“…Conheço a Montevidéu dos homens com horário, os que entram às oito e meia e saem às 12, os que retornam às duas e meia e vão embora definitivamente às sete. Esses rostos crispados e suarentos, esses passos urgentes e tropeçantes são meus velhos conhecidos…”
Haverá modo de escrever mais fácil do que a imitação do formato de um diário? O escritor finge registrar o dia a dia e assim temos um livro… Esse é um dos equívocos mais freqüentes com relação à ficção. Tem tanta gente que se encanta com a “simplicidade” e “naturalidade” de O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos! O mesmo com a poesia, ainda mais moderna, sem rima, verso branco. Todo mundo acha fácil escrever… E tem tanta gente que se encanta com a “simplicidade” e “naturalidade” de um Carlos Drummond de Andrade ao utilizar o cotidiano como matéria-prima!
Em A trégua (La Tregua, 1960) que já fora traduzido há alguns anos (em edições pela Brasiliense e pela Martins Fontes) e agora ressurge com grande alarde, boa tradução (de Joana Angélica D´Avila Melo) e péssima capa pela Alfaguara, um poeta/ficcionista, o uruguaio Mario Benedetti, exercitou a forma de diário. E, como os autores acima mencionados, mostra cabalmente a complexidade e finura estilística que são necessárias para criar uma narrativa nesse feitio, toda calcada na poesia do cotidiano.
Trata-se de um ano na vida do senhor Santomé, o ano em que comemora seu cinqüentenário e pode se aposentar, viver no ócio. O que o espera? Nem ele sabe, acostumado a uma rotina opaca (sem lugar para “a rebeldia, o sacrifício ou o heroísmo”). Basta mencionar que um motivo de emoção irônica para ele, esse drummondiano que vive pela “paixão medida” e que trabalhou durante um quarto de século numa seção de contabilidade, é verificar a mudança na sua letra de Heródoto contábil: “Em 1929, eu tinha uma caligrafia escarranchada: os t minúsculos não se inclinavam para o mesmo lado que os d, os b ou os h, como se não tivesse soprado para todos o mesmo vento. Em 1939, as metades inferiores dos f, dos g e dos j pareciam uma espécie de franjas indecisas, sem caráter nem vontade. Em 1945, começou a era das maiúsculas, meu capricho em adorná-las com amplas curvas, espetaculares e inúteis. Os M e o H eram grandes aranhas, com teia e tudo. Agora minha letra se tornou sintética, regular, disciplinada, clara. O que prova, apenas, que sou um farsante, já que eu mesmo me tornei complicado, irregular, caótico, impuro.”
Viúvo, morando com os três filhos, descobre que um deles é gay e apaixona-se (e é correspondido) por Laura Avellaneda, subalterna com metade da sua idade. A salamandra arde em chama fria (a velhice já soprando em sua vida), porém há que se prestar atenção no que pode significar a “trégua” do título, ainda mais se pensarmos que o autor já afirmou ser o pessimista “um otimista bem-informado”.
A trégua é um romance formidável porque Benedetti poetiza o cotidiano com uma prosa sintética, regular, disciplinada, clara, calibrada com a mais absoluta precisão, e no entanto essa poetização se faz com objetivos mortíferos, pois realça o que há de absolutamente angustiante, asfixiador e amorfo no cotidiano (sem chegar aos extremos do seu compatriota genial, Juan Carlos Onetti). E o senhor Santomé, apesar da sua inteligência, é presa dos preconceitos e das superstições de um habitante pequeno-burguês da Montevidéu de meados do século passado. Falando do filho: “Já que o homem da família lhe falhara, dedicou-se a negar o homem que havia em si mesmo. Ufa! Que explicação complicada para desenvolver um fato tão simples, tão ordinário, tão indiscutível. Meu filho é um maricas… Eu preferiria que ele me saísse ladrão, morfinômano, imbecil.”
Mas assim como ele prefere a “assustadora franqueza” da feiúra arquitetônica do Palácio Salvo, até nas suas limitações pessoais ele sobressai como um dos grandes personagens da literatura latino-americana.
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 19 de maio de 2007)