MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

02/12/2014

A BALADA DE ADAM HENRY: Ian McEwan, a dimensão do irreparável e a fachada cinzenta

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“Homens ocultavam recursos em contas do exterior, mulheres exigiam para sempre uma vida de conforto. Mães impediam crianças de ver os pais apesar de ordens judiciais; pais se negavam a oferecer sustento aos filhos apesar de ordens judiciais. Maridos agrediam esposas e filhos, esposas mentiam ou maquinavam ardis, um ou outro, bêbados, viciados em drogas ou psicóticos; e crianças, na prática, eram obrigadas a tomar conta de pais incapazes, crianças de fato vítimas de abusos sexuais ou mentais, ou ambos, seus depoimentos transmitidos numa tela ao tribunal. E fora da área de competência de Fiona, em casos das cortes criminais e não das varas de família, crianças torturadas, mortas de fome ou por espancamento, espíritos maus arrancados de dentro delas em ritos animistas padrastos jovens e cruéis quebrando ossos de bebês sob os olhares abobalhados e cúmplices das mães, e drogas, álcool, sujeira doméstica extrema, vizinhos indiferentes e seletivamente surdos para não ouvir os gritos, assistentes sociais descuidados ou atarefados demais para intervir…”

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 02 de dezembro de 2014)

A leitura de A Balada de Adam Henry me fez relembrar das bem-sucedidas peças de Peter Shaffer, como Real Caçador do Sol (1964), Equus (1973) e Amadeus (1979), nas quais com inteligência cênica (e boa dose de esquematismo, pois todas seguiam uma fórmula) um indivíduo disfuncional e incômodo[1], entretanto cheio de vida, no sentido pleno do termo (no que tem de dor e horror também) colocava em xeque o protagonista aparentemente realizado, “ajustado”. Textos de uma época em que a razão ocidental e seus parâmetros eram questionados visceralmente, ainda guardavam um quê da contracultura.

Fiona Maye, a protagonista de Ian McEwan em seu novo romance, é uma juíza da vara de família. Uma decisão controversa de sua parte afetará o futuro de Adam Henry, a poucos meses de se tornar maior de idade (o título original, The Children Act, refere-se à lei britânica correspondente ao nosso Estatuto da Criança e do Adolescente): testemunha de Jeová, ele recusava a transfusão de sangue que o salvaria de sequelas tenebrosas do tratamento de leucemia e da morte certa. Visando o seu bem-estar e pleno desenvolvimento (em especial, depois de visitá-lo no hospital), dentro do entendimento que a lei permite, apesar das convicções arraigadas do próprio rapaz e do respeito ao relativismo cultural, Fiona determina que ele receba a transfusão.

O problema é que Adam é um exaltado (e poeta, resgatando o sentido romântico que outrora revestia o epíteto), amante do absoluto (para quem foi jovem e idealista, será fácil reconhecer-se), por mais ridículo que pareça para os padrões atuais, quando até a juventude parece mergulhada na ironia e na negatividade. Ele se afasta da comunidade religiosa a que pertencia e passa a seguir Fiona, a qual representaria uma instância suprema diversa, a justiça secular, com outra sabedoria (pobre e iludido Adam!) e o poder de transfigurar o destino das pessoas. E dessa forma, no parco contato direto que tem com a mulher que salvou sua vida, ele a confronta com possibilidades transgressivas e insólitas (por exemplo, deseja morar com ela).

Mas nós, leitores, conhecemos muito bem, a essa altura, a juíza (Adam é focalizado de modo mais oblíquo — pudera, é um personagem espinhoso, roçando o improvável), sabemos que o marido a largou, à beira dos 60 anos, “por falta de ardor”, e que ela vive o cotidiano mais rotineiro e convencional, no que tais palavras podem sugerir de estreito, mesmo com uns laivos diferenciais (é musicista amadora, porém talentosa). Embora profissional capaz, justa, e uma boa pessoa, não há ninguém mais distante de ser um indivíduo estimulante — capaz de mudar, de fato, fora das prerrogativas legais, qualquer existência — do que ela.

Por infelicidade, num determinado momento, Fiona se deixa levar pela vitalidade voraz de Adam e comete uma ação impensada e ominosa, por todos os padrões da “normalidade”. E então, mesmo num formato narrativo limitado (vejo em A Balada de Adam Henry a vocação de um conto longo, esticado em demasia), Ian McEwan tem a oportunidade de colocar numa fábula de ambientação contemporânea a dimensão do irreparável, fundamento de seu livro mais celebrado, Atonement-Reparação (2001). Nele, o dano causado era retificado através das várias versões literárias que a perpetradora, uma escritora, se propôs ao longo da vida como expiação (uma delas, justamente o romance que líamos).

A questão fascinante suscitada pelos dilemas morais (numa época em que se prega, mas pouco se pratica, o respeito à diversidade) e pelos atos de consequência desastrosa no tecido narrativo de A Balada de Adam Henry se descortina quando o irreparável que se pratica não tem nem o esteio da reelaboração literária dos eventos. De volta a uma forma mais sucinta (não obstante Sweet Tooth-Serena, seu livro anterior, ser uma de suas melhores realizações), McEwan talvez atingisse novamente a voltagem crispada e implacável de sua obra-prima, Amsterdam (1998).

Nada feito. Ele preferiu (assim como sua Fiona) o morno, o cauteloso, aquele voo confortável nas asas da elegância estilística que já comprometera consideravelmente o escopo de Sábado (2006), outra fábula moral sobre a atualidade que prometia muito e resultava desfibrada. Temos muitas passagens citáveis (“Até onde era neurologicamente possível não pensar, ela não tinha nenhum pensamento”, na excelente versão de Jorio Dauster), nada incomuns, contudo, no time de prosadores britânicos de alto coturno, como Margaret Drabble ou Julian Barnes, para citar apenas dois nomes do seu naipe e próximos em faixa etária (e ambos já traduzidos no Brasil[2]).

O leitor, talvez injustamente, se sente meio Adam Henry, forçando a entrada para uma possível (e desejável) exploração em profundidade dos meandros morais o nosso estágio civilizatório, deparando-se com um cutucar a onça com vara longa demais, de dentro de uma zona de conforto bem delimitada. Daí a inesperada nostalgia pelos dramas maniqueístas (nunca chegavam ao fundo, decerto), todavia nada escassos em ardor, do mencionado Peter Shaffer. O Ian McEwan de A Balada de Adam Henry é todo ele uma impecável e indevassável fachada cinzenta

VER TAMBÉM NO BLOG

https://armonte.wordpress.com/2012/06/26/esplendores-e-miserias-de-reparacao/

https://armonte.wordpress.com/2012/06/28/destaque-do-blog-serena-de-ian-mcewan-ou-as-praticas-invasivas/

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NOTAS

[1] Como Atahualpa, em Real Caçador do Sol, pertencente a uma civilização diferente, “bárbara”, na visão do conquistador europeu. Mas sua função dramática não é muito diferente do perturbado Alan Strang de Equus e do Mozart tal como figurado em Amadeus.

[2] De Margaret Drabble recomendo  A era do gelo (1977), A geração do meio (1980) e A trilha luminosa (1987), publicados pela Rocco assim como diversos livros de Barnes, mais conhecido no Brasil nos últimos anos, após ter recebido o Booker Prize por O sentido de um fim (2011).

VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/01/24/o-escritor-como-personagem-conan-doyle-e-seu-caso-dreyfus/

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15/10/2013

NO MUNDO DE ALICE: “O amor de uma boa mulher” e um Nobel indiscutível

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“Uma escolha fluida, a escolha da fantasia, é derramada no chão e endurece instantaneamente: adquiriu seu formato inegável…” (de As crianças ficam)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 15 de outubro de 2013)

Ninguém pode se queixar, desta vez, de que o Nobel tenha contemplado um autor “obscuro”, de algum país praticamente desconhecido, e do qual não há traduções circulando.  No Brasil, por exemplo, já foram publicados quatro títulos de Alice Munro: Ódio Amizade Namoro Amor Casamento; Fugitiva; Felicidade Demais e O amor de uma boa mulher[1], este último editado agora em 2013, embora mais antigo que os demais: foi lançado originalmente em 1998.

São oito histórias que demonstram como é indiscutível a escolha de um dos nomes mais extraordinários da literatura contemporânea. Quem não conheça o universo dessa canadense octogenária poderá estranhar, ao começar a leitura do conto-título, que abre o volume, o andamento do relato: em 1951, três meninos (Bud Salter, Jimmy Box, Cece Ferns) encontram um carro emborcado no rio, com o cadáver do Dr. Willens, optometrista local. Antes de espalhar a notícia, cada um vai para sua casa, e conhecemos as diferenças entre as suas famílias, em sua dinâmica interna e quanto à reputação delas na região (pois todos se conhecem, se vigiam, sabem aparentemente de tudo o que há para saber uns sobre os outros)[2]; logo a seguir, conhecemos Enid, uma moça que teima em ser diferente (segue o caminho da santidade, comenta desdenhosamente sua mãe: “… às vezes é um trabalho dos diabos, esse negócio de ser mão de uma santa”), abdicando do casamento e de carreiras mais prósperas, para ser cuidadora de doentes terminais. Assim, ela entra no lar dos Quinn para, ao longo da deterioração física da sua paciente, se dar conta também de sua perversidade e malevolência: “A Sra. Quinn era um caso mais difícil. Se ela se partisse em pedacinhos, lá dentro só se encontraria uma forma lúgubre de malícia, só podridão” . Ou será a visão fanática e puritana da própria Enid, a “boa mulher”, que a levará depois a uma decisão perigosa e masoquista?[3]

Estamos na mesma história, aquela dos meninos? Sim, como o leitor paciente descobrirá. Um dos encantos de Alice Munro é a maneira como ela vai montando pequenos porém intrincados quebra-cabeças narrativos, e esse é um dos melhores exemplos de sua arte.

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E é assim com cada texto de O amor de uma boa mulher.São todos, sem exceção, do mais alto nível. Será, portanto, uma questão essencialmente de preferência pessoal eu indicar como destaques duas narrativas em primeira pessoa: Antes da mudança e A ilha de Cortes.

No primeiro, após ter um filho clandestino (de uma relação com um professor de teologia[4]), a narradora volta a viver com o distante e desconcertante pai (“Meu pai chama o filho desse sobrinho pelo nome do sobrinho. Faz isso com todo mundo. Refere-se às lojas e aos negócios na cidadezinha pelo nome do dono anterior ou mesmo de um antecessor. Isso é mais do que um simples lapso de memória: está mais próximo da arrogância. Ele se põe acima da necessidade de conhecer o que se passou. Da necessidade de registrar as mudanças. Ou as pessoas”), descobrindo que ele é o aborteiro local. Para completar o quadro, há uma das figuras rústicas e insondáveis, tão comuns nessa “wonderland” às avessas que nossa Alice desentoca, a Sra. Barrie, a empregada da casa. Estamos na fronteira entre Tchekhov e Stephen King.

Já no segundo, temos mais um segredo oculto por detrás do decoro e das conveniências: uma vizinha toda empertigada se intromete na vida de um jovem casal até que, depois de ter “empregado” a narradora para cuidar do marido inválido (o qual, através do manuseio de antigos recortes de jornais, fornece a ele os indícios de um crime, ocorrido na ilha do título[5]), passa a uma atitude de hostilidade que beira o desvario:

“Ah, ela se acha tão esperta. Não consegue nem manter dois quartos limpos. Quando varre o chão, tudo que faz é empurrar a poeira para um canto”.

    Quando comprei minha primeira vassoura, esqueci de comprar uma pá de lixo e, durante algum tempo, fiz mesmo aquilo. Mas ela só poderia saber se tivesse entrado em nossos quartos com outra chave enquanto eu estava na rua. O que, evidentemente, foi o que ela fez.

“Ela é uma falsa, você sabe. Bastou olhar para ele e vi que era uma falsa. E mentirosa. Não é boa da cabeça. Ficava lá sentada e dizia que estava escrevendo cartas, mas escrevia as mesmas coisas uma porção de vezes. E não eram cartas, eram as mesmas coisas várias vezes. Tem um parafuso a menos”.

    Com isso entendi que ela havia desamassado as páginas jogadas na minha lata de lixo.

São enredos primorosos no descortínio de mentalidades que vão se entrechocando na passagem das gerações, do rural para o urbano, dos costumes petrificados para a liquidez da modernidade, criando um palimpsesto cronológico que casa perfeitamente com o andamento enviesado da narrativa. E sempre um apetite vigoroso pela intriga, por ambientes e personagens que, com maestria, ganham a nitidez de lugares onde vivemos e de pessoas que conhecemos.

Outro ponto alto é As crianças ficam, no qual a protagonista, Pauline, em férias com a família (filhas, marido e os pais deste último), foge com o diretor da montagem amadora de uma peça na qual ela desempenha o papel de Eurídice (aquela que Orfeu tenta resgatar da morte)[6]:

Os pensamentos que lhe vinham sobre Jeffrey absolutamente não eram pensamentos—e sim algo mais parecido com alterações em seu corpo. Isso podia acontecer quando estava sentada na praia (…), quando torcia as fraldas depois de lavadas ou quando ela e Brian visitavam os pais dele. No meio de partidas de Monopólio, de Scrabble e de buraco. Ela continuava a falar, ouvir, trabalhar e vigiar as crianças enquanto alguma recordação de sua vida secreta a perturbava como uma explosão radiante. Era então invadida por uma sensação de calor que ocupava todos os seus vazios e a reconfortava. Mas não durava muito, o alívio se dissipava e ela se sentia como uma avarento que vê seus ganhos repentinos desaparecerem, e não imagina que a sorte possa voltar a alcançá-lo.

Nesse, como e em outros momentos da obra de Alice Munro, ela me pareceu bem próxima  dos romances admiráveis de Anne Tyler. Os laços afetivos em ambas são fortes e concretos, mas elas também apresentam o seu lado inquietante—o fato de que essas relações são, no fundo, uma alternativa escolhida entre outras:”Havia um outro tipo de vida que ela poderia ter tido—o que não era o mesmo que dizer que teria preferido assim”, lemos num dos melhores contos de Ódio Amizade Namoro Amor Casamento (2001), coletânea que a apresentou ao leitor brasileiro.

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Em O sonho de mamãe, que fecha O amor de uma boa mulher, somos  apresentados a uma família de mulheres que recebe em casa a viúva do irmão (morto na guerra), que logo terá uma criança—a  narradora da história (mesmo que, no campo dos acontecimentos aí narrados, ela seja apenas um bebê):

Minha mãe—Jill—está de pé junto à mesa da sala de jantar banhada pela luz intensa do final da tarde. A casa está cheia de pessoas convidadas a irem lá após o serviço fúnebre na igreja. Estão bebendo chá ou café enquanto tentam segurar os diminutos sanduíches ou fatias de pão de banana, bolo de nozes e bolo inglês. As tortas de creme ou de passas, com sua massa farelenta, precisam ser comidas com um garfo de sobremesa e os pratinhos de porcelana com desenhos de violetas pintados pela sogra de Jill quando noiva. Jill pega tudo com os dedos. Migalhas de massa caíram, uma passa caiu, e o veludo verde do vestido ficou manchado. É um vestido quente demais para aquele dia, e absolutamente não é um vestido para mulheres grávidas e sim um tipo de túnica larga feita para os recitais, quando ela toca violino em público. A bainha está levantada na frente por minha causa. Mas é a única coisa suficientemente folgada e apresentável que ela em para usar nas cerimônias fúnebres do marido.

