Este é mais um texto de 2008, do meu curso AS MARGENS DERRADEIRAS sobre textos-limite do século XIX, na verdade mais uma leitura comentada do que uma análise.
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“Duas almas, oh! Habitam em meu peito
E cada qual está ávida por abandonar sua irmã”
(Goethe, Fausto, 1808)
Em 1839 (exatos cem anos antes da morte de Freud), Edgar Allan Poe publicou William Wilson, seu sensacional conto que se tornou o paradigma das histórias de doppelgänger, isto é, do Duplo, daquele Outro que é um Sósia [1].
O clima da história já é pressuposto pela sua epígrafe extraída do obscuro Pharronida, de um tal Chamberlain, que Poe reputa tão conhecido quanto Goethe ou Nietzsche a ponto de não lhe acrescentar qualquer outro nome ou identificação: “Que dirá ela? Que dirá a terrível consciência, aquele espectro no meu caminho?”
William Wilson é o garoto rico e mimado, educado numa escola de elite, e que, apesar da sua ascendência sobre os camaradas e sua posição social, se sente incomodado, espicaçado e humilhado pela presença de um homônimo que ainda por cima se parece com ele (além de ter nascido no mesmo dia: 19 de janeiro de 1813[2]): “O meu caráter ardente, entusiasta e dominador, deu-me uma situação proeminente entre os meus colegas e, gradualmente, uma ascendência poderosa sobre todos os que eram mais novos ou da mesma idade que eu; sobre todos, exceto sobre um…o meu homônimo; rivalizava comigo nas lições, nos jogos e nas lutas do recreio; não acreditava nas minhas afirmações, assim como não se submetia à minha vontade; recusava enfim suportar a minha ditadura e manifestava-o sempre que lhe era possível…A rebeldia de Wilson constituía para mim fonte de desgostos, tanto mais que, apesar do desdém com que eu afetava tratá-lo e às suas pretensões, bem no fundo temia-o… Parecia que o único fim da sua rivalidade era o caprichoso desejo de me contradizer, de me atemorizar, de me atormentar, embora muitas vezes eu não pudesse deixar de notar, com um sentimento misto de espanto, de raiva e de humilhação, que o meu rival associava às suas contradições impertinentes uns assomos de afeto muito intempestivos e muito desagradáveis. E eu nem sequer conseguia explicar a mim mesmo a sua conduta, senão julgando-a como o resultado de uma insolência presunçosa, que se permitia ares de superioridade e de proteção” (note-se que ele diagnostica no rival defeitos que podem ser imputados a ele mesmo). A única arma contra o adversário acaba sendo a dissimulação da hostilidade através da ironia e da troça. De nada adianta. Além disso, “nada me irritava mais —embora eu forcejasse por não o demonstrar— do que as alusões às nossas semelhanças físicas ou morais… tendo notado quanto essas semelhanças me desgostavam, William tornava-as mais notadas, arremedando-me com prodigiosa habilidade. Copiava-me os gestos e as palavras; imitava a minha maneira de vestir, o meu andar, os meus modos e, enfim, nem sequer a minha voz lhe escapara”. Se essa “caricatura” o agasta, pior ainda a idéia de que o “outro” possa adotar “cruciantes ares protetores” : “Essa intervenção tomava, por vezes, a forma de um conselho, que não era dado abertamente, mas sugerido, insinuado, e que era por mim recebido cada vez mais de má vontade…” A grande ironia é que os tais conselhos irritantes “eram cheios de bom senso, superiores mesmo à nossa idade, destituída ordinariamente de reflexão e de experiência” o que é seguido por um trecho especialmente revelador: “A sua sensatez, o seu talento e o seu conhecimento da vida e das coisas eram muito superiores aos meus, e eu seria hoje um homem melhor e, por isso mesmo, mais feliz, se tivesse seguido os conselhos que essas sensatas sugestões continham e que, então, só me inspiravam raiva e desprezo.”
