MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

27/04/2010

A lama inscrita na alma: VIAGEM AO FIM DA NOITE, de Céline

                         “o barulho de existir:

                           um cão dentro

                           de mim

 

                          atravesso

                          como a um pátio

                          o barulho de existir” (Carlos Nejar)

No início da década de 1980, a Nova Fronteira —que vivia então um grande momento editorial— colocou à disposição do leitor brasileiro Morte a Crédito (1936). Fui um daqueles que, tendo ouvido falar vagamente de Louis-Ferdinand Céline, ficaram impactados por esse romance genial, por essa história da infância, adolescência e vida adulta como médico suburbana de um narrador irascível, por um estilo raivoso e peculiar. Era a descoberta de um escritor que, na ficção francesa do século XX, só encontrava páreo em Proust e Camus.

A literatura francesa só podia aceitar Céline no seu cânone com má consciência e constrangimento: era um talento do qual não podia regozijar-se, como é possível à literatura inglesa, com Joyce, a norte-americana, com Faulkner, ou a brasileira, com Guimarães Rosa. A biografia de Céline revela uma mentalidade pequeno-burguesa desprezível, histérica, ressentida, um homem que escreveu panfletos colaboracionistas, incentivando o massacre de judeus pelos nazistas.

Essa desagradável moldura biográfica ainda não fora evidenciada há 75 anos quando da publicação de sua primeira e mais famosa obra, Viagem ao fim da noite, que só foi traduzida no Brasil (aliás, brilhantemente) em 1994, no centenário (pouco comemorado) de Céline. Nas suas memórias, Simone de Beauvoir sublinhou a importância do seu aparecimento em 1932: “… o livro francês que se nos afigurou mais importante nesse ano foi Le Voyage au bout de La nuit. Sabíamos de cor uma porção de trechos. Seu anarquismo parecia-nos perto do nosso. Ele atacava a guerra, o colonialismo, a mediocridade, os lugares-comuns, a sociedade, em um estilo e num tom que nos encantavam; Céline forjara um instrumento novo; uma escrita tão viva quanto a palavra. Que alívio, depois das frases marmóreas de Gide, Alain, Valéry”.

Viagem ao fim da noite é também narrada em primeira pessoa: Bardamu alista-se na Primeira Guerra e acaba entre os combatentes com problemas mentais; vai para a África colonial, onde sufoca de calor e de febres tropicais; é vendido a um navio-galera, chegando assim à Nova York; foge do navio, perambula pelos EUA, trabalhando até na Ford, em Detroit; volta para a França, mal ganhando a vida (e sendo mal falado) como médico, atravessando até o fim a grande noite da existência…

Parece bem aventuresco, não? Não, não é. É sórdido, é mesquinho, filtrado por uma sensação de claustrofobia existencial, por uma visão pejorativa (e paradoxalmente salutar) do patriotismo, dos sentimentos e ideais elevados, das relações humanas. A lama está anagramada na alma. O corpo já traz inscrito em si o pó em que será no nada que nos espera.

Bardamu não esconde seu aviltamento bem como seu desprezo pelos pobres (“contra a abominação de ser pobre, é preciso, vamos confessar, é um dever, experimentar tudo”) ou seu racismo (sobre os negros afirma outro personagem, e Bardamu não pensa muito diferente: “uns pedaços de noite cheios de histerias”). Tudo é uma “bad trip” horrível e que causa desconforto, e no entanto era preciso que surgisse alguém disposto a pulverizar o academicismo francês e desmascarar o que a hipocrisia e os “bons sentimentos” e palavras como virtude, honra, moral traziam em seu bojo, com a prestidigitação da retórica oca: “nus. É assim que a gente deve se habituar a imaginar desde o primeiro contato os homens que vêm nos visitar; os compreendemos bem mais depressa depois disso, distinguimos de imediato em qualquer criatura sua realidade de gigantesco e ávido verme. É um bom truque de imaginação. Seu imundo prestígio se dissipa, se evapora. Nu em pêlo, só resta em resumo diante de nós um pobre saco vazio despretensioso e cheio de si que se esforça em tartamudear num gênero ou noutro”, ou ainda: “Indiscutivelmente haveria que fechar o mundo por duas ou três gerações pelo menos se não existissem mais mentiras para contar. Não teríamos mais nada a nos dizer, ou quase”. Beckett já está quase todo aqui. Mas será que não chafurdamos suficientemente no cinismo e na negatividade? Por que, no entanto, 75 anos depois a visão celiniana do mundo ainda parece tão visceral e autêntica? E sobretudo, a sua admirável perícia narrativa, em episódios como o da velha que vive trancada com medo de ser assassinada pelo filho e a nora e que, com sua recusa em ir para o asilo, incita-os a pôr em prática um plano de homicídio, que contará com a ajuda do “sombra” de Bardamu, Léon Robinson.