Mais uma vez pensamos: a mágica não pode se repetir indefinidamente, ela não será capaz de criar mais um momento incrível que parece conter a vida inteira (gerações, passagem do tempo, conflitos e recalques entre membros de uma família e de uma comunidade, ou seja, a vida de todo dia que vivemos). E, presto!, novamente ficamos estupefatos com o número de ilusionismo. Se isso não é gênio (pelo menos na área da ficção),  não sei o que mais poderá ser.

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VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/10/11/alice-munro-e-o-unidunite-dos-afetos-odio-amizade-namoro-amor-casamento/

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TRECHOS SELECIONADOS

Quando tinha quatro ou cinco anos, Enid disse à sua mãe que havia ido ao escritório do pai e o vira sentado atrás da escrivaninha com uma mulher no colo. Tudo de que ela se lembrava daquela mulher, tanto na época quanto agora, se resumia ao fato de que ela usava um chapéu com muitas flores e um véu (algo bem fora de moda mesmo então), além de que a parte de cima do vestido ou da blusa estava desabotoada e um seio nu se projetava para fora, com o bico desaparecendo na boca do seu pai. Contara isso à mãe com a absoluta certeza de que havia visto a cena, dizendo a ela: “Uma frente dela estava enfiada na boca do papai”. Não conhecia a palavra que designava seios, embora soubesse que vinham em pares.

    Sua mãe disse: “Vamos, Enid. Do que você está falando? O que é essa tal de frente?” 

   “Igual a uma casquinha de sorvete”, respondeu Enid.

    Foi desse jeito que ela viu, exatamente. Ainda podia ver desse jeito. O cone cor de biscoito com sua porção de sorvete de baunilha apertada contra o tórax da mulher, a outra ponta espetada na boca do pai.

    Sua mãe fez então algo muito inesperado. Abriu o vestido e pôs para fora um objeto esmaecido, que sacudiu com a mão. “Como isso aqui?”

    Enid disse que não. “Uma casquinha de sorvete”.

   “Então foi um sonho”, disse sua mãe… (trecho de O amor de uma boa mulher)

Em todas as visitas que fizera durante aquela viagem, sempre tinha havido um momento de séria decepção. O momento em que se dava conta de que a pessoa com quem estava falando, a pessoa que se esforçara para encontrar, não ia lhe dar o que quer que ele tinha ido buscar. O velho amigo que visitou no Arizona estava obcecado pelos perigos da vida apesar de viver numa mansão dentro de um condomínio fechado. A mulher desse velho amigo, que tinha mais de setenta anos, queria lhe mostrar fotografias dela e de outra mulher fantasiadas de dançarinas de cabaré no tempo da Corrida do Ouro (…) E os filhos, agora adultos, estavam totalmente imersos em suas próprias vidas. Isso era bem natural e não o surpreendia. A surpresa estava em que essas vidas, as vidas de seus filhos e de sua filha, pareciam fechadas, de certa forma previsíveis. Até mesmo as mudanças que ele podia antever ou lhe foram anunciadas—Noelle estava prestes a deixar seu segundo marido—não era muito interessantes. Ele não havia admitido isso para Deborah—e quase nem mesmo para ele próprio—porém era verdade. E agora Sonje. Sonje, de quem ele nunca gostara muito, de quem sempre guardara certa desconfiança, mas a quem respeitara por ter um quê de mistério—Sonje se tornara uma velha tagarela com um parafuso a menos. (trecho de Jacarta)

Eu e Chess vínhamos de famílias onde o sexo antes do casamento era visto como repugnante e imperdoável, enquanto o sexo depois do casamento aparentemente nunca era mencionado, sendo via de regra logo esquecido. Quando a mãe de Chess encontrou camisinhas em sua mala de viagem, foi chorando falar com o pai dele (…) Por isso, ter um lugar nosso e uma cama nossa, onde podíamos fazer o que bem quiséssemos, parecia maravilhoso. Tínhamos feito um pacto em favor da lascívia, mas nunca nos ocorreu que pessoa mais velhas—nossos pais, tias e tios—pudessem ter feito a mesma barganha, por lascívia. Imaginávamos que o maior desejo deles tinha a ver com casas, terrenos, cortadores de grama motorizados, freezers e muros de sustentação. E, naturalmente, no que tange às mulheres, com bebês. No futuro, pensávamos, todas essas coisas poderiam ser escolhidas, ou não escolhidas, por nós. Nunca pensamos que elas nos viriam inexoravelmente, como a idade ou as condições meteorológicas.

   E quando agora penso nisso com toda a honestidade, não vieram. Nada aconteceu sem que quiséssemos. Nem a gravidez. Arriscamos ter um filho só para ver se éramos de fato adultos, se isso realmente podia acontecer.  (trecho de A Ilha de Cortes)

Preferiu não mencionar o fragmento de muro que vira acima dos arbustos. Por que se dar ao trabalho, quando havia tantas coisas que ela achava melhor não mencionar? Primeiro, a brincadeira com Philip, que acabou por excitá-lo demais. E quase tudo sobre Harold e seus companheiros. Tudo, sem a menor exceção, acerca da garota que pulara para dentro do carro.

    Há pessoas que levam a decência e o otimismo sempre com eles, que dão a impressão de limpar a atmosfera nos lugares em que estão. A elas não se devem dizer certas coisas, é muito perturbador. Apesar de sua simpatia naquele momento, Ian parecia a Eve uma dessas pessoas (…) Antes, eram as pessoas mais idosas que demandavam esse tipo de proteção, mas parecia que cada vez mais era o caso dos jovens, e alguém como Eve tinha que tentar não revelar como estava em situação difícil: toda sua vida podia ser vista como uma forma inapropriada de se debater, um erro radical.

   Ela podia dizer que a casa fedia, que o dono e seus amigos estavam bêbados e pareciam gente vil, mas não que Harold estava nu e nunca que ela própria teve medo. E nunca do que ela teve medo.

   Philip estava encarregado de recolher as espigas debulhadas e jogá-las ao longo da borda do campo (…) não acrescentara nada à história de Eve e nem parecera se importar com o relato. Mas, depois que a história acabou e Ian (interessado em colocar aquela historinha local no contexto de seus estudos profissionais) perguntou a Eve o que ela sabia sobre a desintegração dos velhos padrões da vida nas cidadezinhas e no campo, sobre a expansão do chamado agronegócio, Philip enfim ergueu os olhos da sua tarefa de se abaixar e se arrastar no meio dos pés dos adultos. Ele olhou para Eve. Um olhar neutro, um momento de vazio conspiratório, um sorriso submerso, tudo se passando rápido demais para que precisasse ser reconhecido.

    O que significava aquilo? Simplesmente que ele começara o trabalho íntimo de armazenar e esconder, decidindo por conta própria o que devia ser preservado e como, o que tais coisas iriam significar para ele, no seu futuro desconhecido. (trecho de Salve o ceifador)

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Suas filhas cresceram. Não a odeiam por ter ido embora ou por ter ficado longe delas. Também não a perdoam. Talvez não a perdoassem de qualquer modo, mas seria por algo diferente.

