MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

02/01/2018

LEITURAS QUE MARCARAM 2017: PRIMEIRA PARTE

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 02 de janeiro de 2018)

A minha lista de livros marcantes de 2017 segue o rastro do vácuo da ausência de Elvira Vigna.

Livro do ano: “As três mortes de Che Guevara”, Flávio Tavares, editora L&PM. Cinquenta anos após a morte do “ser mais completo da nossa época”, segundo Sartre, o fascínio de sua figura não esgota.

Além dele, destaco: “Sem Sistema”, de Andrea Catrópa, editora Patuá: de que universo paralelo e sulfúrico, Andréa Catrópa, trouxe suas histórias curtas, muitas vezes cores e tintas berrantes.

As Perguntas”, de Antônio Xerxenesky, editora Companhia das Letras: mistura com inteligência a incursão mística com uma rave, ou seja, o horizonte dos jovens urbanos, cínicos, que não acreditam em nada transcendente a não ser superficialmente.

Febre de Enxofre”, de Bruno Ribeiro, editora Penalux: príncipe da prosa sulfúrica, pornográfica e ultrajante, em seu primeiro romance.

Simpatia pelo Demônio”, de Bernardo Carvalho, editora Companhia das Letras: usando um personagem cobaia, um grande romance.

Como são cativantes os jardins de Berlim”, de Decio Zylbersztjan, editora Reformatório: textos brilhantes. O conto-título é uma obra-prima.

Naufrágio entre amigos”, de Eduardo Sabino, editora Patuá: primorosa coletânea mostrando o ressurgimento do amor à linguagem.

O mergulho”, de Juliana Diniz, editora Megamíni: como a escritora cearense consegue criar uma linguagem diáfana e tão robusta?

Em Conflito com a Lei”, de Lucas Verzola, editora Reformatório: o livro surpresa do ano, contundente e magnífico.

Fragmentos de um exílio voluntário”, de Lucio Autran, editora Bookess: Poesia.

Uma fuga perfeita é quase sem volta”, de Marcia Tiburi, editora Record: finalmente, a autora gaúcha acertou plenamente no romance, mostrando o retrocesso da ordem mundial.

Todo naufrágio é também um lugar de chegada”, de Marco Severo, editora Moinhos: Senti-me como um jurado do “The Voice”, girando a cadeira logo nas primeiras notas, descobrindo um autor para meu time de leituras prediletas.

O Indizível sentido do amor”, de Rosângela Vieira Rocha, editora Patuá: um dizível abalo no coração, um mergulho na dor.

(Continua na próxima semana).

 

06/11/2012

A relação amniótica entre vida e morte: ERA MEU ESSE ROSTO, de Marcia Tiburi

Dizer tudo numa frase, eis a coragem de quem escreve. Ameaçar dizer tudo nas frases seguintes, eis a covardia. O tédio produz documentos.   

Cada objeto tem uma filosofia, e eis o aparecimento dos gestos nos homens. O que surgiu primeiro, o objeto ou o movimento com que o seguras? Antes do verbo, as coisas ameaçavam uma linguagem que o silêncio antigo não poderia fazer. Apesar de tudo, o silêncio tem menos palavras que uma palavra.” (Gonçalo M. Tavares, Biblioteca)

“Optei pelo mundo, pois todos temos que operar pela fábula, que comprar outras laranjas na feira, ventiladores para fazer vento, lona para o circo armado em redemoinhos de memória e tédio, uma porta para o lugar que desejamos  fazer esconderijo e evitar o rodeio dos ventos. Há de tudo por aqui. Tudo para se criar o ambiente onde ocultar as coisas e depois buscar a coisa oculta como quem salva a alma do fundo de um copo raso. Escombros, tapumes, muros, lençóis, cortinas, que haja o oculto mundo, o oculto da vida, que haja o por trás da pálpebra como um rio que vela a si mesmo: nada em mim, que está oculto, que eu já não tenha visto, pois não há oculto naquilo que se diz, nem há oculto nas palavras presas em convenções. Engana-se e lesa os demais aquele que crê no que está escondido. O melhor a fazer com o que se oculta é fingir que se não o vê.   

Pois ele, mesmo existindo sob todos os sóis, luas e ramagens d´árvores, não há.  

