“o barulho de existir:
um cão dentro
de mim
atravesso
como a um pátio
o barulho de existir” (Carlos Nejar)
No início da década de 1980, a Nova Fronteira —que vivia então um grande momento editorial— colocou à disposição do leitor brasileiro Morte a Crédito (1936). Fui um daqueles que, tendo ouvido falar vagamente de Louis-Ferdinand Céline, ficaram impactados por esse romance genial, por essa história da infância, adolescência e vida adulta como médico suburbana de um narrador irascível, por um estilo raivoso e peculiar. Era a descoberta de um escritor que, na ficção francesa do século XX, só encontrava páreo em Proust e Camus.
A literatura francesa só podia aceitar Céline no seu cânone com má consciência e constrangimento: era um talento do qual não podia regozijar-se, como é possível à literatura inglesa, com Joyce, a norte-americana, com Faulkner, ou a brasileira, com Guimarães Rosa. A biografia de Céline revela uma mentalidade pequeno-burguesa desprezível, histérica, ressentida, um homem que escreveu panfletos colaboracionistas, incentivando o massacre de judeus pelos nazistas.
Essa desagradável moldura biográfica ainda não fora evidenciada há 75 anos quando da publicação de sua primeira e mais famosa obra, Viagem ao fim da noite, que só foi traduzida no Brasil (aliás, brilhantemente) em 1994, no centenário (pouco comemorado) de Céline. Nas suas memórias, Simone de Beauvoir sublinhou a importância do seu aparecimento em 1932: “… o livro francês que se nos afigurou mais importante nesse ano foi Le Voyage au bout de La nuit. Sabíamos de cor uma porção de trechos. Seu anarquismo parecia-nos perto do nosso. Ele atacava a guerra, o colonialismo, a mediocridade, os lugares-comuns, a sociedade, em um estilo e num tom que nos encantavam; Céline forjara um instrumento novo; uma escrita tão viva quanto a palavra. Que alívio, depois das frases marmóreas de Gide, Alain, Valéry”.
Viagem ao fim da noite é também narrada em primeira pessoa: Bardamu alista-se na Primeira Guerra e acaba entre os combatentes com problemas mentais; vai para a África colonial, onde sufoca de calor e de febres tropicais; é vendido a um navio-galera, chegando assim à Nova York; foge do navio, perambula pelos EUA, trabalhando até na Ford, em Detroit; volta para a França, mal ganhando a vida (e sendo mal falado) como médico, atravessando até o fim a grande noite da existência…
Parece bem aventuresco, não? Não, não é. É sórdido, é mesquinho, filtrado por uma sensação de claustrofobia existencial, por uma visão pejorativa (e paradoxalmente salutar) do patriotismo, dos sentimentos e ideais elevados, das relações humanas. A lama está anagramada na alma. O corpo já traz inscrito em si o pó em que será no nada que nos espera.
Bardamu não esconde seu aviltamento bem como seu desprezo pelos pobres (“contra a abominação de ser pobre, é preciso, vamos confessar, é um dever, experimentar tudo”) ou seu racismo (sobre os negros afirma outro personagem, e Bardamu não pensa muito diferente: “uns pedaços de noite cheios de histerias”). Tudo é uma “bad trip” horrível e que causa desconforto, e no entanto era preciso que surgisse alguém disposto a pulverizar o academicismo francês e desmascarar o que a hipocrisia e os “bons sentimentos” e palavras como virtude, honra, moral traziam em seu bojo, com a prestidigitação da retórica oca: “nus. É assim que a gente deve se habituar a imaginar desde o primeiro contato os homens que vêm nos visitar; os compreendemos bem mais depressa depois disso, distinguimos de imediato em qualquer criatura sua realidade de gigantesco e ávido verme. É um bom truque de imaginação. Seu imundo prestígio se dissipa, se evapora. Nu em pêlo, só resta em resumo diante de nós um pobre saco vazio despretensioso e cheio de si que se esforça em tartamudear num gênero ou noutro”, ou ainda: “Indiscutivelmente haveria que fechar o mundo por duas ou três gerações pelo menos se não existissem mais mentiras para contar. Não teríamos mais nada a nos dizer, ou quase”. Beckett já está quase todo aqui. Mas será que não chafurdamos suficientemente no cinismo e na negatividade? Por que, no entanto, 75 anos depois a visão celiniana do mundo ainda parece tão visceral e autêntica? E sobretudo, a sua admirável perícia narrativa, em episódios como o da velha que vive trancada com medo de ser assassinada pelo filho e a nora e que, com sua recusa em ir para o asilo, incita-os a pôr em prática um plano de homicídio, que contará com a ajuda do “sombra” de Bardamu, Léon Robinson.
Também mantém sua modernidade e força a sintaxe arrevesada, seu uso personalíssimo e inesquecível dos advérbios. Enfim, uma obra-prima, ainda que Morte a Crédito continue a ser o favorito de quem aqui escreve, mesmo levando em conta o alerta da mesma Simone de Beauvoir, na seqüência do enaltecimento que faz das virtudes de Viagem ao fim da noite: “Morte a crédito abriu-nos os olhos. Há certo desprezo odiento pela gente miúda que é uma atitude pré-fascista.”
(resenha em homenagem aos 75 anos de Viagem ao fim da noite, publicada em A TRIBUNA de Santos, em 15 de setembro de 2007)