MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

03/08/2011

A admirável Julieta Cupertino e o gosto da Revan pela não-confiabilidade

Filed under: rapidinhas — alfredomonte @ 12:05
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É admirável que aos 103 anos Julieta Cupertino esteja em plena atividade, e traduzindo Joseph Conrad para a editora Revan. Menos admirável é que a editora malbarate esse trabalho com informações tão esdrúxulas que chegam a criar no leitor a desconfiança de que os seus responsáveis ficaram presos no visgo da não-confiabilidade, aquele tipo de foco de narrativo que mestres como James, Conrad e Machado de Assis nos legaram.

   Na recentíssima edição da tradução de Coração das Trevas de Julieta Cupertino há um preâmbulo editorial ridículo, em que lemos pérolas do tipo:

Almayer`s folly, que estava inédito no Brasil até a Revan publicá-lo em 1999, com o título de A loucura de Almayer” Não, não, não. O texto já fora traduzido por Virginia Lefebvre para a Boa Leitura com o título de Perdição.

   A desinformação acima pode ser resultado de mera ignorância. Mas a próxima só pode ser má-fé:

Vitória–também publciado pela primeira vez no Brasil”.

  Já existiam duas traduções de Vitória no Brasil, uma delas impossível de desconhecer já que lançada pela Globo e feita por Mário Quintana, e a outra pela Francisco Alves, e assinada por Marcos Santarrita.

 E essa pérola suprema:

“e agora Coração das trevas, igualmente inédito no país na forma de título com texto integral e volume único”

   E logo a seguir, na página subsequente, lemos: “Há diversas traduções desta obra, publicadas no Brasil e em Portugal…” !!!

    Por que, ao invés dessas abobrinhas, não lançaram uma nova tradução (não será inédita também) de Sob os olhos do Ocidente, que se torna um romance centenário agora em 2011. Que oportunidade perdida!

   Que fique claro que essa minha diatribe nada tem a ver com o trabalho específico de madame Cupertino.

26/11/2010

“digamos… para comodidade narrativa”

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2011/11/18/um-terrivel-obstaculo-o-centenario-de-sob-os-olhos-do-ocidente-de-joseph-conrad/

https://armonte.wordpress.com/2011/11/18/joseph-conrad-medo-da-anarquia-politica-e-reconhecimento-da-anarquia-interior/

https://armonte.wordpress.com/2011/11/18/o-marido-era-o-culpado-mesmo/

https://armonte.wordpress.com/2010/10/29/o-romance-das-ilusoes-de-joseph-conrad-marlow-mar-e-memoria/

https://armonte.wordpress.com/2010/10/29/as-margens-derradeiras-aprisionados-pelo-inacreditavel/

https://armonte.wordpress.com/2010/10/31/o-fim-da-linha-para-a-aventura/

(publicada originalmente em 12 abril de 2008 em  A TRIBUNA de Santos, como resenha comemorativa dos quinze anos da minha coluna semanal)

CONRAD E A ERA NAPOLEÔNICA

Há exatamente cem anos, Joseph Conrad reuniu seis histórias numa coletânea chamada A Set of Six. Uma delas, a mais famosa, O Duelo, enfim encontra-se  traduzida no Brasil, trinta anos depois de sua bonita adaptação cinematográfica (Os Duelistas) ter revelado o estreante diretor Ridley Scott, que realizaria depois dois marcos do cinema, Alien, o oitavo passageiro e Blade runner, para depois, bem, depois…[1]

O grosso da ação se passa durante as guerras napoleônicas, no início do século XIX. Um tenente truculento e plebeu, Feraud (do sul da França), é procurado por um oficial da mesma patente (e nascido no norte, entre outras diferenças polarizadoras), o fidalgo D´Hubert, sob ordens superiores, devido a um duelo irregular com um civil que poderia virar escândalo. Ao ser detido por D´Hubert, Feraud o responsabiliza pessoalmente pela “injustiça” que estariam cometendo contra ele. A partir daí, conforme o tempo vai passando (começam a trama com 26 anos e os acompanhamos até os 40) e vão subindo de patente (até que a derrocada do império e o exílio de Napoleão arruínem a carreira de Feraud), eles se enfrentam em diversas oportunidades, com um interregno de insólita camaradagem em terras russas, num dos momentos mais penosos do exército francês.

