Nota (11 de abril de 2013)
O leitor tem aqui nest post a primeira resenha que escrevi para A TRIBUNA, lá se vão 20 anos. José Carlos Silvares então na chefia da redação havia me pedido um texto-amostra, comentando alguma leitura recente. Como o livro de Auster fora publicado no ano anterior, e eu o tinha lido há poucos meses, escrevi sobre ele, nem imaginando que já seria publicado. Relendo-o hoje me irrita principalmente o fato de parecer mais um press release ou uma orelha encomiástica do que algo crítico, um texto de opinião (e como ignoro ostensivamente o lado político do romance, enfatizando de forma tão clichê o lado existencial, ou seja, o plano meramente individual), e além do mais é “redondinho” demais, muito certinho. Perdoem o rapaz de 27 anos. De lá para cá, não mudou em nada minha admiração pelo autor (com uma pequena baixa por um par de anos) e minha predileção pelo livro: ainda considero A MÚSICA DO ACASO sua obra-prima.
O ACASO QUE SE TORNA DESTINO
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 11 de abril de 1993)
Jim Nashe é um bombeiro que recebe uma herança inesperada e resolve gastá-la, saindo pelas estradas, sem rumo. Quando o capital está prestes a acabar, encontra um jogador profissional, Jack Pozzi, e lhe propõe sociedade numa partida de pôquer com dois milionários excêntricos. Nashe e Pozzi perdem e são obrigados a saldar a dívida na construção de um muro dentro da propriedade dos milionários (que viajam). Embora nada fique explícito, eles se sentem prisioneiros e vigiados, o que é confirmado no dia em que Pozzi tenta fugir…
Assim resumido (em parte), o enredo de A MÚSICA DO ACASO (The Music of Chance, 1990, em tradução de Marcelo Dias Almada) dá a impressão de pertencer à linha da literatura que, neste século, e seguindo as pegadas do grande Franz Kafka, parece querer demonstrar que o homem ou está à mercê de potências indiferentes e cruéis ou é fruto do acaso, produto gratuito e quase risível. Afinal, o protagonista —que acreditava no acaso como uma força que leva a vida para a frente —descobre que é também um sinal das irremediáveis forças coercitivas que nos regem.
Mas o romance de Paul Auster, possivelmente o melhor autor norte-americano revelado nos últimos anos (e que parece ter público aqui no Brasil porque é o quarto livro seu que a editora Best Seller lança, entre eles o também contundente A trilogia de Nova York), tem o maravilhoso senso do concreto e do cotidiano ligados à fabulação que parece ser um dom da ficção dos EUA. Seja para comentar a vida de Nashe pré-herança, seja para narrar sua errância ao acaso das estradas, seja para contar seu encontro fortuito com Pozzi e depois a rotina dos dois como pedreiros de uma muralha absurda, capricho dos “donos do mundo”, Auster jamais perde de vista a verossimilhança da história, seu pé no real.
Não há espaço nesse romance para cenários bizarros ou atemporais ou para situações de teatro do absurdo, como fizeram tantos seguidores de Kafka para mostrar a “condição humana”. Ainda mais pertinentemente (o que já é uma proeza) do que Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser, Auster efetua uma cabal equação do que é “fortuito (porque fruto do acaso) e do que é “irrevogável” (porque não pode ser alterado), de uma maneira tão parecida com um romance de suspense que é impossível contar detalhes, sob pena de estragar as várias surpresas e emoções do leitor (e difícil, também, é largar a leitura).
Só não se pode deixar de destacar uma grande personagem secundária, o capataz Murks, que é igualmente uma espécie de carcereiro e carrasco para Nashe e Pozzi, mas que se afeiçoa ao primeiro, como se este fosse um amigo: [Nashe]”queria apenas odiar Murks, transformá-lo em algo abaixo do humano com a simples força de seu ódio; mas como poderia conseguir isso se o homem não se comportava como monstro? Murks começou a aparecer no trabalho com pequenos presentes (…) e, no trabalho, era no mínimo indulgente, sempre aconselhando Nashe a ir mais devagar, a não exigir tanto de si próprio.”
Ou será que ele não é nada disso, nem capataz nem carcereiro nem carrasco nem amigo, mas tão somente um comparsa nessa trajetória pelo “hasard” que é qualquer vida? E o leitor, desconcertado, se dá conta de como, há tempos, não aparecia um romance tão profundo, tão apaixonante e sobretudo tão devorável.
VER TAMBÉM NO BLOG:
https://armonte.wordpress.com/2013/03/03/a-austeridade-do-acaso-quatro-resenhas-sobre-paul-auster/
https://armonte.wordpress.com/2011/10/12/o-nada-e-a-imagem-o-livro-das-ilusoes-de-paul-auster/
https://armonte.wordpress.com/2011/10/13/o-palco-do-acaso-a-trilogia-de-nova-york-de-paul-auster/
https://armonte.wordpress.com/2011/09/11/o-outono-do-imperio-americano-segundo-paul-auster/