Uma noite, o narrador resolve pregar uma peça no seu homônimo. Vai até o recinto onde o outro dorme e de repente a luz do candeeiro revela o seu rosto: “Senti-me penetrado por uma sensação de frio; o coração pulsava-me furiosamente no peito, as pernas vacilavam-me; senti uma sensação de horror inexplicável! Minha respiração tornou-se convulsa, quando aproximei mais a luz do candeeiro. Seriam realmente aquelas as feições de William Wilson? Sim, eram! Que havia então de extraordinário no seu rosto para que eu me sentisse assim impressionado… ele não era ´assim´, não! Nunca fora ´assim´, nos momentos em que me contrariava! Seria humanamente possível, ou o que eu agora contemplava era o resultado desse hábito de imitação sarcástica?”
Devido a esse episódio, ele retira-se da escola. E, durante três anos, se abandona ao que chama de “turbilhão de loucura”, através de sucessivos desregramentos. Numa das orgias que ele oferece aos camaradas, o criado aparece anunciando alguém, que lhe pede para ir encontrá-lo no vestíbulo. Embriagado, o narrador vai de encontro a um “jovem mais ou menos da minha estatura, vestido com um terno de casimira branca, absolutamente igual ao que eu então vestia. Mal me viu, veio até mim, agarrou-me por um braço com um gesto imperativo e impaciente e disse-me ao ouvido: William Wilson.” A embriaguez desaparece, “como se na minha alma tivesse se produzido a descarga de uma pilha elétrica”. Investigando, ele descobre que o adversário deixara o colégio no mesmo dia. Passam-se alguns meses de obsessão, porém aos poucos ele vai deixando de pensar no assunto, “absorvido como andava com a idéia da minha partida próxima para Oxford”, na qual “a desmedida ostentação” dos pais lhe permite uma “renda fixa anual que me permitia abandonar-me à vontade à luxúria, já tão cara ao meu coração”“. Componente importante das farras é o jogo e, sem ninguém saber, e malgrado a sua imensa fortuna, Wilson trapaceia no jogo, por pura desfaçatez. Acontece então que ele, utilizando desses escusos expedientes, “depena” um jovem otário recém-chegado, um nobre muito rico chamado Glendinning. Isso acontece numa casa alheia (de um tal Preston). Ao ganhar, Wilson percebe que no rosto do oponente de jogo “a vermelhidão do vinho fora substituída, quase subitamente, por uma terrível palidez”. Percebe, então, os olhares recriminatórios de alguns e fica sabendo, pelos murmúrios entreouvidos, que Glendinning está totalmente arruinado. De repente, em meio à situação embaraçosa, “As pesadas portas da sala onde estávamos abriram-se repentinamente de par em par, com tal ímpeto que todas as velas se apagaram como que por encanto”, o que permite a entrada teatral de um “indivíduo aproximadamente da minha estatura, embuçado numa capa”. Tomando a palavra, o tal indivíduo, em meio à escuridão, revela aos presentes o caráter de William Wilson, denunciando as cartas marcadas que ele esconde no forro do casaco. Wilson é revistado, desmascarado, expulso da casa por Preston e advertido de que o melhor a fazer é abandonar imediatamente Oxford (lembrem-se: é um tempo em que a honra era levada a sério, tanto que o duelo fazia parte do quotidiano cavalheiresco)[3].
Sendo perseguido de tal forma pelo “amaldiçoado destino”, Wilson começa uma interminável excursão pelas principais cidades da Europa (Paris, Roma, Viena, Berlim, Moscou) e o “misterioso poder” sempre lhe atabalhoa os passos e frustra-lhe os (maus) intentos. O “duplo” aparece sempre, vestido identicamente, porém já não mostra o rosto. E o círculo vicioso vai se mantendo até o carnaval em Roma em 18.. (os autores oitocentistas adoram esse expediente): “Até então, eu sempre me submetera, de uma maneira covarde, à sua imperiosa vontade”. Wilson planeja seduzir a jovem esposa do velho duque que oferece o baile carnavalesco (carnaval=máscaras=personas=identidades desdobráveis). Antes, todavia, de poder abordá-la, ele próprio é abordado com um leve toque no ombro e um “inesquecível murmúrio ao ouvido, murmúrio que eu tantas vezes já amaldiçoara!” Enfurecido, ele provoca o seu duplo, abre caminho pelo salão de baile até uma pequena antecâmara, sabendo que o outro o seguirá. E assim os dois começam uma luta de espadas, após uma pequena hesitação por parte do “outro” William Wilson, o qual “com um ligeiro suspiro, pôs-se em guarda, silenciosamente demonstrando uma calma extraordinária”.