Ninguém compreende a razão da pendenga. E se o rancor move Feraud (que fica nos calcanhares do adversário, para se igualar a ele em qualquer promoção), o sentimento de honra que faz com que D´Hubert sempre consinta nas convocações dos padrinhos para os confrontos, é a camada mais superficial para algo mais irracional e primordial.

O duelo contínuo entre ambos é um exemplo da convulsão social da França pós-revolucionária, já que a situação os iguala, o plebeu e o fidalgo. O tio da noiva de D`Hubert (um nobre do ancien régime) não compreende por que ele tem de se deixar arrastar por um sujeito que é “ninguém” (Não há qualquer razão terrena para um D´Hubert se acanalhar por causa de um duelo com uma pessoa dessa extração… essa gente não existe). Resposta: “O senhor não imagina como esse duelo é terrível para mim. E não há modo de livrar-me dele”.  

 O Duelo é mais uma volta do parafuso no fascínio de Conrad pelos dilemas cavalheirescos, e a aproximação perversa que ele fazia da honra com o descrédito e a infâmia (temas recorrentes em Lord Jim, Chance- A força do acaso ou Nostromo). De certa forma, ele se serve da mobilidade social da era napoleônica para enquadrar suas obsessões. Jorge Luis Borges, em Tema do Traidor e do Herói, uma das suas melhores e mais fantasmáticas Ficções (que, entretanto, gerou um filme muito talentoso de Bertolucci, A estratégia da aranha[2]), diz que imaginou “este argumento, que talvez escreva… Faltam pormenores, retificações, ajustes; há zonas da história que ainda não me foram reveladas; hoje, 3 de janeiro de 1944, vislumbro-a assim. A ação transcorre num país oprimido e tenaz: Polônia, Irlanda, a República de Veneza, algum Estado sul-americano ou balcânico… Digamos (para comodidade narrativa) Irlanda; digamos 1824.” Conrad fez o mesmo, mas envolveu sua fábula obsessiva com tantos detalhes realistas e com tal sentimento de época que sua “comodidade narrativa” quase nos engana completamente, assim como a do Tolstói de Khadji-Murát.

ADENDO de 2010:

Salvo engano, há atualmente três versões brasileiras de The duel: a de Julieta Cupertino para a Revan, a que foi comentada na resenha acima, a de André de Godoy Vieira, publicada pela L&PM com o título Os duelistas, decerto por causa do filme, e a de Cláudio Figueiredo (creio que a primeira delas), a qual aparece na antologia Mestre de Armas, publicada pela Companhia das Letras (em abril de 2007), e que reúne seis histórias que orbitam em torno da questão do duelo: além da de Conrad, histórias de Arthur Schnitzler, Maupassant, Heinrich von Kleist, Turguêniev e Nabokov.

Abaixo uma mostra de cada uma delas:

 

O general d`Hubert foi para casa com passos largos, apressados, mas de forma alguma enaltecido por um sentimento de triunfo. Ele havia conquistado, e no entanto não lhe parecia ter ganho muito com sua conquista. Na noite anterior reconhecera de má vontade o risco de sua vida, que lhe parecia magnífica, digna de ser preservada como uma oportunidade de ganhar o amor de uma jovem. Houve momentos em que, por uma maravilhosa ilusão, esse amor já parecia ser seu e sua vida ameaçada, uma oportunidade ainda mais magnífica de dedicação. Agora que sua vida estava salva, ela subitamente perdera sua magnificência especial. Em vez disso, adquirira o aspecto especialmente alarmante de uma cilada para a exibição do seu desmerecimento.  Quanto à maravilhosa ilusão de amor conquistado, que o visitara por um momento na sagrada vigília da noite anterior—que poderia ser a sua última noite no planeta—,ele compreendia agora a sua verdadeira natureza. Fora apenas um paroxismo de amor-próprio delirante. Assim, para esse homem, a quem a vitória num duelo havia devolvido a moderação, a vida mostrou-se destituída de encanto, simplesmente porque não estava mais ameaçada”. (versão de Julieta Cupertino);

