MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

07/08/2012

Leitura em espelho: DOUTOR FAUSTO e O JOGO DAS CONTAS DE VIDRO

  

                           I

(resenha originalmente publicada em A TRIBUNA de Santos, em 8 de outubro de 1996)

A tradução de Herbert Caro para Doutor Fausto talvez tenha sido o grande acontecimento literário nos anos 80, quando saiu pela Nova Fronteira[1]. Agora que o livro está para comemorar 50 anos (em 1997), não custa nada uma revisão dessa reatualização da lenda do homem que faz pacto com o Diabo. Na versão de Thomas Mann, o tentador propõe ao músico Adrian Leverkühn vinte e quatro anos de genialidade. A “apropriação” da alma de Leverkühn começou ao contrair sífilis com uma prostituta, doença que degenerará em loucura irremediável, tal como Nietzsche. Como se sabe, o grande filósofo teve suas idéias encampadas e deformadas pelo nazismo, graças à sua irmã. E o destino de Leverkühn, tão semelhante, espelhará o destino da Alemanha, que mergulha em duas guerras.

Tudo nos é contado por Serenus Zeitblom que, em meio à Segunda Guerra, propõe-se a escrever a biografia de Adrian.  Como ele mesmo afirma, “minha vida pessoal sempre se me afigurou apenas secundária, e sem que propriamente me descuidasse dela, vivia-a distraído… ao passo que minhas verdadeiras diligências, tensões e preocupações se dedicavam ao bem-estar do amigo da infância”.

Portanto, de imediato salta aos olhos o aspecto de alegoria poderosa da Alemanha rumo à loucura nazista, ainda mais pelo seu mergulho nas raízes luteranas presentes na mentalidade germânica, ao ambientar boa parte da história em cidades saturadas de passado como Halle, Leipzig e Kaisersaschern (onde tudo tem início). Mas há um lado ainda mais instigante em Dr. Fausto: a discussão do problema da arte contemporânea que, por extensão, afeta a própria forma do livro.

Leverkühn tem especial predileção pela paródia. Atualmente, todas as manifestações artísticas estão impregnadas por ela ou pelo seu primo pobre, o pastiche. Dentro da narrativa, discute-se incessantemente se a função genuína da arte não se esgotou e se ela não somente, e isso nos melhores casos, crítica e recombinação paródica das formas passadas. Além disso, discute-se o problema da arte como jogo e diversão ou como forma de conhecimento, ambição dos maiores artistas do século XX. Como romance enciclopédico que é, Dr. Fausto assume essa oscilação e, entre todo o anedotário da narrativa, o leitor passa por discussões sobre teologia, ética, física, astronomia, biologia, sociologia, economia e por aí vai.

Isso não deve assustá-lo, leitor. O próprio Mann revoltava-se contra os que acham árdua a leitura, ou mesmo ilegível a obra. Em carta ao seu editor afirmou, com razão: “O livro não é um tratado insuperavelmente difícil e sim, pelo menos em parte, um romance que entretém e até mesmo emociona. Não seria certamente desejável que o público ficasse atemorizado”.

Quem avançar no texto observará que ele vai se tornando cada vez mais “narrativo” e dinâmico na parte final, ao contar o destino das várias pessoas ligadas a Leverkühn, trazendo, aliás, muitos elementos autobiográficos (a vida das irmãs de Mann,  por exemplo).

E num romance tão extraordinariamente construído, onde um fato aludido em determinado ponto (como as formas híbridas de vida que aparecem no começo) vai ganhar pleno significado mais adiante, Mann também não deixa de espelhar sua obra. Há a decadência da burguesia e a oposição entre esta e o mundo artístico e boêmio (como em Buddenbrooks & Tônio Kröeger), o episódio italiano desagregador (como em Morte em Veneza e Mário e o mágico), aliás uma suprema ironia uma vez que é na Itália, a pátria do humanismo clássico, que Leverkühn tem sua entrevista com o Diabo e sela o pacto; há a presença da doença (como em A montanha mágica); há até a antecipação da obra posterior do genial escritor alemão: Adrian compõe uma obra utilizando a história do papa Gregório, que Mann contará em O eleito, em 1951, poucos anos antes da sua morte, em 1955).

No período anterior à Segunda Guerra, quando Thomas Mann tornou-se um famoso exilado, muita gente afligiu-se porque ele não deixava claro seu posicionamento diante da Alemanha nazista, como se ele precisasse deixar mais claro do que escrever coisas inexcedíveis como Histórias de Jacó & Lotte em Weimar (é que, verdade seja dita, na Primeira Guerra ele se destacara pelo nacionalismo fanático, quase chauvinista), os quais iam contra toda a burrice e intolerância dominantes.

Quando o fez, foi um acontecimento memorável e seu irmão, o também notável Heinrich Mann, o cumprimentou comentando que ele dissera a “palavra final”.