    Caitlin se recorda um pouco do verão na pousa, Mara nem um pouco (…) “O lugar onde a gente estava quando você foi embora”, ela diz. “Mas só soubemos depois que você foi embora com Orfeu”.

    “Não foi com Orfeu”, diz Pauline.

   “Não foi com Orfeu? Papai costumava dizer que foi. Ele dizia: “E aí sua mãe fugiu com Orfeu”.

    “Então estava brincando”, diz Pauline.

    “Sempre pensei que tinha sido Orfeu. Quer dizer que foi com outra pessoa”.

   “Foi alguém ligado à peça. Com quem vivi durante algum tempo”.

  “Mas não Orfeu”.

   “Não. Nunca ele”. (trecho de As crianças ficam)

“Acho que a mãe de Karin está vindo jantar”, disse Derek. “Silêncio, silêncio. Será que é o carro dela chegando?”

    “Ah, meu Deus, eu devia pelo menos lavar o rosto”, disse Ann. Pôs de lado as verduras e subiu correndo a escada.

     Derek se aproximou da vitrola e repôs a agulha no início do disco. Quando a música recomeçou, saiu para receber Rosemary, coisa que não costumava fazer. A própria Karin tinha pensado em correr para recebê-la. Mas, ao ver Derek tomar a iniciativa, abandonou a ideia. Em vez disso, seguiu Ann escada acima. Porém, não até o fim. Havia uma janelinha no patamar intermediário onde ninguém parava e por onde ninguém costumava olhar. Como a janela tinha uma cortina, não era possível que alguém pudesse vê-la.

   Chegou tão depressa que viu Derek cruzar o gramado e atravessar a abertura de cerca viva. Passos largos, ansiosos, furtivos. Chegaria a tempo de se inclinar e abrir a porta do carro, abri-la com um floreio e ajudar Rosemary a sair. Karin nunca o vira fazer aquilo, mas sabia que ele tencionava fazê-lo agora.

   Ann ainda estava no banheiro. Karin podia ouvir o chuveiro. Teria alguns minutos para observar sem ser perturbada.

   Ouviu então a porta do carro se fechar. Mas não suas vozes. Impossível, com a música invadindo toda a casa. E eles não tinham surgindo na abertura da cerca. Ainda não. E ainda não. E ainda não.  (trecho de Podre de rica)

O advogado de meu pai diz que é muito “incomum”. Entendo que, para ele, essa é uma palavra bem forte e suficiente.

    Há dinheiro bastante na conta bancária de meu pai para cobrir as despesas do enterro. O suficiente para despachá-lo , como dizem alguns (não o advogado, ele não fala assim). Mas não sobra muito mais. Não há certificados de ações no cofre particular do banco, nenhum registro de investimentos. Nada. Nenhuma doação testamentária para o hospital, para a igreja ou para a escola criar uma bolsa. O que é ainda mais chocante, nenhum dinheiro a ser dado à Sra. Barrie. A casa e o que há dentro dela pertencem a mim, e isso é tudo. Tenho ainda meus cinco mil dólares.

    O advogado parece pouco à vontade, penosamente embaraçado e mesmo preocupado com a situação. Talvez pense que eu suspeito de seu comportamento, que vá tentar denegrir seu nome. Quer saber se existe algum cofre na casa, qualquer esconderijo onde pudesse estar uma alta soma em dinheiro vivo (…)

   Digo-lhe que não estou terrivelmente preocupada com o dinheiro.

   Que coisa horrorosa de dizer! Ele mal consegue olhar nos meus olhos. (trecho de Antes da mudança)

Uma vez retirada as bandagens e depois de ela ter verificado que sua barriga já estava bem lisa, Jill olhou para suas mãos. O inchaço parecia ter desaparecido por completo. Ela desceu a escada, pegou o estojo no armário do hall e retirou o violino. Estava pronta para tentar algumas escalas.

    Era uma tarde de domingo. Iona se deitara para tirar uma soneca, sempre alerta para qualquer ruído que eu pudesse fazer. A Sra. Kirkham também estava deitada. Ailsa pintava as unhas na cozinha. Jill começou a afinar o violino.

    Meu pai e sua família não tinham o menor interesse por música. Na verdade, ignoravam isso. Pensavam que a intolerância ou mesmo a hostilidade que sentiam com relação a certo tipo de música (visível até mesmo no modo como pronunciavam a palavra “clássica”) se fundamentavam na força de caráter, na integridade e na determinação de não se deixarem enganar. Como se qualquer música que fosse além de uma simples canção encerrasse uma tentativa de tapeá-los, coisa de que todo mundo no fundo sabia, embora algumas pessoas—por pretensão, falta de simplicidade e honestidade—jamais o admitissem. Sobre essa artificialidade e essa tolerância covarde se erguia o mundo das orquestras sinfônicas, das óperas, do balé e dos concertos que faziam todos dormirem.

   A maior parte dos habitantes da cidadezinha pensava o mesmo. No entanto, por não ter nascido lá, Jill desconhecia a profundidade desse sentimento, e como aquilo era aceito sem discussão. Meu pai nunca exibiu sua opinião (…) Gostara da ideia de Jill ser uma instrumentista não por causa da música propriamente dita, mas porque isso a tornava uma escolha estranha, como suas roupas, seu estilo de vida, seus cabelos não-domesticados. Ao escolhê-la, ele mostrava às pessoas o que pensava delas. Mostrava às garotas que haviam tido a esperança de fisgá-lo. Mostrava a Ailsa. (trecho de O sonho de mamãe)

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[1] The Love of a Good Woman, que citarei utilizando a tradução de Jorio Dauster (os títulos originais dos contos, além daquele que dá o título à coletânea, são–pela ordem: Jakarta; Cortes Island; Save the reaper; The children stay; Rich as stink; Before the changeMy mother´s dream.

[2] O que já é indicado na passagem que indica o prazer que é para os meninos perambular pelo local onde encontram o corpo:

“Outra mudança nas conversas que tinham por lá era o fato de praticamente pararem de usar nomes. Já não costumavam empregar muito seus nomes verdadeiros e nem mesmo os apelidos dados pelas famílias, tal como Bud. Mas, na escola, quase todo mundo ganhava outro nome, alguns dos quais relacionados à aparência ou à maneira de falar da pessoa, como Quatro Olhos ou Pato Rouco. Outros, como Cu Ralado e Fode Galinha, derivavam de acontecimentos reais ou imaginários na vida de quem recebia o apelido ou na de seus irmãos, pais e tios, pois tais nomes eram transmitidos de geração em geração. Mas tudo isso era deixado de lado quando se encontravam no mato ou nos remansos do rio. Se precisavam chamar a atenção de um companheiro, tudo que diziam era Ei! Até mesmo o uso de nomes que os adultos não deviam ouvir, por serem ofensivos e obscenos, prejudicaria a sensação que tinham naquelas ocasiões de absoluta familiaridade com a aparência, os hábitos, a família e a história pessoal de cada um.