“O general D´Hubert voltou para casa a passos largos e apressados, de modo algum enaltecido pela sensação de triunfo. Saíra vitorioso e, contudo, tinha a impressão de que não lucrara muito com sua vitória. Na noite anterior, lamentara ter de arriscar uma vida que lhe parecia magnífica, digna de ser preservada, em nome da oportunidade de conquistar o amor de uma jovem. Experimentara momentos em que,  por força de uma maravilhosa ilusão, esse amor parecia já lhe pertencer, e a vida ameaçada, uma oportunidade ainda mais magnífica  de devoção. Agora que estava salva,  perdera de súbito sua especial magnificência. Em contrapartida, adquirira o aspecto  particularmente alarmante de uma cilada preparada para expor a própria indignidade. Quanto à maravilhosa ilusão de amor conquistado que o visitara por alguns instantes em meio à agitada vigília da noite—noite que bem poderia ter sido sua última na Terra—,ele compreendia agora a sua verdadeira natureza. Não havia sido mais que o paroxismo de sua vaidade delirante. De modo que para esse homem, tornado sóbrio pelo desfecho vitorioso de um duelo,  a vida afigurava-se despojada de seu encanto simplesmente por já não estar ameaçada”. (versão de André de Godoy Vieira);

“O general D´Hubert caminhava de volta para casa com passadas largas e apressadas, de modo algum animado por uma sensação de triunfo. Ele havia sido vitorioso, mas ainda assim não lhe parecia que tinha conquistado muito com sua vitória. Na noite anterior ele havia reconhecido que valia a pena preservar o risco que sua vida corria—e lhe parecia muito grande—como oportunidade para conquistar o amor de uma jovem. Ele tinha vivido momentos em que, graças a uma maravilhosa ilusão, esse amor já parecia ser seu, e sua vida ameaçada, uma oportunidade ainda mais magnífica de devoção.  Agora que estava salva, sua vida de repente tinha perdido sua grandeza especial. Em vez disso, havia adquirido a aparência, especialmente alarmante, de uma cilada para revelar o quanto era sem valor.  Quanto à maravilhosa ilusão de um amor conquistado que o havia visitado por um momento durante a agitada vigília à noite, que bem poderia ter sido sua última na Terra,  ele agora compreendia sua verdadeira natureza. Tinha sido apenas o paroxismo  de uma presunção delirante. Assim, para esse homem, tornado sóbrio  pelo desfecho vitorioso de um duelo, a vida surgia agora despida do seu encanto, simplesmente porque não estava mais ameaçada”. (versão de Cláudio Figueiredo).


[1] Confesso que não acho que o filme reproduza a intensidade e força do texto. Já não o achava o rival que diziam à altura do Barry Lindon de Kubrick, e depois de ler a novela, essa opinião se fortaleceu. Antes, porém, eu cheguei a atribuir certa ligeira tibieza da versão de Scott por conta da falta de carisma e presença de Keith Carradine, como D´Hubert, um ator que nunca me convenceu muito, principalmente quando jovem. Mas se pensarmos que no filme de Kubrick o astro é o também insosso Ryan O´Neal e isso não compromete em nada a densidade da história….

[2] Que só não é irretocável por causa daquelas esquisitices que parecem fazer parte de todos os filmes de Bertolucci, até os melhores. No caso, me incomoda a composição da personagem de Alida Valli, que em certos momentos beira o ridículo. No mais, o filme é brilhante, especialmente o final.

29/10/2010

O “romance das ilusões’ de joseph conrad: MARLOW, MAR E MEMÓRIA

Para quem gosta de ler, um dos maiores prazeres da vida é a ficção de Joseph Conrad, a respeito da qual esta minha coluna, sem que eu saiba muito bem o porquê, tem se mostrado bastante avara, com apenas um artigo (sobre O agente secreto) e a inclusão de Nostromo entre os dez maiores romances do século XX.

