

“Hugo sorriu e Isabelle, então, deu corda no ratinho. Ficaram olhando ele deslizar pelo balcão.
Hugo pensou na descrição que seu pai fizera do autômato.
__ Você já parou pra pensar que todas as máquinas são feitas por algum motivo? Elas são feitas pra fazer a gente rir, como esse ratinho, ou indicar a hora, como os relógios, ou para maravilhar a gente, como o autômato. Deve ser por isso que qualquer máquina quebrada sempre me deixa muito triste, porque ela não pode cumprir o seu destino.
Isabelle pegou o ratinho, deu corda novamente e pôs de volta no balcão.
__ Vai ver que com as pessoas é a mesma coisa—continuou Hugo.— você perder a sua motivação… é como se estivesse quebrado.
–Como tio Georges?
__ Pode ser… talvez a gente possa consertar ele.”
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 06 de março de 2012)
Entre as muitas qualidades de HUGO, o filme que deveria ter vencido o Oscar, a mais óbvia é o fato de ser uma festa para os olhos e os ouvidos. Quem poderá esquecer seus cenários, sua fotografia, seus figurinos, sua trilha sonora, enfim, toda a sua gama de efeitos visuais e sonoros, orquestrados por um inspirado Martin Scorsese, como há muito não se via[1], mesmo porque a serviço de uma fábula profunda e dolorosa, ao contrário da fácil nostalgia de O artista (não que este não seja um filme memorável, mas sua paródia da transição do cinema mudo para o falado é mais calcada na brejeirice, indubitavelmente encantadora, do que numa reflexão verdadeira sobre o cinema)?
Como se sabe, Hugo Cabret é um órfão que perdeu o pai relojoeiro num incêndio, e que ficou sob a “tutela”, se é que se pode chamar assim (situação tipicamente dickensiniana) do tio alcoólatra, que o usa para ajustar os inúmeros relógios da central de trens de Paris; com o sumiço do tio, Hugo é obrigado a roubar alimentos na estação. Tem 12 anos, estamos em 1931, e ele possui um caderno com desenhos detalhados de mecanismos e peças para um autômato que o pai tentara consertar no museu onde fazia um bico. Hugo acredita que, se terminar o trabalho do pai, haverá uma mensagem para ele, e além de comida, rouba peças de uma das lojas da estação, mantida por um amargo comerciante. Um dia, ele é surpreendido pelo velho, que toma dele o caderno…

O livro A invenção de Hugo Cabret (The invention of Hugo Cabret, EUA-2007)—cujo título foi aproveitado para o filme no Brasil—foi planejado igualmente pelo autor, Brian Selznick, para ser marcante como experiência visual: o texto de repente se interrompe e páginas e páginas de ilustrações assumem e adiantam a narrativa (afinal, trata-se de uma história sobre o primeiro gênio do espetáculo cinematográfico, Georges Méliès[2]). Desafortunadamente, tal peculiaridade exuberante transformou-se numa das máquinas quebradas lastimadas pelo seu protagonista Hugo, na citação que abre esta resenha: sabotado na edição brasileira (pela SM) temos em mãos um livro volumoso e ilustrações deformadas pela divisão da página e pelo formato inadequado. Para o jovem leitor, seu legítimo destinatário, então, é uma frustração: mal dá para apreciar detalhes, o que fica mais gritante ainda quando são reproduzidas cenas dos filmes de Méliès (extraordinariamente aproveitadas no filme de Scorsese, e que têm aquela característica, entre kitsch e visionária, de misturar elementos de music hall vaudevillesco, mulheres que parecem coristas, com quadros à Bosch ou experiências vanguardistas típicas da Belle Époque). Malgrado o desleixo dos editores, a tradução (de Marcos Bagno) é muito boa.
A leitura desse grande romance juvenil me fez admirar o trabalho do roteirista John Logan (que também deveria ter levado o Oscar): ele fez modificações importantes, que, se de um lado tiraram a aspereza bem marcada do original (o relacionamento entre as crianças, por exemplo[3]), por outro deram uma qualidade especificamente cênica à história: seria difícil imaginar Isabelle, a menina que ajuda Hugo (e que foi adotada pelo casal Méliès) pra lá e pra cá de muletas, como certa parte do romance de Selznick exigiria, assim como o pequeno herói com uma mão quase inválida. No entanto, aproveitando a deixa, ele aumentou o personagem do inspetor da estação, transferindo para ele o problema do “mau funcionamento” físico: ele tem uma perna mecânica, que arrasta penosamente pela estação de trem em busca de “gente fora do lugar”. No fundo, ele mesmo está fora dos eixos, um desvalido que não se solidariza com outros desvalidos (apesar dos exageros cansativos do histrionismo de Sacha Baron Cohen, que já comprometeram o humor de Borat, Brüno e o seriado Da Ali G show—pois ele nunca sabe onde parar—seu personagem foi um achado do roteiro), um homem em quem algo se quebrou, como aconteceu ao próprio Méliès, o gênio não-reconhecido que teimosamente se abraça ao esquecimento e à obscuridade, como se eles o protegessem da dor (“se você perde a motivação, é como se estivesse quebrado”) e até mesmo ao jovem Hugo; e, assim, todos se irmanam ao autômato que o órfão tenta desesperadamente consertar para que lhe seja transmitida uma mensagem que o faça encaixar-se no mecanismo do relógio do mundo.


