“Como pode haver algo bonito depois de tudo que vivemos? (…) Ah, Beatriz, como vamos falar sobre o que nos aconteceu um dia, quando tudo tiver terminado?”
“É evidente que a sua filha está morta. Se pisar na cabeça dela, pode chegar um pouco mais alto, onde o ar é melhor. Você pisa na cabeça da sua filha?”
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 08 de janeiro de 2013)
Enquanto o espectador de As Aventuras de Pi se depara com graves questões filosóficas camufladas num enredo fantasioso e no formato 3D, o leitor brasileiro pode conferir Beatriz & Virgílio [tradução de Maria Helena Rouanet para Beatrice & Virgil, Canada-2010], o mais recente romance de Yann Martel, que escreveu o premiado livro transposto para as telas por Ang Lee.
Foram oito anos entre um e outro. E se Pi, não obstante toda a badalação, resultara controverso (acusado de plágio e rejeitado por uma parcela da crítica como uma “autoajuda” disfarçada de ficção, um pouquinho melhor que A Cabana; eu, por meu turno, considero-o admirável), Beatriz & Virgílio, alvo de desagrado quase geral, ganhou epítetos como “pretensioso” e “mixórdia”. Resumindo: para a maioria dos comentadores, Martel não conseguiu realizar seu intento de propor uma representação artística original, não-testemunhal e não-realista, para a questão da SHOAH, popularizada com o termo Holocausto, utilizando uma fábula com animais. Beatriz é uma mula e Virgílio, um macaco (mais especificamente, um bugio-labareda); ambos os nomes, como se sabe, remetem à Divina Comédia: são os guias de Dante pela cosmologia alegórica do poema. Não há dúvida de que os campos de extermínio nazistas eram espaços “dantescos”.
Henry, o protagonista, é um escritor que finaliza ao mesmo tempo dois manuscritos sobre o já exploradíssimo tema, um ficcional e outro ensaístico, planejando publicá-los num “flip book”, em que dois textos convivem no mesmo volume de forma invertida: “um livro com duas portas de entrada, mas sem nenhuma saída. O seu formato concretiza a noção de que o tema ali não tem solução, não tem qualquer quarta capa que possa clara e cabalmente dá-lo por encerrado”. Seus editores rejeitam a proposta e ele, abandonando a carreira literária, muda-se para uma metrópole genérica do mundo globalizado, onde estuda música, participa de um grupo de teatro amador, passeia com seu cão (há uma gata também, e os dois bichos terão um destino cruel). Sua esposa fica grávida.
Nesse ínterim, recebe pelo correio um fragmento da peça na qual Beatriz e Virgílio são protagonistas. Ao entrar em contato com o autor, descobre tratar-se de um taxidermista octogenário, rude e misterioso, que almeja terminar a obra, que conheceremos em fragmentos, e vai cada vez mais se afigurar uma alegoria da SHOAH (realizando o que Henry queria alcançar), evocada como “Horrores”, no vocabulário peculiar aos dois animais, os quais provisoriamente conseguiram sobreviver a eles, embora não saibam como prosseguir suas vidas, nem falar sobre suas experiências (num cenário que é uma camisa listrada; a peça tem como título Uma Camisa do Século XX)…
A meu ver, não há nada de mixórdia ou de pretensioso em Beatriz & Virgílio. O surpreendente e brilhante canadense é um caso raro, nos dias de hoje, de um autor que se propõe a enfrentar grandes questões, não compartimentando a ficção das chamadas “áreas do conhecimento”. E ele está certo: o cunho testemunhal que cercou a SHOAH fez dela um evento-tabu, que as pessoas protegem da representação artística (muitos, e Adorno foi um abre-alas nessa linha, consideram algo inexprimível e condenam quem tente fazê-lo), como se fosse algo único na história. Pondo as cartas na mesa: foi algo monstruoso, mas nem único nem mesmo o pior. Muito próximo cronologicamente podemos localizar evento igualmente inconcebível: as bombas nucleares norte-americanas, que dizimaram civis inocentes em Hiroshima e Nagasaki. E vários exemplos, inclusive do noticiário recente (o próprio povo judeu, enquanto cidadãos do criminoso estado de Israel, em sua ação injustificável na Palestina, parece não ter aprendido a advertência que a SHOAH deveria representar para a humanidade), podem ser colhidos no tocante à determinação em causar sofrimento sistemático a populações inteiras devido a premissas políticas, étnicas ou econômicas.
