cinco de janeiro de 2008)

VER NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/10/25/o-peru-de-pantaleon-pantoja-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-ii/

https://armonte.wordpress.com/2013/10/25/varios-romances-num-so-conversa-na-catedral-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-i/

https://armonte.wordpress.com/2013/10/25/os-perus-de-lituma-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-iv/

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