O oculto, se existisse, seria da cor do chá que resta há dias na xícara, o pelo do gato sobre a poltrona suja, as flores apodrecidas dentro do copo de vidro, o resto do pote de barro em cacos no chão. Algo que lembra o que sobrevive fora de toda percepção. No fundo, a tautologia, mas há quem negue que ela beba leite.” (Marcia Tiburi, Magnólia)

(a resenha abaixo foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 06 de novembro de 2012)

Talvez devido à sua constante presença na mídia (incluindo a televisiva), detecta-se certa desconfiança e má vontade com relação à figura (bela, aliás) de Marcia Tiburi. Eu mesmo, após assistir a suas palestras filosóficas, e por causa delas embarcar com entusiasmo na leitura de suas obras na área (Uma outra história da razão, Filosofia cinza, Crítica da razão e Mimesis no pensamento de Theodor W.Adorno e Metamorfoses do conceito, os dois últimos títulos centrados no trabalho do grande pensador alemão da Escola de Frankfurt), confesso minha dificuldade em chegar a uma conclusão mais definida a respeito de Magnólia (2005) e A mulher de costas (2006), componentes de uma Trilogia íntima (ainda não encarei as 620 páginas do último volume,  O manto, de 2009). Tínhamos ali uma mina de ouro de percepção, imaginação estilística e de audácia formal, mesmo assim, ao longo de uma leitura árdua— e árida, por vezes— sentíamos que algo não funcionava. Alguns acharam a trilogia pretensiosa, outros uma maravilha, e eu fiquei no meio do caminho, perplexo.

Por esse motivo, e por tratar da velha  história em que um adulto lida com fantasmas da infância, e também porque a autora gaúcha não para de lançar títulos,  Era meu esse rosto, seu novo romance, já saiu gerando desconforto e vontade de fugir da raia. Se ela continuasse no caminho dos anteriores, o resultado podia ser um experimentalismo de arrogante ilegibilidade (a não ser para “iniciados” —voltarei  a isso); se ela apresentasse um texto mais convencional e linear, daria munição aos detratores de seu “estrelismo midiático”.

Felizmente, nenhuma das duas direções confirmou-se. Era meu esse rosto é um romance difícil, a escrita é exigente, mas repõe na ficção de Tiburi algo que até então ali faltara, que é justamente o envolvimento do leitor com o relato, o qual alterna dois planos: um, em capítulos numerados, apresenta o passado (melhor dizendo, a memória do passado) da família do narrador, e é extremante bem-construído, porque como se passa num tempo primordial (aquele que está contando “situa”, dentro do possível, as coordenadas da sua recôndita infância em V, no Rio Grande do Sul, num ambiente rural carregado ainda de arcaísmo), onde sua identidade se mistura aos seus outros parentes, assumindo como fato o que é fabulação, metáfora, símbolo,  temos uma apreensão muito nítida do chamado “tempo psicológico”, e que nunca é individual, é um amálgama da experiência do clã.

Creio que nos últimos anos, só os maiores romances de António Lobo Antunes (Eu hei-de amar uma pedra, Arquipélago da insônia) apresentaram de forma tão rigorosa essa concatenação do que foi vivido e imaginado pelo narrador-menino, pelos seus avós, pelos seus pais, pelos seus tios. Não é terreno seguro, porque é aquele em que o princípio do desejo colide com o princípio da realidade, e tudo é mediado pelos afetos e pulsões. Filtrados, aliás, por belas formulações:

“Tenho sete anos, serão seis?  Nada me é revelado. Muito menos quem eu sou. É hora de secar o rosto e abraçar minha avó que morre a esperar meu tio morto. É ele quem a mata de cansaço. Ou será desespero, ou será tristeza? São perguntas que me faço sabendo que nunca aprenderei o nome correto dos afetos.”