Também mantém sua modernidade e força a sintaxe arrevesada, seu uso personalíssimo e inesquecível dos advérbios. Enfim, uma obra-prima, ainda que Morte a Crédito continue a ser o favorito de quem aqui escreve, mesmo levando em conta o alerta da mesma Simone de Beauvoir, na seqüência do enaltecimento que faz das virtudes de Viagem ao fim da noite: “Morte a crédito abriu-nos os olhos. Há certo desprezo odiento pela gente miúda que é uma atitude pré-fascista.”

(resenha em homenagem aos 75 anos de Viagem ao fim da noite, publicada em A TRIBUNA de Santos, em 15 de setembro de 2007)

27/12/2009

Em relação ao século XX: 100, 75, 50, 25 anos de obras e autores

[Juan Carlos Onetti]

{Eugene Ionesco}

[Norberto Bobbio]

[Selma Lagerlöf]

100 anos- Em 2009, a escritora alemã Herta Müller ganhou o Nobel. Exatamente cem anos atrás, a sueca Selma Lagerlöf (1858-1940) tornava-se a primeira mulher a receber o prêmio. Não conheço muito bem sua obra,  só li algumas histórias de De saga em saga, uma coletânea que aparece numa coleção dos premiados com o Nobel, porém há um ensaio excelente de Marguerite Yourcenar sobre ela em Notas à margem do tempo, e que nos faz vislumbrar um universo fascinante.

    No mesmo ano em que a autora de A saga de Gösta Berlings (seu livro mais conhecido) se tornava a pioneira de uma lista ainda muito pequena, nascia na Romênia natal de Herta Müller um dramaturgo originalíssimo, que faria parte do chamado “teatro do absurdo”: Eugene Ionesco, de A cantora careca, Os rinocerontes; A lição; e, no Uruguai, um dos prosadores que mais mereceriam o Nobel no século XX: Juan Carlos Onetti, com obras do calibre de A vida breve, O estaleiro & Junta-Cadáveres, e que forma, com o argentino Jorge Luis Borges e o mexicano Juan Rulfo a santíssima trindade da ficção hispano-americana.

      Também em 1909, nascia o grande pensador italiano Norberto Bobbio, autor dos ensaios maravilhosos reunidos em Nem com Marx, nem contra Marx. E na Letônia nascia o luminoso Isaiah Berlin (que faria carreira na Inglaterra), o autor de Pensadores russos, um pensador que gostava mais de escrever ensaios do que preparar “livros”.  E naquele ano, Lima Barreto lançava seu libelo anti-racista que também, e principalmente, é um poderoso romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha.

75 anos- De 1934, gostaria de destacar dois romances essenciais: o maior livro de Graciliano Ramos, São Bernardo (ser o melhor livro de um escritor como Graciliano é um fato por si só notável; para mim, aliás, os maiores romances brasileiros do século passado são Grande sertão: veredas; A maçã no escuro; São Bernardo  & Triste fim de Policarpo Quaresma); e o terrível e avassalador Morte a crédito, de Louis-Ferdinand Céline (que talvez seja até maior do que sua obra-prima anterior, Viagem ao fim da noite). Vidas secas e cheias de angústia no Nordeste e na França. A vida lembrada, cá e lá, como memórias do cárcere

[raymond chandler]

