(resenha publicada em A TRIBUNA em 22 de novembro de 1994)
A certa altura de Seis propostas para o próximo milênio, de Italo Calvino (1923-1985), na conferência sobre a rapidez, o grande escritor italiano discute a complementaridade entre dois seres mitológicos, ambos filhos de Júpiter: Mercúrio e Vulcano, o primeiro representando a sintonia com o mundo, a participação no coletivo; e o segundo representando a focalização, isto é, a concentração em si mesmo.
Essa dupla disposição ajuda a entender outros dois maravilhosos livros de Calvino, os quais, publicados em épocas diversas, são bem similares: Marcovaldo ou As estações na cidade, de 1963 (que, aliás, foi lançado na Itália como obra juvenil!), e Palomar, de 1983, respectivamente traduzidos por Nilson Moulin e Ivo Barroso.
Seus protagonistas vivem a dicotomia sintonia-focalização de maneira mais complexa: ambos procuram focalizar sua atenção para conseguir uma sintonia com um mundo invisível (talvez a verdadeira “natureza”, esta palavra que é um saco de gatos, onde se coloca de tudo um pouco), esmagado pelas aparências, um mundo que pulsa sob as convenções, o espaço urbano e a destruição causada pela ação humana.
Marcovaldo é um livro engraçadíssimo. E italianíssimo, se me permitem a tautologia. Lembra filmes de Vittorio de Sica, de Pasolini, de Fellini, Monicelli, Wertmüller ou Scola, ou seja, tem aquela mágica alquimia entre a crítica social, o patético e o ridículo, o cômico que beira a chanchada e uma imponderável poesia, que nos faz amar Umberto D, Cabíria, Brancaleone, os vitteloni, o quinteto irreverente, Mimi, o metalúrgico, os feios, sujos e malvados, e Mamma Roma. E amar Marcovaldo, esse carregador italiano, miserável, cheio de filhos, que procura uma impensável e impossível vida natural na cidade.O que engendra episódios deliciosos como o que apresenta o conselho de um médico da Previdência para o tratamento de reumatismo: areia. A única areia limpa que Marcovaldo descobre está numa barcaça. Ele pede aos filhos que o cubram para a efetivação do “tratamento” e eles afastam-se para brincar. A barcaça desamarra-se e lá vai nosso herói soterrado rio abaixo. Há ainda o episódio do coelho que ele rouba do hospital e que (como cobaia que era) está contaminado por uma doença religiosa. Ou os cogumelos que nosso ingenuamente ladino carregador descobre, maravilhado, num canteiro e os quais vai colher, com toda a família, indo todos parar no pronto-socorro, intoxicados.
Palomar não é tão anedótico nem apresenta uma ternura tão explícita pelo seu protagonista, mas o senhor Palomar é no fundo um Marcovaldo mais culto, mais abstraído das contingências humanas (segue um pouco uma tradição intelectal em que a figura mais ilustre é M.Teste, embora a criação de Paul Valéry este jamais tivesse o calor humano e a simpatia do personagem do autor italiano), porque o livro é mais abertamente filosófico, destilando as muitas experiências de Calvino entre a ficção e o ensaio.
O senhor Palomar focaliza um ponto no mundo para tentar limpar, depurar sua percepção: uma única onda na praia, o seio nu de uma moça, as constelações no céu, o vôo migratório dos estorninhos, sem nenhuma noção preconcebida. Parece insípido? Experimente, leitor, para ver o que é estilo, o que é humor refinado. Se trinta anos separam o carregador Marcovaldo do senhor Palomar, o mesmo homem brilhante os criou, e uma das delícias de Palomar é a confusão que ele cria à sua volta com suas “pesquisas”.
Com esses dois livros belíssimos, a Companhia das Letras continua a publicação da obra de um escritor verdadeiramente fascinante, como já provaram O barão nas árvores, O cavaleiro inexistente, As cidades invisíveis, O castelo dos destinos cruzados ou a sua obra-prima suprema (publicada pela Nova Fronteira numa tradução esplêndida de Margarida Salomão, que me apresentou ao universo calviniano), Se um viajante numa noite de inverno[1]. Sempre com um mistura da qual podemos tirar a fórmula nas Seis propostas:
“Assim como a melancolia é a tristeza que se tornou leve, o humor é o cômico que perdeu peso corpóreo… e põe em dúvida o eu e o mundo, com toda a rede de relações que os constituem”.
ANEXOS
Trecho de Marcovaldo: a estação é o inverno e o capítulo se chama “O bosque na rodovia”. Os filhos de Marcovaldo, tiritando de frio, após a leitura de um livro que falava de um menino, filho de um lenhador, que saía com o machado para cortar lenha no bosque, resolvem sair à procura de um bosque para encontrar a madeira que os aqueceria a todos:
“Nas margens da rodovia, os meninos viram o bosque: uma densa vegetação de árvores estranhas cobria a vista da planície. Tinham os troncos finos, finos, retos ou oblíquos; e copas achatadas e amplas, com formas as mais estranhas e as mais estranhas cores, quando um carro passou e iluminou-as com os faróis. Ramos em forma de dentifrício, de rosto, de queijo, de mão, de navalha, de garrafa, de vaca, de pneu, constelados por folhagens de letras do alfabeto.
__ Viva!- disse Michelino—Isto é um bosque!
E os irmãos observavam encantados a lua despontar entre aquelas sombras estranhas.
__ Como é bonito…
Michelino lembrou-lhes logo o objeivo pelo qual tinham ido até ali: a lenha. Assim, abateram uma arvorezinha em forma de flor de prímula amarela, cortaram-na em pedaços e levaram-na para casa (…)
Naquela noite, fora denunciado o fato de que na rodovia um bando de moleques andava derrubando os cartazes de publicidade.”
Trecho de Palomar:
“O senhor Palomar decide que doravante procederá como se estivesse morto, para ver como o mundo se comporta sem ele. Em pouco tempo se dá conta de que entre ele e o mundo as coisas não estão mais como antes; se antes achavam que esperavam algo um do outro,ele e o mundo, agora já nem se record do que haviam de esperar, de bom ou de mau, enm por que essa espera o mantinha em perpétua agitação ansiosa.
O senhor Palomar deveria conseqüentemente experimenta uma sensação de alívio, não tendo mais que indagar o que o mundo lhe prepara, e deveria também perceber o alívio do mundo por não ter mais que se preocupar com ele. Mas até mesmo a expectativa de saborear essa calma é o bastante para deixar o senhor Palomar ansioso.
Em suma, estar morto é menos fácil do que se poderia pensar. Em primeiro lugar, não se deve confundir estar morto com não existir, condição que ocupa também a interminável extensão de tempo que precede ao nascimento, aparentemente simétrica com a também ilimitada que se segue à morte. Na verdade, antes de nascer fazíamos parte das infinitas possibilidades de vida que poderiam ou não realizar-se, enquanto mortos já não podemos nos realizar nem no passado…nem no futuro…
(…) Antes, por mundo ele entendia o mundo mais ele; agora se trata dele mais o mundo sem ele.
O mundo sem ele significaria para ele o fim da ansiedade?”
[1] A companhia das Letras depois lançou sua própria tradução de Se um viajante numa noite de inverno..