Julieta Cupertino, por sua vez, pretende traduzir a obra completa de Conrad para a editora Revan, que chegou ao exagero de apresentar como inéditos textos que não o são, como A loucura de Almayer, já traduzido por Virgínia Lefévre com o título Perdição (editora Boa Leitura). Desse projeto, o mais recente lançamento é JUVENTUDE (Youth), novela escrita em 1898, e que o leitor brasileiro já conhecia como Mocidade, na bela versão de Maria Ercília Galvão Bueno, publicada pela Imago na coleção Lazuli (junto com uma das maiores obras-primas do grande escritor anglo-polonês, O parceiro secreto).

JUVENTUDE pertence a uma vertente conradiana que poderíamos chamar mar e memória, na qual se destaca Charlie Marlow, o narrador que relata experiências marítimas ocorridas há muitos anos, “nos bons velhos tempos”, antes de a Terra parecer diminuir e uma sombra moral encobrir a empreitada colonialista na África, na Ásia e na Oceania.

Em Karain, uma recordação, um dos maravilhosos Contos de inquietude (Tales of unrest), o narrador (Marlow?), ao ler nos jornais notícias hipócritas sobre alguma região remota, afirma: “Brilha o sol entre as linhas desses parágrafos curtos, sol e as cintilações do mar, um nome estranho desperta recordações. As palavras impressas rescendem a atmosfera fumarenta de hoje com o sutil e penetrante perfume das brisas de terra, soprando pelas noites estreladas de antanho”.  E o grande caminho para esse mundo remoto é o mar, que se associa, no simbolismo narrativo, à memória.

Ao narrar, em JUVENTUDE, sua primeira viagem para o Oriente, aos 22 anos, como segundo imediato do navio Judea, que deve transportar carvão da Inglaterra para Bangkok, o quarentão Marlow na verdade revela para os seus ouvintes (os mesmos de O coração das trevas) uma dessas /’viagens que parecem encomendadas para a ilustração da vida, que deviam ficar como um símbolo da existência/’ e que, portanto, só adquirem pleno sentido na memória.

O Judea é azarado: logo depois de zarpar, apanha uma tempestade e tem de passar meses num píer para reparos, com dificuldade de conseguir tripulação. Quando chega ao Atlântico, enfrenta um tufão. Volta para a Inglaterra. Novos reparos e novos problemas com a tripulação, até partir de novo. No meio da viagem, o carregamento se incendeia, parte do navio explode e ele acaba afundando.

Nesse percurso (ou percalço), Marlow passa a amar o navio, que se funde (na memória) à idéia de juventude: “Ah, juventude! A força, a fé, a imaginação disto! Para mim aquele navio não era apenas uma velha arapuca barulhenta levando uma carga de carvão para um frente, para mim ele era a façanha, a prova, o teste da vida. Penso nele com prazer, com afeição, com pesar, assim como pensamos em algum mortos que tenhamos amado. Nunca o esquecerei”.

É incrível a maneira plástica como Conrad delineia as experiências a bordo do Judea, que levarão Marlow a chegar no Oriente de forma inusitada (e comandando uma embarcação!), e também as figuras a bordo: capitão Beard, sua bondosa esposa, o imediato Mahon, o piloto Jermyn, que desconfia da juventude do narrador (“eu diria que ele tinha razão. Parece-me que eu sabia muito pouco naquela época, e que não sei muito mais, agora”), o servente Abraham, o qual fica lunático, etc.

Alguns deslizes de revisão atrapalham um pouco a beleza do texto. Logo na primeira página, informa-se que um dos ouvintes de Marlow estudou no navio-escola Conway, e o que se lê na edição (bilíngüe) da Revan é grotesco: “O diretor tinha sido passado pelo Conway”!!!???

No prefácio de O negro do Narciso (obra da mesma fase), amiúde citado, Conrad escreveu: “A tarefa que venho procurando cumprir é a de fazer com que, pela força da palavra escrita, você seja capaz de escutar, seja capaz de sentir,  e acima de tudo de enxergar”.