Pode-se dizer que o belo filme de Scorsese seria praticamente irretocável, não fosse seu calcanhar-de-aquiles: o casal de atores mirins—Asa Butterfield & Chloe Moretz—mais sem empatia, mais sem graça, mais destituídos de encanto que já se viu numa produção desse porte; ele, parece um genérico de Elijah Wood, o Frodo de O senhor dos anéis que também começou como ator mirim; ela, cheia de caras e bocas que querem passar uma idéia de deslumbramento com o cinema e de encanto com os mistérios do mundo.
Quem lê o romance e se apaixona pela dupla Hugo-Isabelle, que parecem tão reais, não pode deixar de ficar pasmo com essa dupla fraquinha (o menino que interpreta René Tabard, o admirador de Méliès engajado na preservação de seus filmes, e que evoca o momento da sua infância em que o grande mago do cinema lhe disse, quando ele visitou seu estúdio, que ali eram feitos os sonhos, é muito mais marcante em seus poucos minutos em cena do que eles durante duras horas). É claro que a força maior do filme vem da identificação de Scorsese com Méliès, através do traço que os une: o ânimo incansável de experimentar, de aperfeiçoar o ilusionismo, que leva um veterano e consagrado diretor a fazer um filme refinado e exigente em 3D. Ao invés de cortejar o público com sentimentalismo e histeria, como faria um Spielberg (não dá nem para imaginar o que seria Hugo na mão dele, depois do que fez com A.I.), Scorsese mostra um rigor admirável.



E, apesar da relojoaria um tanto defeituosa da sua versão brasileira, o romance de Brian Selznick é a prova de que a palavra escrita nunca se enfraquece diante do apelo visual. Pelo contrário, fica mais forte e ainda se adapta melhor ao sonho individual chamado imaginação do que a experiência visual.

[1] Com a colaboração habitual da notável Thelma Schoonmaker (dá para acreditar que a montagem de Hugo perdeu o Oscar para a de Os homens que não amavam as mulheres?).
Os trabalhos de Scorsese na última década foram muito decepcionantes; Gangues de Nova York, O aviador, Os infiltrados, A ilha do medo. O primeiro e o último são muito ruins, na minha opinião, os dois do meio têm coisas incríveis aliadas a maneirismos horrorosos e a uma rarefação do real em função do “cinema”. Hugo concentra suas qualidades, dribla os maneirismos e consegue criar uma “realidade cinematográfica” que evoca os melhores Scorsese, o de O touro indomável, O rei da comédia, Os bons companheiros, A última tentação de Cristo, para ficar nos mais belos.
[2] Aliás, o começo da narrativa é comandado pelas ilustrações e foi amplamente aproveitada na seqüência inicial do filme, que é de tirar o fôlego em 3D.
[3] No romance, Isabelle é menos “intelectual” e muito mais despachada, tanto que é ele quem abre fechaduras com grampos, ao contrário do filme, onde Hugo é que tem esse talento (há também um terceiro personagem, Etienne, que foi eliminado da versão cinematográfica, e que fornece a ligação entre os personagens da estação de trem e o mundo do cinema; acho, porém, que todas as modificações feitas para o filme de Scorsese foram muito felizes, apesar de um certo adocicamento da fábula, mais crua na visão de Selznick).