   E nem por isso se imaginavam como amigos. Nunca teriam designado alguém como seu melhor amigo ou segundo melhor amigo, nem alterado as hierarquias de tempos em tempos, como as meninas faziam. Pelo menos uma dúzia de outros garotos poderia substituir qualquer um daqueles três, sendo aceitos da mesma forma…”

[3] “Seria possível alguém inventar alguma coisa tão pormenorizada e diabólica? A resposta é sim. A mente de um enfermo, de um moribundo, podia ficar repleta de coisas sujas e organizá-las de forma muito convincente. A mente da própria Enid, quando ela dormia naquele aposente, se enchera das invenções mais nojentas, de sujeira pura. “

[4] Que é, supostamente, o interlocutor da narrativa, um recurso bastante eficiente, já que ao mesmo tempo que mostra a cumplicidade “moderninha” e anti-tacanha do casal, mostra também, progressivamente, o seu avesso, o apego dele às convenções:

Fiquei pasma com esses argumentos, que não pareciam consistentes com as ideias da  pessoa que eu tinha amado. Os livros que havíamos lido, os filmes que havíamos visto, as coisas sobre as quais tínhamos conversado—perguntei se nada disso tinha importância para você. Você disse que sim, mas a vida era mesmo dura (…) Senti desprezo. Senti desprezo quando vi você se enfiando por baixo do carro, as abas do casaco adejando em volta do seu traseiro. Você tateava na neve em busca do anel, e ficou muito aliviado quando o encontrou..

A certa altura, ela pergunta: Quem é esse “nós” de que venho falando?

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[5] O primeiro indício  sobre os eventos da ilha é fornecido numa das conversas “fiadas” que a Sra. Gorrie  insiste em manter com sua vizinha mais jovem e indefesa quanto à sua índole invasiva:

“Mesmo quando eu vivi longe da civilização, sempre gostei de…” Minha necessidade de bocejar ou gritar se acalmou por um instante. Onde ela teria morado para dizer que era longe da civilização? E quando?

“Ah, lá para o norte da costa”, ela respondeu. “Também já fui recém-casada faz muito tempo. Vivi lá durante anos. Union Bay. Mas isso nem era tão longe de tudo. Ilha de Cortes”.

    Perguntei onde era essa ilha e ela disse: “Ah, lá onde Judas perdeu as botas”.

  “Deve ter sido interessante”, comentei.

    “Ah, muito interessante… Se você acha ursos interessantes. Se acha pumas interessantes…”

    Como outros contos da autora, aqui há uma jovem escritora. E o alter ego negativo sempre capitula diante da domesticidade, abdicando dessa incursão pelo imaginativo, por falta de talento e absorção pelo casamento (isso a irmana a algumas estratégias da obra de Doris Lessing, que também utiliza esse recurso de um alter ego negativo, é só lembrar—entre outros casos—de Martha Quest, da série Os filhos da violência fugindo de um casamento medíocre, optando pelo ativismo político e depois se tornando para o resto da vida uma espécie de governanta sempre à mão na casa de A cidade de quatro portas, o volume final da série).

Com relação à reverberação de um lugar distante, um ponto geográfico marcado por certo exotismo, dentro dos acontecimentos da narração, esse conto faz par com o anterior, Jacarta, no qual um dos maridos morre (ou na verdade não morreu, apenas deu um jeito de se evadir?) na cidade do título.

[6] E parece que mais do que “entrar na personagem”, como se diz, ela aprecia “sair da sua vida”, tornando-se a observadora de fora, muito presente nos contos de Alice Munro (pelo menos, nos que eu li). Durante os intervalos de ensaio, quando sai para comprar refrigerantes e café para o grupo: Apreciava a curta caminhada pelas ruas vazias, sentia como se tivesse se tornando um ser urbano, alguém apartado e solitário, que vivia no fulgor de um sonho importante.

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22/07/2011

O PROFESSOR ALOPRADO

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https://armonte.wordpress.com/2011/07/22/lolita-e-a-moralidade-saudavel/

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 15 de julho de 1997)

Cético e mordaz como era, com relação à cultura contemporânea, Vladimir Nabokov (1899-1977) certamente teria se deliciado com os primários erros de informação do artigo sobre seu romance PNIN (em tradução de Jorio Dauster), assinado por Antônio Querino Neto e publicado pela Isto É da semana passada. Para começar, ele informa que o livro foi publicado em 1953, o que tornaria Pnin um livro futurista, já que contém fatos de anos posteriores. Na verdade, foi publicado em 1957, entre duas obras-primas mais famosas, Lolita (1955) e Fogo Pálido (1962)—neste último, inclusive, aparece um certo professor Pnin. Depois, o cuidadoso articulista informa que só agora o livro chega ao leitor brasileiro através da Companhia das Letras. Então, seria uma alucinação minha (oh! Santo Daime) o exemplar que julgava ter de Pnin traduzido por Pinheiro de Lemos para a Record e que li na minha adolescência, no começo dos anos 80? Uma alucinação tanto mais grave porque extraí duas terríveis certezas da leitura desse exemplar lisérgico, que a vida só fez confirmar, de lá para cá: a primeira, de que a erudição que se encastela num nicho de conhecimento especializado e que tem medo das experiências, das pessoas e dos acontecimentos, não serve para nada; e a segunda, de que por mais que se tente, as diferenças de nacionalidade e cultura acabam por ser um abismo intransponível para a compreensão entre as pessoas, e só a crescente uniformização global é que dá uma ilusão de que os países do mundo podem “entender-se” de fato (uniformidade e nivelamento por baixo não significa concórdia e compreensão).

O personagem-título é, como vários outros, um emigrado da Europa, fugindo ou do mundo stalinista ou do nazismo, ou dos dois, e que incorporou-se como professor de uma universidade provinciana nos EUA dos anos 40 e 50. E, como vários outros emigrados eruditos, não tem o menor respeito pela educação ou cultura norte-americanas. Mas o professor Timofey Pnin talvez seja o mais inadaptado dos emigrados, e o mais ridicularizado.

O livro nos oferece um retrato completo de sua personalidade, desde a sua espantosa erudição, sua ligação obsessiva com a infância na Rússia pré-soviética (os personagens de Nabokov, como o Bentinho de Dom Casmurro estão sempre tentando “atar as duas pontas da vida”), seus acessos de angústia, até os seus aspectos mais ridículos e grotescos, sua infantilidade, sua incapacidade de lidar com as pessoas, sua necessidade de ordenar o mundo à sua imagem, ou como o diz o  narrador (amigo ou inimigo de Pnin? Como saber?), pninizar a realidade.

A incrível capacidade de Pnin, com toda a sua meticulosa bagagem intelectual, de se deixar enredar pelas situações mais aviltantes, antecipa as agruras dos intelectuais dos livros do grande Saul Bellow, como Herzog (1964) e O legado de Humboldt (1975). E todos os cuidados maníacos do professor russo para assegurar sua tranqüilidade e seu encastelamento encontram eco recente nos personagens irritantemente cautelosos de Anne Tyler, por exemplo, o protagonista de O turista acidental (1985).

Além da figura do professor Pnin, Nabokov banha na soda cáustica da sua mordacidade, o mundo universitário, com seus oportunistas que se aproveitam das confortáveis carreiras acadêmicas: o chefe do Departamento de Francês, Blorenge, por exemplo, não sabe francês, e o reitor da Universidade, num discurso, fala da contribuição de homens importantes da Rússia, como Raskolnikóv (que não é outro senão o assassino de Crime e Castigo de Dostoiévski); com suas onerosas pesquisas inúteis, com seus estudantes deslumbrados com palavras da moda; ou então, com seus pilares eruditos em querelas enfadonhas e minúcias inúteis (ficar horas discutindo qual o dia exato em que começa a trama de Anna Karênina de Tolstói, por exemplo).

A mordacidade do autor de Somos todos arlequins vem sempre imersa num banho de estilo. Hoje em dia só a canadense Margaret Atwood obtenha a mesma conjunção graça-ironia, veneno retórico-desdobramento maníaco dos personagens, em livros como Madame Oráculo & Olho de gato.