JUVENTUDE é um texto leve, apesar do tom elegíaco de adeus à mocidade, e um dos menos complicados do ponto de vista narrativo (Conrad revitalizou e enriqueceu o relato feito numa roda de conversa, muito comum na época). É dos textos em que o leitor tem menos trabalho para “escutar, sentir e acima de tudo enxergar”. Nada mais simples e eficaz do ponto de vista poético do que as afirmações de Marlow sobre sua chegada ao Oriente, embora não exatamente no amado e malfadado Judea: “para mim todo o Oriente está contido naquela visão de minha juventude. Tudo está naquele momento em que abri meus olhos jovens para ele. Eu o encontrei numa peleja com o mar—e eu era jovem—e o vi olhando para mim. E isto é tudo o que resta dele. Apenas um momento; um momento de força, de romance, de encanto—ah! Juventude!—…Um risco de sol sobre uma praia desconhecida, o tempo de lembrar; o espaço de um suspiro e adeus!”

     Marlow ganharia um tom mais enviesado e a sombra moral que o contamina se acentuaria em textos como O coração das trevas e Lord Jim, que também são da mesma fase.

As derradeiras linhas de JUVENTUDE são as seguintes: “…procurando sempre, procurando ansiosamente por alguma coisa fora da vida, que enquanto é esperada já se foi… junto com a juventude, com a força, com o romance das ilusões”. Nas últimas semanas, o romantismo da desilusão que desabrochou no romance do século XIX, segundo Lukács (A teoria do romance), foi assunto desta coluna. Jovem, Marlow chega ao Oriente acreditando na aventura, no mundo aberto à sua volta. Sabemos, pelo desenvolvimento da obra de Conrad, o que aconteceu a esse “romance das ilusões”…

(resenha publicada originalmente em 21 de agosto de 2001, em “A Tribuna” de Santos)

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2011/11/18/o-marido-era-o-culpado-mesmo/

https://armonte.wordpress.com/2011/11/18/um-terrivel-obstaculo-o-centenario-de-sob-os-olhos-do-ocidente-de-joseph-conrad/

https://armonte.wordpress.com/2010/11/26/digamos-para-comodidade-narrativa/

https://armonte.wordpress.com/2010/10/29/as-margens-derradeiras-aprisionados-pelo-inacreditavel/

https://armonte.wordpress.com/2011/11/18/joseph-conrad-medo-da-anarquia-politica-e-reconhecimento-da-anarquia-interior/

https://armonte.wordpress.com/2010/10/31/o-fim-da-linha-para-a-aventura/

As Margens Derradeiras: “Aprisionados pelo inacreditável”

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https://armonte.wordpress.com/2010/10/31/o-fim-da-linha-para-a-aventura/

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em  20 de novembro de 2001)

“… o contato com a pura selvageria não mitigada, com a natureza primitiva e o homem primitivo, trazem uma perturbação súbita e profunda ao coração. Ao sentimento de estar isolado, à clara percepção de solidão em seus pensamentos e sensações –a negação do habitual que é seguro—, junta-se a afirmação do inusitado, que é perigoso,  uma sugestão de coisas vagas, incontroláveis e repulsivas,  cuja intrusão desconcertante excita a imaginação e gasta os nervos civilizados, tanto dos tolos como dos inteligentes”.

O trecho acima é de Um posto avançado do progresso, notável conto de Joseph Conrad (1857-1924), que narra o processo de loucura, “uma sensação inarticulada de que havia se desvanecido qualquer coisa dentro deles”, de dois encarregados de um entreposto comercial na África Central.

Para Conrad, esse texto era a “parte mais leve” (!) de uma preocupação que gerou também o similar e ainda mais sombrio O coração das trevas.  Publicado em livro em 1902, é atualmente o mais estudado e famoso de seus textos, sem falar da transposição de seu enredo para o Vietnã dos anos 60 do século XX no incrível Apocalipse Now (1979), de Coppola. E é preciso não esquecer que a primeira incursão cinematográfica de Orson Welles seria a sua adaptação (o capítulo inicial de  Cidadão Kane- o making of, de Robert L. Carringer, detalha muito bem o projeto, inclusive com os desenhos dos cenários).

