MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

09/06/2012

A IMPLACÁVEL SIMPLICIDADE DE “A TRÉGUA”

“…Conheço a Montevidéu dos homens com horário, os que entram às oito e meia e saem às 12, os que retornam às duas e meia e vão embora definitivamente às sete. Esses rostos crispados e suarentos, esses passos urgentes e tropeçantes são meus velhos conhecidos…”

Haverá modo de escrever mais fácil do que a imitação do formato de um diário? O escritor finge registrar o dia a dia e assim temos um livro… Esse é um dos equívocos mais freqüentes com relação à ficção. Tem tanta gente que se encanta com a “simplicidade” e “naturalidade” de O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos! O mesmo com a poesia, ainda mais moderna, sem rima, verso branco. Todo mundo acha fácil escrever… E tem tanta gente que se encanta com a “simplicidade” e “naturalidade” de um Carlos Drummond de Andrade ao utilizar o cotidiano como matéria-prima!

Em A trégua (La Tregua, 1960)  que já fora traduzido há alguns anos (em edições pela Brasiliense e pela Martins Fontes) e agora ressurge com grande alarde, boa tradução (de Joana Angélica D´Avila Melo) e péssima capa pela Alfaguara, um poeta/ficcionista, o uruguaio Mario Benedetti, exercitou a forma de diário. E, como os autores acima mencionados, mostra cabalmente a complexidade e finura estilística que são necessárias para criar uma narrativa nesse feitio, toda calcada na poesia do cotidiano.

Trata-se de um ano na vida do senhor Santomé, o ano em que comemora seu cinqüentenário e pode se aposentar, viver no ócio. O que o espera? Nem ele sabe, acostumado a uma rotina opaca (sem lugar para “a rebeldia, o sacrifício ou o heroísmo”). Basta mencionar que um motivo de emoção irônica para ele, esse drummondiano que vive pela “paixão medida” e que trabalhou durante um quarto de século numa seção de contabilidade, é verificar a mudança na sua letra de Heródoto contábil“Em 1929, eu tinha uma caligrafia escarranchada: os t minúsculos não se inclinavam para o mesmo lado que os d, os b ou os h, como se não tivesse soprado para todos o mesmo vento. Em 1939, as metades inferiores dos f, dos g e dos j pareciam uma espécie de franjas indecisas, sem caráter nem vontade. Em 1945, começou a era das maiúsculas, meu capricho em adorná-las com amplas curvas, espetaculares e inúteis. Os M e o H eram grandes aranhas, com teia e tudo. Agora minha letra se tornou sintética, regular, disciplinada, clara. O que prova, apenas, que sou um farsante, já que eu mesmo me tornei complicado, irregular, caótico, impuro.”

Viúvo, morando com os três filhos, descobre que um deles é gay e apaixona-se (e é correspondido) por Laura Avellaneda, subalterna com metade da sua idade. A salamandra arde em chama fria (a velhice já soprando em sua vida), porém há que se prestar atenção no que pode significar a “trégua” do título, ainda mais se pensarmos que o autor já afirmou ser o pessimista “um otimista bem-informado”.

A trégua é um romance formidável porque Benedetti poetiza o cotidiano com uma prosa sintética, regular, disciplinada, clara, calibrada com a mais absoluta precisão, e no entanto essa poetização se faz com objetivos mortíferos, pois realça o que há de absolutamente angustiante, asfixiador e amorfo no cotidiano (sem chegar aos extremos do seu compatriota genial, Juan Carlos Onetti). E o senhor Santomé, apesar da sua inteligência, é presa dos preconceitos e das superstições de um habitante pequeno-burguês da Montevidéu de meados do século passado. Falando do filho: “Já que o homem da família lhe falhara, dedicou-se a negar o homem que havia em si mesmo. Ufa! Que explicação complicada para desenvolver um fato tão simples, tão ordinário, tão indiscutível. Meu filho é um maricas… Eu preferiria que ele me saísse ladrão, morfinômano, imbecil.”

Mas assim como ele prefere a “assustadora franqueza” da feiúra arquitetônica do Palácio Salvo, até nas suas limitações pessoais ele sobressai como um dos grandes personagens da literatura latino-americana.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em  19 de maio de 2007)

13/05/2012

DEZ DESTAQUES DE 2009

Pessoalmente, sempre acho meio ridículo fazer lista de melhores. O mercado editorial é um oceano e uma pessoa só consegue, no máximo, indicar gotas desse oceano (a metáfora não é muito rica, porém é bem exata). De tudo o que li em 2009, proponho dez destaques, levando em conta o ineditismo dos livros, apesar de 2009 ter sido um ano pródigo em novas traduções: por exemplo, surgiram versões novas de Cem anos de solidão, O  inominável,  Fundação, Zazie no metrô, O turista acidental , Alice no país das maravilhas, e um vasto etc.