Para se ter uma idéia do estilo em que Pnin é escrito, basta citar um trecho cruel como o momento em que o professor Pnin é obrigado a arrancar todos os seus dentes apodrecidos: “Surpreendeu-o verificar o quanto era afeiçoado a seus dentes. A língua, aquela foca gorda e lustrosa, costumava deixar-se cair com um baque e deslizar alegre entre os rochedos familiares, conferindo os contornos de um reino ameaçado mas ainda seguro, mergulhando da grota na angra, encontrando um pedaço de alga doce na mesma fenda de sempre; mas agora não restava nenhuma das antigas marcas do terreno, tudo o que existia era apenas uma grande fenda sombria, numa terra incógnita de gengivas…”

Ou, no outro extremo, o momento em que Pnin relembra uma antiga e doce paixão, morta em um campo de concentração (o que mostra o descompasso entre o comportamento folclórico e a vida interior do professor russo): “Pnin se ensinara durante os últimos dez anos a jamais lembrar-se de Mira, não porque, em si própria, a recordação de um caso de amor juvenil, banal e fugaz, ameaçasse sua paz, mas porque, se alguém quisesse realmente ser sincero consigo próprio, não podia esperar que a consciência—e, portanto, a autoconsciência—subsistisse num mundo onde coisas tais como a morte de Mira eram possíveis. Cumpria esquecer, porque não se podia viver com o pensamento de que aquela jovem mulher graciosa, frágil e terna, com aqueles olhos, aquele sorriso, tendo ao fundo aqueles jardins  e campos nevados, houvesse sido levada num vagão de transporte de gado para um campo de concentração… E, como não havia registro da forma exata como fora morta, Mira continuava a morrer muitas mortes na mente dele, ressuscitando a cada vez para morrer de novo, e de novo, levada por uma enfermeira para que lhe inoculassem algo sujo, bacilos de tétano, vidro moído, para ser asfixiada com ácido prússico onde imaginava que ia tomar um banho de chuveiro, para ser queimada viva numa fossa…”

   Talvez só o James Ivory de Vestígios do dia poderia traduzir cinematograficamente essa história melancólica e grotesca de alguém que pertence a um tempo destruído e morto historicamente, e que continua numa sobrevida onde tudo parece desperdício e vazio, onde tudo assume o ar paródico e sinistramente farsesco.

Só falaria, talvez, o peculiar humor nabokoviano. Só ele, aliás, permitiria ao genial autor russo compreender os medonhos projetos de capa que a Companhia das Letras insiste em colocar nas edições que vem lançando das suas obras. Com tais capas, fica parecendo que são obras de um tantã.

Porém, num mundo onde se mata gente das formas como provavelmente mataram a namorada de Pnin, qual a importãncia disso? Talvez a mesma que tenha a data exata em que começa a trama de Anna Karênina.

Lolita e a moralidade saudável

I

Lô. Lola. Dolly. Dolores. Lolita. Variações de um nome obsedante. A portadora do nome deve ser fascinante. Qual o quê! Uma vulgar pré-adolescente norte-americana de cidade interiorana dos anos 40.

Acontece, porém, que o refinado europeu Humbert Humbert se desgraça porque descobre em Dolores Haze a encarnação perfeita da ninfeta, ou seja, como ele nos explica, um demônio sedutor “entre os limites de idade de 9 a 14 anos”. Casa-se com a mãe dela, que providencialmente morre atropelada, e inicia uma louca viagem com a enteada (a partir de certo ponto, amante) “através da colcha de retalhos de 48 estados”. Depois, para manter as aparências (e finanças) fixam-se em outra cidade interiorana, Beardsley, onde Humbert Humbert encontrará num autor teatral, Clare Quilty, seu grande rival.

Lô. Lola. Dolly. Dolores. Lolita. Há livros que, além de geniais, têm uma linguagem tão peculiar, tão própria, tão exuberantemente única (no Brasil, o exemplo óbvio é Grande sertão: veredas) que deixam qualquer empreendimento similar com cara de pastiche, e imitação barata. É o caso de LOLITA, de Vladimir Nabokov, o russo que passou a escrever em inglês e que nessa língua fez coisas que até Deus duvida.

Seus livros são todos inconfundíveis (além da história de Humbert Humbert, vale destacar, entre os traduzidos no Brasil, Fogo pálido, A verdadeira vida de Sebastian Knight, Gargalhada na escuridão, Pnin,  Somos todos arlequins, A defesa), mas ele se superou em Lolita, sua criação mais poderosa.  Bem antes de ter virado um clichê (o livro foi publicado em 1955), como um Hopper das palavras, descortinou o mundo kitsch e desabonador dos motéis, lanchonetes, postos de gasolina e drugstores, entre pequenas cidades e diversões programadas, que caracterizam a vida e a paisagem norte-americanas: “Grande usuária dos banheiros de beira da estrada, minha pouco exigente Lô se encantava com os letreiros que ia encontrando: Eles-Elas, João-Maria, Cavalheiros-Damas e até papai-mamãe; absorto num sonho de artista, eu ficava contemplando o brilho honesto do equpamento dos postos de gasolina contra o pano-de-fundo do verde esplêndido dos carvalhos ou de alguma longínqua colina…resistindo ao oceano agrícola que tentava tragá-la”.

Não se pense com isso que Lolita limita-se a caricaturizar a América. Nabokov não poupa ridículo ou patético para o europeu Humbert (produto de uma miscelânea de nacionalidades, como é comum na sua obra). De fato, em Lolita (ô nome obsedante), nada tem mão única. A narrativa do homem de 38 anos enfeitiçado sexualmente pela garota de 12 atravessa maisque os 48 estados: atravessa o coração da promiscuidade da nossa época, que se contrapõe ironicamente ao delírio maníaco do narrador, impregnado pelo próprio “veneno retórico”, como Nabokov caracterizou no prefácio de um romance da sua primeira fase como escritor, Desespero.

Há, pois, uma miraculosa encruzilhada artística nessas estradas, juntando observação satírica, verve e veneno que torna Humbert Humbert, que não consegue dominar Lô, um mestre das palavras, que usa e abusa para poetizar e racionalizar sua obsessão.

Os leitores brasileiros já puderam se apaixonar há muitos anos por Lolita através da inspirada tradução de Brenno Silveira. Bem-vinda, contudo, a nova e esplêndida versão de Jorio Dauster (tradutor do também extraordinário Fogo Pálido, o único título na obra nabokoviana que pode rivalizar com a história da ninfeta paradigmática). Pena que a Companhia das Letras tenha colocado uma capa pouco feliz, como fizeram sempre com o livro aqui no Brasil, à exceção de uma edição da Abril Cultural que reproduzia o quadro O velho jardim, de Graham Ovenden. Também a orelha do superestimado Ivan Lessa não é boa, saiu fútil em demasia.

O tempo confirmou que a doença, fonte da pedofilia, encontra eco na permissividade de um mundo onde todos se oferecem como objetos e acabam marionetes de um teatro de sombras, os nomes sendo mera palavras-fetiche desdobrando-se incessantemente (Lô.Lola. Dolly. Dolores. Lolita) no vácuo da nossa cultura.

(resenha publicada originalmente, em A TRIBUNA de Santos,  em 23 de agosto de 1994)

II

Vladimir Nabokov afirmava, a respeito de sua obra prima LOLITA (1955), que um livro só tem valor se nos oferecer “volúpia estética”: não procuremos extrair lições morais de uma obra literária. Mesmo concordando com o autor russo, é impossível deixar de apreciar a ironia do tempo, pois LOLITA prefigurou o grande pesadelo moral do fim do século: o culto da pedofilia.