O outro plano, sinalizado por parênteses, mostra o narrador adulto viajando para a turística V, na Itália, perseguindo o ponto de origem, o ponto convergente das duas cidades com a mesma inicial, que iniciara o desenrolar do novelo que acompanhamos nos capítulos alternados. É essa a parte decepcionante de Era meu esse rosto. Sentimos que toda a riqueza de apreensões e intuições sobre o mundo contemporâneo que a autora de Olho de Vidro sempre nos propõe como pensadora está ali, latente, mas tudo fica truncado, avaro, quase preguiçoso. Nem satisfaz pelo lado da viagem interior do protagonista nem pelo que mostra do mundo além da V da infância à sua volta. Não funciona muito a técnica curto-circuitada que ela adota, embora haja lampejos narrativos muito bonitos, aqui e ali, como a visita ao cemitério que vai se alagando.

Os romances de Marcia Tiburi apresentam um cuidado visual sempre perceptível. Era meu esse rosto não é diferente, com sua lírica e ao mesmo tempo inquietante capa. Mas esse cuidado, o fazer do livro um evento, pode ter seu lado negativo:  não sei até que ponto ela confia nos leitores que pode conquistar com sua ficção, pois é desagradável, desde Magnólia, ver cada romance seu tutelado por orelhas triunfalistas de amigos ou “iniciados” que parecem desafiar os neófitos a “não” gostar do que lerão. Naquele que já é seu quarto exercício no gênero, colocar como guardiães  do Templo não só uma orelha desse tipo, como ainda um longo e  quase hagiográfico prefácio de Regina Zilberman taxando-a de “um rosto para a literatura brasileira contemporânea” (e quase nos dizendo que é “o rosto”) é colocar o carro adiante dos bois, é pular etapas, intimidando o leitor e impondo um suposto “patamar” em que o romance e a autora já estivessem. Eles não precisavam disso (espero), e perdem com tais  expedientes. Ou ninguém mais confia nos prazeres da descoberta?

TRECHOS ESCOLHIDOS

“Tenho vergonha de dizer, mas eu gostava mesmo era da morte. Percebo logo, logo que acordo para o mundo, que outros dele cedem. Chego na casa do vizinho com a cortina de veludo negro e cordões dourados à porta, tenho menos de quatro anos e ninguém sabe que quero ver o caixão onde deitara o homem que ontem mesmo passou caminhando diante de nossa casa. Aproximo-me devagar, ninguém me olha, ponho-me na ponta dos pés ainda insuficientes para o ângulo que busco (…) Pouco tempo depois, é Quarta-Feira de Cinzas e estou na casa de uma velha morta, penso que o carnaval precede a morte, e que por sorte são os velhos que se vão e que as crianças são a exceção à regra. Dias depois, é Páscoa na casa de outra mulher deitada sobre uma mesa baixa para a qual tenho medo de olhar. Posso alcançá-la com minhas mãos caso queira, mas não se toca no morto dos outros. Sinto pena como das galinhas que deixaram mortas na cozinha (…) Meço a beleza em dobras, penso que a morte é um arranjo entre o liso e o drapeado…”

“Minha avó é moça para ser uma avó morta. O tempo antecipou-se comendo-lhe as partes essenciais do corpo. Descubro assim que nem todos os quadros inspirariam um pintor. Que a vida que serve de modelo não passa do que sob uma câmera escura de qualidade inferior é efeito do desentendimento. O mesmo que salva enquanto mata. Resta que, entre a vida e a morte, não há mais do que um botão a acionar.    Dores misturam-se na cornucópia do avental que tem nos braços avisando sobre o sentido da vida no romance em que os tempos justapostos surgem como brancas folhas de papel nas quais é impossível escrever.    Por isso, fotografo.     Permaneço pronto a fechar o sono alheio de uma cana de vidro em que a transparência da dor é apenas ocultamento de algo não vivido.”