Os maravilhosos romances de Mann anteriores a Dr. Fausto sempre foram acusados de ter um pé no passado e não acompanhar a radicalidade formal de outros grandes romancistas do século (Joyce, Kafka, Proust, Virginia Woolf, Faulkner, Musil, Hermann Broch, Alfred Döblin, Céline). Com Dr. Fausto, o maior dos escritores de ficção, mais uma vez teve a última palavra.

                                II

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de setembro de 1993)

Uma obra-prima está comemorando 50 anos: O jogo das contas de vidro (Das Glasperlenspiel, traduzido por Lavínia Abranches Viotti &  Flávio Viera de Souza), de Hermann Hesse que, publicado em plena Segunda Guerra, procura demonstrar como impossível à cultura erudita e ao individuo escaparem da marcha histórica, como tenta fazer a imaginária província de Castália, a qual, num futuro distante, separada do mundo, procura preservar os valores culturais mediante a prática de um jogo esotérico e sofisticado.[2]

Joseph Knecht (infelizmente abrasileirado para José Servo) é um dos “eleitos” para estudar na Castália e depois dos seus anos preparatórios, quando se destaca como um dos melhores jogadores, resolve levar uma existência de outsider, inclusive vivendo durante certo tempo com um sábio eremita, especialista no I-Ching. O que não impede que, com a morte de Thomas Von der Trave, o mestre dos jogos, Knecht se torne o líder de Castália e responsável por sua reaproximação com o mundo e reformulação de seu senso de utilidade. Aliás, num pequeno texto de 1925, Autobiografia resumida, Hesse toca no cerne do impasse pedagógico: “É verdade que nossos mestres  nos ensinavam, naquela divertida disciplina chamada história do mundo, que este sempre foi governado, guiado e transformado por homens que fizeram suas próprias leis e romperam as regras tradicionais, sendo-nos dito que esses homens deviam ser reverenciados. Mas isso era tão enganoso quanto todo o resto da nossa instrução, pois, quando um de nós, com boa ou má intenção, reunia coragem para protestar contra alguma ordem ou mesmo contra algum costume tolo, ou meio de fazer as coisas, não recebia reverência nem louvor como exemplo, mas era castigado, escarnecido e esmagado pela força superior, covardemente usada, dos professores”.

Nestes tempos de picaretagem mística e incapacidade literária, seria bom o leitor constatar que não há nada de novo nessa moda e conhecer um livro ao mesmo tempo profundamente espiritual e de altíssima qualidade estética, o que sempre revela o verdadeiro alquimista, que sabe usar a tradição esotérica sem diluí-la ou pastichá-la.

Mestre do jogo, Hesse brinca com a narrativa,com uma deliciosa ironia, pois o biógrafo-narrador da vida de Knecht faz um extenso elogio à impessoalidade e papel funcional dos membros da ordem castálica, e no entanto mostra a vida de um “funcionário” que era essencialmente uma grande individualidade (o que, à época, ia contra os robóticos membros da Gestapo, que sempre alegavam “estar cumprindo ordens”, executando sua função), transformadora, que percebe que o saber não pode ficar congelado em instituições, tem de fazer parte da práxis humana.

Essa concepção do funcionário zeloso de suas tarefas e de seu papel numa vasta organização, e que também é um indivíduo extraordinário, de certa forma aproxima o livro de Hesse do também magistral Memórias de Adriano (1951),de Marguerite Yourcenar.

Outro aspecto apaixonante de O jogo das contas de vidro é que ele condensa e depura os temas e preocupações de várias obras de Hesse, bem mais famosas, tais como O lobo da estepe, Sidarta & Demian; sem desmerecer esses livros, a história de Joseph Knecht o autor alemão finalmente conseguiu se livrar de um simbolismo às vezes um tanto fácil e esquemático, e de uma certa fraqueza na caracterização dos personagens, na sua relação sempre didaticamente dialética (isto é, um complementa o outro, vale lembrar aqui de Narciso & Goldmund).

As “amizades dialéticas” de Knecht são marcantes: Tegularius, o jogador brilhante e neurótico; o padre Jacobus, membro de uma ordem religiosa para onde Knecht é enviado numa importante missão…

Há também a parte final, constituída de poemas (alguns belíssimos) e da história de três encarnações anteriores de Knecht: uma, no princípio da humanidade,(O conjurador da chuva); uma passada nos tempos iniciais do cristianismo, a lindíssima O confessor, que por si só vale o livro; e uma que se passa na Índia e que lembra Sidarta. Eis, leitor, os “anos dourados” da peregrinação existencial e espiritual. Autoajude-se leitor: leia livros lindos como esse.


[1] Eu , então, li o romance (em 1985), mas a princípio não gostei, como gostara, por exemplo, de A montanha mágica, Os Buddenbrooks, O eleito, A morte em Veneza ou José e seus irmãos, apesar de achar o projeto admirável. Custei um pouco a apreciá-lo devidamente.

[2] Eu o li a primeira vez em 1984. Devo dizer que durante um bom tempo “resisti” a Hermann Hesse, que me parecia algo meio à Castañeda ou Lobsang Rampa, e não gostara de Demian nem de Sidartha (mudei de opinião depois sobre os dois).

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