50 anos- É difícil escolher o acontecimento literário supremo de 1959, ano em que morria o grande Raymond Chandler, pois nesse ano iniciavam suas carreiras gloriosas nomes como Günter Grass, com O tambor de lata, certamente um dos maiores romances já escritos; os outros não começaram já nesse patamar: Philip Roth (Adeus, Columbus), Vargas Llosa (Os chefes) e Dalton Trevisan (Novelas nada exemplares). O único título comparável em magnitude ao de Grass talvez seja O almoço nu, que revelou o universo muito peculiar de William Burroughs, mas cuja legibilidade maior foi possível graças à notável versão cinematográfica de David Cronemberg (a versão de O tambor nada tem de notável). Mesmo assim, um romance cinquentenário pelo qual tenho um carinho especial é Um cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller Jr, merecidamente um clássico da ficção científica, mas que não se restringe a um “livro de gênero”. Na área de contos, é difícil pensar num título mais importante do que As armas secretas, de Cortázar, não só por causa da sua qualidade literária (o meu favorito é “Cartas da mamãe”, mas o mais considerado é “O perseguidor”, baseado na vida de Charlie Parker), como pela sua influência na literatura dos anos 60 e 70: basta lembrar que “As babas do diabo” foi a inspiração de Antonioni para seu Blow up (1968). Também não se pode esquecer a irreverência, a jovialidade e o trato de linguagem de Zazie no metrô, a obra-prima de Raymond Queneau.

     Em 1959, Jean-Paul Sartre dedicou-se a escrever um roteiro imenso (depois não utilizado, naquela época não existiam as produções para a tv a cabo, não existia a HBO; mesmo assim, Sartre resmungou que as pessoas tinham paciência para ver quatro horas da vida de Ben-Hur e não tinham para ver a vida do criador da psicanálise) sobre a vida de Freud para John Huston. O filme é ótimo, mas o texto de Sartre não fica atrás: Freud, além da alma; o marcante romancista português Vergílio Ferreira lançou sua obra mais famosa, o difícil porém importante Aparição; e há quem ache uma obra-prima (não é o meu caso) Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, ainda assim um livro que se deve levar em conta. Em todo caso, eu prefiro o folhetinesco Asfalto selvagem, as deliciosas desventuras em série de Engraçadinha, uma das grandes criações de Nélson Rodrigues

25 anos- Em 1984, morriam tanto Cortázar quanto outro autor genial, Truman Capote, cujo inacabado romance Súplicas atendidas foi lançado no Brasil este ano pela L&PM, e que prova o incrível trabalho feito pela sua alcoólica mãe (que tinha vergonha da homossexualidade do filho) para lhe incutir culpa e autodesprezo. Numa vertente gay oposta, de eliminação de toda essa automortificação, temos um clássico da nossa ficção recente, Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, um romance paródico, inventivo e infelizmente pouco conhecido, assim como Democracia, da norte-americana Joan Didion, e até mesmo O ano da morte de Ricardo Reis, o menos popular (e o melhor) José Saramago. Muito conhecido, pelo contrário, e igualmente notável é O amante, de Marguerite Duras.

julio cortázar & truman capote]

25 anos- Em 1984, morriam tanto Cortázar quanto outro autor genial, Truman Capote, cujo inacabado romance Súplicas atendidas foi lançado no Brasil este ano pela L&PM, e que prova o incrível trabalho feito pela sua alcoólica mãe (que tinha vergonha da homossexualidade do filho) para lhe incutir culpa e autodesprezo. Numa vertente gay oposta, de eliminação de toda essa automortificação, temos um clássico da nossa ficção recente, Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, um romance paródico, inventivo e infelizmente pouco conhecido, assim como Democracia, da norte-americana Joan Didion (sempre cito uma de suas frases, “ninguém está isento do movimento geral”, e sua heroína, Inez Christian Victor, é como se fosse uma amiga pessoal), e até mesmo O ano da morte de Ricardo Reis, o menos popular (e o melhor) José Saramago. Muito conhecido, pelo contrário, e igualmente notável é O amante, de Marguerite Duras, a qual justamente em 1959 havia escrito o mais belo dos roteiros em hiroshima, meu amor, dirigido por Alain Resnais.

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