O narrador vence o combate, trespassando o peito do adversário sucessivas vezes, após fazê-lo recuar até uma parede. Enquanto pessoas tentam forçar a fechadura, ele se debruça junto ao inimigo agonizante: “Ah! Só então senti como a linguagem humana é impotente para exprimir o espanto e o horror que experimentei perante o espetáculo que se me deparou! (…) No lugar onde momentos antes eu nada vira, havia agora um grande espelho… Aproximei-me dele cheio de terror e vi caminhar para mim a minha própria imagem, com o rosto extremamente pálido e todo salpicado de sangue, avançando a passos lentos e vacilantes (…) Tratava-se do meu inimigo, de William Wilson, que, agonizante, se erguia perante mim. A máscara e o manto jaziam no chão. Não havia uma só peça do seu traje nem um só traço do seu rosto…que não fossem, na mais absoluta identidade, meus!”
Um dos hábitos do “duplo” que mais irritavam o narrador quando ambos eram colegas de colégio era que ele falava muito baixo, enquanto que o seu próprio timbre era muito alto. Dessa vez, porém, o “outro” Wilson “já não murmurava ao falar!”; ele “falava de tal maneira alto que tive a impressão nítida de ouvir a minha própria voz dizendo: —Você venceu, e eu pereço. Mas daqui para o futuro você estará morto. Morreu para o mundo, para o céu e para a esperança! Existia em mim. Olhe bem para a minha morte, e nessa imagem…você verá o seu próprio suicídio!”
É óbvio que uma pessoa, com a malícia pós-moderna, tem o direito de dizer: mas estava na cara, desde o começo, que o Outro era ele mesmo, e esse final não podia ser mais rebarbativo! Bom, a pessoa tem direito de pensar assim, mas eu retorquiria que a primeira vez em que li (lá pelos meus quatorze anos) essa história eu fiquei tão impressionado que nem me liguei no que “estava na cara”. Eu diria também que o tipo de originalidade que Poe trouxe à ficção era de tal feitio que uma história dessas era mais que desconcertante em 1839, e que mesmo com a ressignificação proposta pelo final (e que nós, de hoje em dia, já tão versados em psicologia e psicanálise, já podemos prever desde o princípio) a história do duplo tinha um componente tenebroso e difícil de digerir a partir da solução. E finalmente eu diria que, enquanto Freud matutou quarenta anos para propor a tríade que comanda o mecanismo mental do ser humano, bastou a Poe vinte páginas para nos mostrar a pressão exercida no indivíduo pelo conflito entre “id” e “superego”.
Recapitulemos. O narrador nos adverte que os pais o deixaram à vontade na vida desde a infância: então não há coerção de espécie alguma a lhe entravar as vontades. Wilson, tal como se nos apresenta, é o sonho do narcisista: faz tudo à sua vontade, é o ditador dos colegas na escola, um “reizinho” na vida[4] . Ou seja, é regido pelo Princípio do Prazer que, como Freud advertiu, é regulado também pela pulsão da morte, e daí os aspectos agressivos, e a sua tendência à “abandonar-se à luxúria, tão cara ao seu coração” (não se veja a depravação aqui num sentido moralista, mas no sentido amoralista, de “ausência de freios”). Temos aí um ego incompleto, cujo estágio de formação permanece atrelado ao “id”, incapaz de compreender o Princípio da Realidade.
Quando a história começa mesmo? “Geralmente os fatos da vida infantil só nos fornecem impressões que são mal definidas. Tudo são sombras, vagas e irregulares lembranças, difusa confusão de prazeres pueris e mágoas sem fundamento. Não sucede assim comigo. Devo ter sentido na minha infância, com o vigor do homem feito, tudo aquilo que ainda hoje tenho gravado na minha memória, em traços indeléveis, tão profundos e tão duradouros como os da cunhagem das moedas cartaginesas.” Ou seja,em William Wilson não se deu o processo de repressão que permite o processo civilizatório, o qual impõe traços de caráter ao ego e o habilita para a vida social.