Humbert, o “mártir da combustão interna” (como ele mesmo se define), é o intelectual europeu tarado por ninfetas que passa a residir nos EUA. Na pequena Ramsdale hospeda-se na casa de Charlotte Haze e apaixona-se pela filha dela (de 12 anos). Casa-se com Charlotte, que morre atropelada, e inicia com a enteada uma viagem sem fim pelo país. Após um ano, eles fixam-se noutra cidadezinha, Beardsley, onde o ciumento Humbert tenta controlar a vida de Lolita, embora ela acabe sempre driblando a vigilância (o suficiente para conhecer Clare Quilty, que será assassinado pelo padrasto da ninfeta).

Humbert leva-a para outra viagem, na qual ela desaparece. Só irá reencontrá-la anos depois, quando ela já estiver casada com um providencial panacão. E então ela revela a Humbert a identidade do seu rival (Quilty).

Nabokov escreveu uma demolidora comédia sobre o modo de vida americano e também nesse aspecto mostrou-se um gênio profético, ao intuir  a grande mistura que caracteriza nossa época: vulgaridade e uniformidade.

Professores, donas de casa, adolescentes ginasianos, artistas, tarados, ninguém escapa do crivo venenoso de LOLITA, um livro sobre a perversidade, onde a linguagem também é perversa, porque a monstruosidade do ninfetômano Humbert é lúcida: “no curso de um só dia eu passava de um pólo de insanidade a outro –do pensamento de que por volta de 1950 teria de livrar-me sabe-se lá como de uma adolescente difícil, cuja mágica ninfescência se teria evaporado, ao pensamento de que, com sorte e paciência, eu poderia fazer com que ela eventualmente gerasse uma ninfeta que teria o meu sangue correndo em suas delicadas veias, a Lolita II, que teria uns oito ou nove anos em 1960; na verdade, a faculdade telescópica de minha mente, ou de minha demência, era tão forte que me permitia divisar, no horizonte do tempo, o excêntrico Dr. Humbert, carinhoso e salivante Dr. Humbert, praticando com a soberbamente adorável Lolita III a arte de ser avô”.

E a própria musa do poeta Humbert, a personagem-título? Pelo viés da narrativa, se é que não temos uma visão distorcida, como acontecia com Capitu, em Dom Casmurro, vemos como ela representa a permissividade pura, onde o sexo é negociado, é uma transação, que envolve um cinismo talvez pior do que a deformidade moral de Humbert.

Ele é um tarado; ela, o resultado de uma cultura toda permissiva e imoral, que se recobre de uma pseudomoral e permite que tudo seja possível. Por isso, nada mais escarninho, sarcástico e zombeteiro do que a cena em que a diretora “avançadinha” da escola onde Lolita estuda dá um sermão para o severo pai Humbert,o qual impede que sua filha mantenha relacionamentos “saudáveis” com rapazes, para o bem do seu desenvolvimento sexual.

Aliás, não faltam em LOLITA  cenas inesquecíveis. Basta lembrar da noite em claro que Humbert passa ao lado da enteada na cama, antes de eles se tornarem amantes. Poucas vezes a expectativa amorosa e sexual foi tão bem descrita.

É por isso que adotarei a atitude “não vi e não gostei” com relação ao filme realizado pelas temerárias mãos de Adrian Lyne. Depois de uma versão mais-que-perfeita de Kubrick, com James Mason irretocável (além da estupenda Shelley Winters como a mãe; só não gosto mesmo no filme do excessivamente histriônico Peter Sellers como Clare Quilty, acho que ele está over demais para o tamanho do seu personagem) por que ver Jeremy Irons em mais um papel de fissurado sexualmente (após Perdas & Danos, M.Butterfly e Beleza roubada)? Alguém ainda aguenta, apesar do grande ator que ele é, vê-lo babando por um objeto de desejo transgressor? LOLITA traduzido em imagens por Adrian Lyne é realmente o triunfo de tudo o que Nabokov satirizou num dos melhores romances do século XX.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 15 de setembro de 1998)

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ARREBATAMENTO E EXASPERAÇÃO EM DOIS MOVIMENTOS

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PRIMEIRO MOVIMENTO – EXASPERAÇÃO

Depois que lançou Fogo pálido (1962), uma das suas obras mais brilhantes, e certamente a mais original, Vladimir Nabokov dedicou-se a reescrever em inglês seus primeiros livros (de quando ainda era um emigrado russo na Alemanha), a publicar uma polêmica (e, ao cabo, muito mal-afamada) tradução do Eugene Oneguin,  de Puchkin (que causou o rompimento da sua amizade com o mais famoso crítico norte-americano, Edmund Wilson, numa verdadeira competição de vaidades), até que surgisse em 1969 seu romance mais extenso e ambicioso, Ada ou Ardor.

Nas últimas semanas foram comentados neste espaço dois textos cujos narradores são nonagenários: Memórias de minhas putas tristes e Malone morre. Coincidentemente, no livro de Nabokov que está sendo lançado no Brasil pela Companhia das Letras, numa esplêndida tradução de Jorio Dauster, (a anterior não era ruim, mas descuidada, ou editada com descuido), Van Veen é também um narrador nonagenário a nos evocar sua paixão incestuosa pela meia-irmã, Ada, desde os seus 15 anos (e ela 12). Uma paixão sob signo duplo, “mescla de arrebatamento e exasperação”, que pode caracterizar também a experiência de leitura de Ada.

Deixemos para a outra seção o arrebatamento (que torna o livro o maior lançamento de 2005). Comecemos com a exasperação. Há até pouco tempo, apesar de adorar a ficção nabokoviana pré e pós Ada (pois ele ainda publicou dois romances incríveis, e infinitamente menos pernósticos, Coisas transparentes e Look at the harlequins- Somos todos arlequins, antes de morrer em 1977), eu o achava um livro praticamente ilegível.

Entre outros motivos, porque a narrativa mostra uma visão de mundo esnobe, como se todo o mundo fosse uma fantasmagoria em torno de algumas poucas criaturas aristocráticas e sensíveis  (até então Nabokov tinha o cuidado de temperar seu elitismo implacável com uma visão crítica dos seus próprios protagonistas, seres intoxicados pela beleza, mas deveras lamentáveis). Além disso, ele a satura com mil trocadilhos, alusões, citações e  demonstrações do chamado schadenfreude (prazer malicioso com a desgraça ou a incompetência alheia), do qual Edmund Wilson o acusava (criticando seus “maus modos literários”).

Claudica-se num texto sobrecarregado por frases em francês e russo,  saturado por um clima de ficção científica: estamos na Antiterra (a Terra seria uma espécie de mito, um Além esotérico para os antiterráqueos), numa “geografia barroca”: um país que mistura as características da Rússia pré-soviética (ou seja, do século XIX), evocada com grande nostalgia, e dos EUA do século XX.  Vemos, então, grandes propriedades rurais ao modo de Tolstoi (seu Ana Karênina é parodiado logo de início) e uma tecnologia de tempos posteriores (apesar de ser um mundo onde a eletricidade foi banida, dando origem a estranhos aparelhos).

Isaiah Berlin matou um pouco a charada do aspecto exasperante, quase sufocante e intolerável, que reveste a leitura de Ada ao afirmar (sobre a tradução do poema de Puchkin): tem todos os defeitos de um virtuose auto-intoxicado com um vasto talento narcisístico”. Na mesma linha, e levando-se em conta de que se trata de um romance extraordinário e inovador, pode-se concordar perfeitamente com Alexander Gerschenkron: É deplorável que o grande esforço de Nabokov tenha sido tão tristemente distorcido em nome da decisão de ser original a qualquer custo…sendo maldosamente pedante, desabridamente emocional e vítima da própria egolatria desenfreada”.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em primeiro de outubro de 2005)

SEGUNDO MOVIMENTO- ARREBATAMENTO

“Quero examinar a essência do Tempo, não sua passagem, pois não creio que sua essência possa ser reduzida a seu transcurso. Quero acariciar o Tempo.