Também é um dos mais traduzidos: em 1984, houve três versões (de Marcos Santarrita, de Hamilton Trevisan e de Regina Regis Junqueira, para as editoras Brasiliense, Global e Itatiaia, respectivamente). Agora em 2001 novo boom das trevas conradianas: além da versão de Albino Poli Jr. para a L&PM, foi lançada a versão de Julieta L. Freitas, pela Nova Alexandria (e está prometida a de outra Julieta, a Cupertino, para a Revan, editora que está lançando sistematicamente a obra de Conrad). Dos já lançados, a da Nova Alexandria é decerto a mais fraca, a mais aguada, a que tem as soluções mais chochas, além de alguns trechos que ficaram quase incompreensíveis e que denotam erros de interpretação de um texto intrincado. Eu prefiro, entre todas, a de Regina Regis Junqueira, e me dei ao trabalho de ler essa nova versão até o fim  só para constatar como a força simbólica de O coração das trevas resiste até aos tradutores  mais destrutivos, e como também essa força simbólica continua sendo um desafio e um problema para o leitor.

Pois ainda que seja uma obra-prima, um texto-ícone, é difícil de ler O coração das trevas. São cem páginas que parecem quinhentas. Não porque a narrativa seja chata e arrastada, mas por estar saturada de simbolismo. Não apenas na intenção, como também no próprio movimento discursivo, praticamente em cada parágrafo. Uma simples visita de Marlow (o narrador principal, uma espécie de procurador da visão conradiana da vida) aos escritórios da Companhia onde acertará sua contratação como comandante de um vapor que faz a ligação entre entrepostos comerciais no rio Congo (descobrindo que um deles foi, digamos, “afetado” pela loucura do responsável, o senhor Kurtz) é carregada de presságios, signos da morte e do destino (a velha tricotando, que lembra de imediato uma das Parcas da Antiguidade). Mesmo no início do livro, narrado por um amigo de Marlow, o Tâmisa e Londres ao crepúsculo são descritos em termos que evocam a batalha da luz contra as trevas, do esforço civilizatório contra a barbárie. São dois exemplos óbvios de um discurso sobrecarregado.

Também, trata-se de um livro sobre o Mal, sobre o que acontece quando “se desvanece qualquer coisa” dentro de nós e a casca civilizatória hipócrita (pois movida pela ganância e pelo desejo de espoliar) cai por terra. Kurtz, colonizador que se torna um deus cruel e perverso para os nativos da região onde se faz a exploração de marfim, enlouquece porque a selva “lhe sussurrara coisas a seu respeito que ele próprio ignorava, coisas sobre as quais não suspeitara até o momento em que pediu conselho à grande solidão –e o sussurro revelou-se de uma fascinação irresistível. Ecoou profundamente, porque o senhor Kurtz estava oco”.

Não basta a Conrad descrever a loucura do oco senhor Kurtz (estragada no filme de Coppola –e certamente é o seu ponto fraco— pela canastrônica e quase ridícula aparição de Marlon Brando, que impressiona muito menos que o esquálido fantasma do livro, mais uma voz do que um homem). Interessa a ele mostrar seu efeito sobre o narrador, pois assim o horror se intensifica: “a alma dele endoidara. Sozinha na selva, olhara para dentro de si mesma, digo a vocês, ficara doida, meu Deus! Para pagar meus pecados, eu suponho, tive de passar pela prova de olhar para dentro dela também”.

O Mal que habita o coração das trevas (será que é mesmo na África Central que ele se localiza?) nos é transmitido de uma forma que rompe os limites do raciocínio lógico e do realismo convencional: “Vêem a história? Vêem alguma coisa? Parece até que estou tentando transmitir o conteúdo de um sonho para vocês –tentativa inútil, porque ao contar o conteúdo do sonho não transmito o conteúdo do sonho, aquele emaranhado de absurdo, surpresa e angústia envoltos num tremor de distorcida revolta, a sensação de estarmos aprisionados pelo inacreditável, que é a verdadeira essência dos sonhos…” E, aprisionados pelo inacreditável, no processo de “ver”, lendo, o pesadelo de Marlow, alguma coisa se desvanece dentro de nós também.

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