Mas ele não é imune totalmente ao processo. A dissociação da sua personalidade no seu doppelgänger é a solução desesperada do seu ego para não se dissolver totalmente no narcisismo (id)ílico. Daí a constante contrariedade a que é submetido pelas intervenções do colega, e depois da sua primeira fuga, as teatrais e abaladoras aparições dramáticas em momentos nos quais “está indo longe demais”. Ao assassinar seu superego, que é o seu tutor, o seu censor, o seu freio, ele assina seu próprio suicídio: não terá vida, pois sem o “outro” Wilson ele não reconhecerá o Princípio da Realidade que permita sua sobrevivência. Como já citei antes, a sensatez do “duplo”, seu talento, seu conhecimento da vida (ou seja, ele é muito mais maduro do que o seu idêntico porque o superego representa nosso “ego ideal” e ele sempre se projeta numa transcendente maturidade, por isso resistimos tanto a ele e às suas sugestões). O narrador reconhece, porque no fundo se conhece, que seria um homem melhor, e mais feliz, se tivesse seguido os conselhos, ou seja, chegado a um acordo com ele e permitido a fusão dos dois pólos numa mesma identidade. Eu afirmei que ele no fundo se conhece devido a um trecho para lá de esclarecedor, ainda na fase do colégio, quando ele discorre sobre o quanto o colega o incomoda com suas intervenções em sua vida: “Acudiam ao meu cérebro obscuras recordações da minha primeira infância, estranhas, quase apagadas recordações duma época que a memória já não podia alcançar. Dir-se-ia que eu já tinha visto o ente que me falava, numa época muito afastada, muito remota. Contudo essa ilusão apagou-se tão rapidamente como aparecera.” . Permanecendo atrelado ao império do “id”, ao reencontrar seu superego, ele lhe (a)pareceu como a Consciência da epígrafe do conto: um “terrível espectro”.

[1] Dois dos autores do nosso curso trabalharam com textos “doppelgänger”: Dostoievski, numa de suas primeiras obras, traduzida aqui como O Duplo e também como O Sósia; e Conrad, que em 1910, lançou O parceiro secreto (Imago e L&PM) ou O cúmplice secreto (Iluminuras).
[2] 19 de janeiro é a data do nascimento de Poe, só que ele nasceu em 1809. Nunca é demais lembrar que a fidalguia e vida à larga, em termos de grana, de William Wilson, é uma fantasia do autor, quase sempre à beira da indigência. Aliás,é interessante notar que embora ele (Wilson, como narrador da história) assuma para o leitor que se vale de um pseudônimo, não deixa de revelar seu desgosto com o patronímico: “o meu nome, apesar da sua nobre origem, era um nome comum, um desses nomes que, desde tempos imemoriais, são também propriedade do povo”; e mais claramente: “O meu nome de família, falho de graça e de elegância, e mesmo meu nome próprio, tão trivial e tão plebeu, eram e sempre foram para mim motivo de grande desgosto” (utilizo aqui a tradução de José Paulo Paes, nos “Melhores Contos” do autor, editados pela Cultrix; também tenho uma tradução de Berenice Xavier em Histórias Extraordinárias, pela Abril Cultural; e uma tradução de Oscar Mendes para a Ficção Completa, Poesia & Ensaios, pela Aguilar).
[3] Há um detalhe a mais na cena: o denunciante vai embora, contudo deixa sua capa e no burburinho todo, mais do que a humilhação, Wilson se concentra no espantoso fato de que ele é idêntica à sua própria capa, que era “forrada de boas e variadas peles, e —seria desnecessário enfatizá-lo— de elevado preço. O talhe, inventado por mim, porque nessa altura eu me preocupava muito com essas futilidades do luxo, era de fantasia. Creio que levava a minha fúria pelas modas até o exagero”.
[4] “Fracos de espírito e sofrendo, além disso, do mesmo mal, meus pais pouco ou nada fizeram no sentido de modificar os maus instintos que eu tinha. No entanto, fizeram algumas tentativas; mas sem energia, sem direção, falharam inteiramente, redundando num triunfo completo para mim. Desde então, passei a mandar em minha casa, ditando ordens numa idade em que poucas crianças pensam em deixar o regaço materno, entregue ao meu livre-arbítrio, senhor absoluto de todas as minhas ações.”