“Eis que dona Onesta vem com seus cavalos do outro mundo atravessando a geada que enrijece umidamente toda a natureza, a ajudar com o parto dentro de casa. Fora, a natureza encontra suas próprias soluções, sangue e leite contra o frio de cada dia (…) Na cabeça de dona Onesta os cabelos espessos de fios brancos presos numa trança tão imensa como os cordões umbilicais que costuma cortar, séria como um padre a rezar missa, concentra-se em seus próprios métodos (…) Mãos enluvadas, quieta como um porteiro que espera a vez de cada um (…)   Minha avó a experimentar as mesmas dores, meu avô na varanda da direita olhando mais uma vez o céu escuro, a contar estrelas em torno de uma lua malformada, a água fervendo sobre o fogão de lenha, dona Onesta a tomar café num copo, dispensando as xícaras de porcelana por simples desapego, minha avó segurando o grito, meu tio morto quando ainda vivo a jogar trilha sozinho á mesa da cozinha, meu pai dentro do berço dormindo antes de virar sombra, minha avó num gemido fundo, meu tio morto ainda vivo a tapar os ouvidos com mãos velozes de menino acostumado a caçar passarinho, meu avô meditando no nada na sua língua sem que ninguém o entenda, meu pai ressonando no berço com uma camisa de algodão que se usava para vestir os anjos em dias de procissão (…)    (…) o ser semelhante a um rato jorra por inteiro vindo parar na mão da Dona Onesta que, limpando o pequeno nariz do muco amniótico que o protege, tornando-se desnecessário em segundos, abre a boca como quem investiga o funcionamento de um objeto pelo orifício, minha avó a fingir que já não dói, com a cabeça para trás (…) acolhe o próprio corpo em si sem mover-se (…) dona Onesta a limpar com um pano úmido o líquido grosso dos ouvidos no mínimo corpo que veio a ser, a cortar o fio que o liga ao corpo de sua mãe, a limpar o sangue que empapa o cabelo, a pele enrugada no roxo das petúnias, as mãos crispadas do pequeno ser que vem ao mundo abrindo-se a pedir socorro, a pedir amparo, a pedir perdão, a pedir para morrer.”

“…acabei por encontrar o número que eu buscava pintado em preto sobre uma caixa de correspondência enferrujada do lado externo da parede de uma construção antiga a ocultar atrás de si um corredor mínimo e escuro no qual se entrava por um pórtico na forma de um arco que ia dar em um pátio pequeno, não tão pequeno que não pudesse abrigar uma acalorada colônia de pombos que entravam e saíam do pequeno pombal de madeira pendurado ao galho de uma árvore. Pelas folhas restantes nos galhos secos, suspeito fosse uma nespereira. Olhando bem podiam ver-se as pombas chocando seus ovos enquanto seus parceiros de comuna atravessavam os pequenos buracos em que mal cabiam nem sempre trazendo alguma coisa no bico (…)   Sob o pombal, o chão forrado de tijolos avermelhados, em cujos vãos gramíneas mal nascidas eram imediatamente devoradas pelas aves, estendia-se até as paredes ocultas sob o limo. Uma pequena calçada de mármore conduzia do centro do adro à única porta que, destoando do cenário, era novíssima. Floreiras ressequidas e tampões de madeira fechados nas nove janelas deram-se a sensação tão desiludida quanto adorável naquele momento de que minha viagem tinha sido em vão e de que, àquela altura, tentar tornara-se mais do que nunca um verbo meramente elegante para fazer frente á vitória desde sempre dada dos pombos sobre as possibilidades da vida.” “Perco-me fazendo imagens do desolamento e do esforço em evitar a ruína que faz do cemitério uma cidade e, mais adiante, da cidade um cemitério (…) um pensamento primitivo que me ataca como a água que encharca o chão de terra morbidamente fértil onde piso (…) a chuva intensifica-se de repente. A água tapa toda a terra em pouco tempo, procuro lajes em que pisar para economizar meus sapatos. A água cai do céu como o rompimento de uma barragem.     São poucos minutos e preciso subir em um túmulo que, suponho, seja mais seguro do que o muro que avisto a metros sem chance de nele subir a não ser pisando sobre os mortos (…)    Sobre uma tumba alta como sobre um carro nos alagamentos nas grandes vias em SP a paisagem assume outra natureza. Somente deste ângulo percebe-se que a relação entre a vida e a morte é amniótica.    Se não estivesse munido com a minha máquina eu me sentiria o mais pobre dos mortos, ilhado entre mortos em uma ilha ela mesma morta, sinto-me, no entanto, mais vivo do que nunca, mesmo sem saber que tipo de perigo é este em que estou lançado, somente deste ângulo é que consigo perceber que o colorido das flores se deve ao fato de que são de plástico, e que alguma coisa aqui, ao contrário das flores, não morreu jamais.”  

 

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