  Pode-se amar o Espaço e suas possibilidades: tome, por exemplo, a velocidade, o acetinado e o zunido da espada da velocidade, a glória aquilina de domar a velocidade, o grito de alegria da curva… Eu me deleito sensualmente com o Tempo, com seu estofo e sua largura, com o caimento de suas dobras, com a própria impalpabilidade de sua gaze cinzenta, com a brisa fresca de seu continuum… Bem sei que todos que tentaram alcançar o castelo encantado se perderam na obscuridade ou atolaram no Espaço…”

Na seção passada, a propósito de um dos grandes lançamentos do ano, a tradução de Jorio Dauster para Ada ou Ardor, foram levantados os aspectos negativos do livro: visão esnobe da vida, auto-indulgência do autor e dos protagonistas (um casal de meio-irmãos envolvidos num amor incestuoso), saturação pernóstica da narrativa.

Trata-se do livro mais ambicioso de Vladimir Nabokov, em que ele tentou igualar a ousadia de um Ulisses, de Joyce, ou a amplitude de Em busca do tempo perdido, de Proust. Lembra mais, no entanto, O jogo da amarelinha, de Júlio Cortazar, ou Avalovara, de Osman Lins,  romances onde aspectos geniais convivem com uma incômoda artificialidade, não da estrutura, mas de certas escolhas pontuais, que parecem mais exibicionismo técnico do que uma necessidade orgânica.

Entretanto, ao narrar cem anos da história da família de Van e Ada, misturando elementos do século XIX e XX, da Rússia e dos EUA (e mesmo de certos países da Europa) numa “geografia barroca”, projetando o espaço para outro planeta, Nabokov, a quem se pode acusar de antipaticamente esnobe, também faz valer outro aspecto do seu aristocratismo, moral e estético: o requinte com que descreve o amor, a paixão e o erotismo. Um requinte que não foge dos detalhes fisiológicos, incorporando-os de maneira sensacional e intensamente real, um efeito desconcertante num livro em que as armadilhas e reconstruções da memória é que dão o tom (“naquele momento, ele cuidava de colecionar as imagens de que se relembraria no futuro”).  Nesse sentido, poucas cenas da ficção  são tão genuinamente eróticas como aquelas em que Van narra a tortura excruciante da sua excitação ao ficar debruçado sobre a “prima” enquanto ela desenha insetos, sua paixão. Sem contar a extraordinária primeira vez em que a mãe dela e o pai dele transam, entre cenas de uma peça na qual ela é a estrela ele, ao possuí-la fica maravilhado “com o breve abismo de absoluta realidade entre duas falsas figurações de vida fictícia”. Que estilo!

E, apesar dos seus excessos, a própria narrativa de Ada é de um requinte inexcedível, com o desdobramento de Van em 1a. e 3a. pessoa, e com comentários de Ada entremeando-se no fio da sua evocação do passado familiar.

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos, em oito de outubro de 2005)

Alçapões invisíveis de onde surge a borboleta esquecida da revelação

 

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Quando comentei O grande Gatsby em resenha anterior, não obstante o lançamento oportuno de duas novas traduções do romance e minha admiração por ele, foi muito em função de ele ser o núcleo de uma das partes de Lendo Lolita em Teerã,  livro que mostra a fidelidade à literatura mesmo no momento mais adverso. Embora a obra de Azar Nafisi aborde, além de Fitzgerald, textos de Henry James e Jane Austen, seu centro mesmo, a partir do título, e mesmo porque a autora iraniana é especialista nele, está em Vladimir Nabokov (1899-1977).

Lolita (1955), um dos livros que mais amo, será preterida aqui por outra obra-prima nabokoviana, Fogo Pálido (1962), cuja tradução (realizada com uma perícia incrível, por Jorio Dauster & Sergio Duarte) acaba de ser reeditada pela Companhia das Letras, quase 20 anos após ter sido um memorável acontecimento editorial (e pessoal) de 1985, ao ser lançada pela Guanabara. Ainda lembro da minha primeira leitura, que coincidiu com a vitória de Jânio Quadros sobre Fernando Henrique Cardoso na disputa pela prefeitura de São Paulo.

Nabokov conseguiu aquele feito raro: o romance absolutamente original. Seu narrador (nada confiável), Charles Kinbote (ou um mero professor Botkin!) se apropria do último manuscrito do célebre John Francis Shade, justamente o poema intitulado Fogo Pálido, pois acredita que ele contenha elementos da sua própria biografia. Decepcionado ao descobrir que se enganara, edita o poema com um aparato crítico (prefácio, notas, índice remissivo) –que forma a estrutura do romance—cuja finalidade manifesta é desentranhar do poema de 999 versos decassílabos as referências a ele mesmo, Kinbote. Supostamente, ele seria o exilado, erudito e sodomita rei de Zembla, destronado por uma revolução e perseguido por um assassino esquerdista, Gradus, que acabaria por matar Shade.

Seria isso verdade? Ou seria a loucura de um megalômano intelectual que despreza o meio universitário e acadêmico em que vive (descrito, aliás, de forma engraçadíssima e mortífera). Em Lendo Lolita em Teerã, Azar Nafisi justifica sua  “relação especial” com Nabokov, “a despeito das dificuldades de sua prosa”: “Seus romances são moldados em torno de alçapões invisíveis, lacunas repentinas que constantemente puxam o tapete sob os pés do leitor. Eles são repletos de desconfiança sobre o que chamamos de realidade da vida diária, um senso aguçado da inconstância e fragilidade daquela realidade”. O “rei” de Zembla nos diz, por sua vez: “…sei fazer algo de que somente um artista é capaz: lançar-me sobre a borboleta esquecida da revelação, afastar-me abruptamente do hábito das coisas, ver a teia do mundo e a trama dessa teia”.

E através dele Nabokov proporciona uma das maiores experiências de leitura da história da ficção: perde-se muito com a leitura linear de Fogo Pálido, é preciso dizer. Muito mais fascinante e proveitoso é seguir o seu ritmo louco, aberto e caleidoscópico (a borboleta esquecida da revelação): uma nota remete à outra, e obriga sempre a reler os trechos do poema, sem contar as vezes em que nos leva ao índice remissivo. Por exemplo, o comentário do verso 17 remete à nota sobre o verso 596, que remete  aos versos 628 a 631 etc etc… Estamos longe, decerto, da “placidez da erudição” que, alega Kinbote, alimenta seus comentários. Estamos mesmo é sob a majestade da palavra poética, esta sim bastante real. Como ele prova triunfalmente ao mostrar a movimentação do assassino Gradus rumo à consumação do destino de John Francis Shade: “Embora Gradus usasse os mais variados meios de transporte…. a força que o impulsiona é a ação mágica do poema de Shade, o mecanismo e o ímpeto próprios dos versos, o poderoso motor do decassílabo. Nunca antes o avançar inexorável do destino recebeu forma tão sensual”. Ou ainda: “Acompanharemos Gradus  constantemente em nossos pensamentos, enquanto ele se desloca da longínqua e indistinta Zembla aos verdes Apalaches, ao longo de todo o poema, seguindo os caminhos de seu ritmo, cavalgando uma rima, dobrando a esquina de um enjambement, tomando fôlego num hemistíquio… escondendo-se entre duas palavras, desaparecendo no horizonte de um novo canto, aproximando-se sempre no compasso da métrica…”

Se a loucura tem esse estilo, quisera eu ser rei em Zembla.

(rezembla publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 18 de dezembro de 2004)

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