Por outro lado, eu diria que a ideia a de abordar o tema sob o ângulo da fábula com bichos (sem falar na dantesca loja do taxidermista) é extremamente necessária e urgente, uma vez que nós, humanos, continuamos a atormentar, torturar e extinguir os animais deste planeta, mesmo quando não há necessidade de sobrevivência envolvida (em safáris, rodeios, touradas, tráficos diversos). Aliás, o vulgarizado termo Holocausto é sumamente irônico, pois alude ao infame costume de sacrificar animais ao longo de toda a tradição judaica (agora eu me pergunto: que tipo de Deus gostaria desse tipo de oferenda?), embora prática assaz divulgada também em outras tradições, não menos bestiais.
O ponto fraco de Beatriz & Virgílio é justamente a peça: enquanto todos os outros ingredientes da narrativa são explorados com feliz acuidade, além de uma concisão muito bem-vinda (o único defeito de A Vida de Pi era ser longo em demasia), como o cotidiano de Henry, seu fascínio com a loja de animais empalhados, a estranha colaboração entre ele e o taxidermista, e apesar de alguns momentos poderosos (as lancinantes cenas de tortura e execução, por exemplo), ela nunca a chega a ser muito interessante como fábula (ao contrário do relato de Pi), atropelada pela sua “moral”, pela mensagem imediatamente decodificada. Em compensação, são arrepiantes as Brincadeiras para Gustav (uma das quais transcrevi em epígrafe) que encerram um livro que, se não é “gostável” como o anterior, ao ser fechado (e sem ser um “flip book”), ninguém consegue dá-lo como realmente encerrado. Todas as questões ficam martelando a nossa cabeça. Não há “moral” que dê conta dessa fábula.
TRECHO ESCOLHIDO:
“O sujeito se levantou da cadeira e foi até a pia. Os cacos de vidro faziam craque, craque sob os seus pés. De uma prateleira embaixo de uma das bancadas, tirou uma vassoura e uma pá. Varreu o chão todo. Depois, apanhou umas luvas de borracha e as calçou. Debruçou-se na pia. O silêncio não lhe pesava nada. Henry ficou observando aquele homem e, minutos depois, o viu sob nova luz. Era um velho. Um velho encurvado diante de uma pia, trabalhando. Teria mulher, filhos? Não havia nenhuma aliança nos seus dedos, mas isso podia ser por causa do seu tipo de trabalho. Seria viúvo? Henry fitou o seu perfil. O que haveria por baixo daquela impassibilidade: Solidão? Preocupação? Ambição frustrada?
O taxidermista se aprumou. O esqueleto do coelho estava nas suas mãos enormes. Era uma peça única, com cada osso ainda ligado ao vizinho; um objeto branquíssimo que parecia pequeno e frágil. Ele o virou, examinando-o com todo cuidado. Pareia até que estava segurando um bebê bem pequeno.
Um homem de uma só história, um Lampedusa às voltas com o seu Leopardo, pensou Henry. Bloqueio criativo não é brincadeira, a não ser talvez para aqueles espíritos sem imaginação, que nem sequer tentaram pôr uma marca pessoal no que fazem. Não é apenas um esforço particular, um trabalho, que é negado, é todo o nosso ser. É a morte de um pequeno deus dentro de nós, uma parte que achávamos que devia ser imortal. Quando estamos enfrentando um bloqueio criativo, tudo o que nos resta—Henry olhou a oficina ao seu redor–tudo o que nos resta são peles mortas.
O taxidermista abriu a torneira e enxaguou o esqueleto num filete de água. Voltou a sacudi-lo e o pôs na bancada perto da pia.
__ Por que um macaco e uma mula? O senhor me contou como conseguiu esses dois aqui—indagou Henry, estendendo a mão e tocando a mula. Ficou espantado ao sentir aquele pelo tão flexível e lanoso—Mas por que esses animais em especial para a sua história?
__ Porque acredita-se que macacos são espertos e ágeis, e que as mulas são teimosas e trabalhadoras. Estas são as características de que os animais precisam para sobreviver. Elas os tornam maleáveis e criativos, capazes de se adaptar às alterações das condições.”
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https://armonte.wordpress.com/2012/12/13/leituras-em-espelho-max-e-os-felinos-e-vida-de-pi/