Outro destaque à parte foram os livros relacionados ao Evolucionismo  e certamente, nesse quesito, além do seu brilhantismo próprio, Richard Dawkins foi o campeão, com A grande história da evolução & O maior espetáculo da terra (este último, nem comprei ainda…).

Após esse preâmbulo, passo à minha lista de destaques (outros livros vêm à minha mente, mas quero me ater a esse número   redondo):

10)  Após o anoitecer, de Haruki Murakami (Alfaguara)- belo romance japonês que nos mergulha nas cambiâncias da “modernidade líquida” (como Zygmunt Bauman caracterizou nossa época) que não pouparam nem o mundo oriental.

9) Suicídios exemplares, de Enrique Vila-Matas (CosacNaify)- deliciosa e provocante coletânea de histórias cuja temática já e indicada pelo título., grande momento do autor espanhol. Espere mais ironia que drama, leitor..

8) Buscas curiosas, de Margaret Atwood (Rocco)- A grande escritora canadense reuniu textos onde comenta outros escritores, a feitura de alguns de seus livros e circunstâncias biográficas. O resultado é tão apaixonante quante sua própria ficção.

7) Leite derramado, de Chico Buarque (Companhia das Letras)- O melhor, mais inspirado, romance de Chico até agora, e simplesmente um texto primoroso, de primeira. Um século transcorre diante dos nossos olhos com uma insustentável leveza de estilo, e uma mirada poderosa no racismo latente em nossa sociedade. Maior poeta da nossa MPB, Chico agora também é um dos nossos grandes prosadores.

6) Dois grandes momentos da ficção uruguaia,: o primeiro livro de Juan Carlos Onetti (cujo centenário foi comemorado em 2009), O poço (1939), reunido a Para uma tumba sem nome (1959), numa edição da Planeta; e Primavera num espelho partido, de Mario Benedetti (Alfaguara), belíssimo romance político, utilizando a forma polifônica (muitas vozes) e comprovando a maestria de uma das grandes perdas do ano passado.

5) Súplicas atendidas, de Truman Capote (L&PM)- Apesar de inacabado e um pouco desagradável, é fascinante esse painel moralista do jet set americano e europeu entre os anos 40 e  70, que apresenta alguns momentos geniais, em meio a fofocas e revanches. Também vale destacar o atraso com que foi traduzido e o descaso com que foi traduzido.

4) Modernismo, de Peter Gay (Companhia das letras)- Foi bastante atacado esse esforço enciclopédico do grande historiador e biógrafo de Freud. Mas eu o acho admirável e necessário. Numa época de fragmentação, é preciso haver esses exercícios de totalização, e o Modernismo é ainda o nosso último horizonte “estável”.  O mundo seria muito mais sem graça se não existissem Peter Gay e Richard Dawkins.

3) Amuleto & Estrela distante, de Roberto Bolaño (Companhia das Letras)- Embora nenhum dos dois tenha a amplitude suprema de Detetives selvagens, talvez o maior livro dos últimos anos, mostram como Bolaño, junto com W.G. Sebald (aliás,  o grande livro de Sebald, Os emigrantes, foi reeditado este ano, também pela Companhia. das Letras, havendo uma edição anterior pela Record), é o morto mais vivo da ficção contemporânea (ele morreu, pateticamente, aos 50 anos, esperando por um transplante de fígado foi publicada e conhecida quase toda postumamente).

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2) Um anarquista e outros contos, de Joseph Conrad (Hedra)- É até engraçado colocar o genial Conrad num segundo lugar, uma vez que ele é um dos autor-referência, mesmo nas suas histórias curtas, escritas no início do século passado, e que abordam temas ainda atualíssimos (terrorismo e publicidade, por exemplo).Também é outro caso de atraso lamentável em matéria de tradução. É preciso também destacar o papel importante da editora em colocar títulos surpreendentes no mercado, na mesma série à qual pertence o livro do genial escritor polonês.

1) As aventuras de Augie March, de Saul Bellow (Companhia das Letras)- Outro caso estrondoso de descaso e atraso  Esse livro de 1953 estbeleceu definitivamente a reputação de Saul Bellow, um dos maiores escritores norte-americanos, e muitos ainda o consideram sua obra-prima. Talvez não seja (eu prefiro por exemplo, O planeta do sr. Sammler, publicado dez anos depois, e há ainda Herzog  & o esplêndido O legado de Humboldt), mas é um dos seus melhores livros. É bom lembrar que outra grande obra de Bellow, Henderson, o rei da chuva, tornou-se cinquentenária agora em 2009, e assim aproveito para corrigir uma omissão que cometi no meu post a respeito das comemorações literárias deste ano. Agora: se o romance de Bellow é o grande destaque do ano, a capa escolhida é uma das piores, simplesmente horrorosa.

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