

“Uma escolha fluida, a escolha da fantasia, é derramada no chão e endurece instantaneamente: adquiriu seu formato inegável…” (de As crianças ficam)
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 15 de outubro de 2013)
Ninguém pode se queixar, desta vez, de que o Nobel tenha contemplado um autor “obscuro”, de algum país praticamente desconhecido, e do qual não há traduções circulando. No Brasil, por exemplo, já foram publicados quatro títulos de Alice Munro: Ódio Amizade Namoro Amor Casamento; Fugitiva; Felicidade Demais e O amor de uma boa mulher[1], este último editado agora em 2013, embora mais antigo que os demais: foi lançado originalmente em 1998.
São oito histórias que demonstram como é indiscutível a escolha de um dos nomes mais extraordinários da literatura contemporânea. Quem não conheça o universo dessa canadense octogenária poderá estranhar, ao começar a leitura do conto-título, que abre o volume, o andamento do relato: em 1951, três meninos (Bud Salter, Jimmy Box, Cece Ferns) encontram um carro emborcado no rio, com o cadáver do Dr. Willens, optometrista local. Antes de espalhar a notícia, cada um vai para sua casa, e conhecemos as diferenças entre as suas famílias, em sua dinâmica interna e quanto à reputação delas na região (pois todos se conhecem, se vigiam, sabem aparentemente de tudo o que há para saber uns sobre os outros)[2]; logo a seguir, conhecemos Enid, uma moça que teima em ser diferente (segue o caminho da santidade, comenta desdenhosamente sua mãe: “… às vezes é um trabalho dos diabos, esse negócio de ser mão de uma santa”), abdicando do casamento e de carreiras mais prósperas, para ser cuidadora de doentes terminais. Assim, ela entra no lar dos Quinn para, ao longo da deterioração física da sua paciente, se dar conta também de sua perversidade e malevolência: “A Sra. Quinn era um caso mais difícil. Se ela se partisse em pedacinhos, lá dentro só se encontraria uma forma lúgubre de malícia, só podridão” . Ou será a visão fanática e puritana da própria Enid, a “boa mulher”, que a levará depois a uma decisão perigosa e masoquista?[3]
Estamos na mesma história, aquela dos meninos? Sim, como o leitor paciente descobrirá. Um dos encantos de Alice Munro é a maneira como ela vai montando pequenos porém intrincados quebra-cabeças narrativos, e esse é um dos melhores exemplos de sua arte.


E é assim com cada texto de O amor de uma boa mulher.São todos, sem exceção, do mais alto nível. Será, portanto, uma questão essencialmente de preferência pessoal eu indicar como destaques duas narrativas em primeira pessoa: Antes da mudança e A ilha de Cortes.
No primeiro, após ter um filho clandestino (de uma relação com um professor de teologia[4]), a narradora volta a viver com o distante e desconcertante pai (“Meu pai chama o filho desse sobrinho pelo nome do sobrinho. Faz isso com todo mundo. Refere-se às lojas e aos negócios na cidadezinha pelo nome do dono anterior ou mesmo de um antecessor. Isso é mais do que um simples lapso de memória: está mais próximo da arrogância. Ele se põe acima da necessidade de conhecer o que se passou. Da necessidade de registrar as mudanças. Ou as pessoas”), descobrindo que ele é o aborteiro local. Para completar o quadro, há uma das figuras rústicas e insondáveis, tão comuns nessa “wonderland” às avessas que nossa Alice desentoca, a Sra. Barrie, a empregada da casa. Estamos na fronteira entre Tchekhov e Stephen King.
Já no segundo, temos mais um segredo oculto por detrás do decoro e das conveniências: uma vizinha toda empertigada se intromete na vida de um jovem casal até que, depois de ter “empregado” a narradora para cuidar do marido inválido (o qual, através do manuseio de antigos recortes de jornais, fornece a ele os indícios de um crime, ocorrido na ilha do título[5]), passa a uma atitude de hostilidade que beira o desvario:
“Ah, ela se acha tão esperta. Não consegue nem manter dois quartos limpos. Quando varre o chão, tudo que faz é empurrar a poeira para um canto”.
Quando comprei minha primeira vassoura, esqueci de comprar uma pá de lixo e, durante algum tempo, fiz mesmo aquilo. Mas ela só poderia saber se tivesse entrado em nossos quartos com outra chave enquanto eu estava na rua. O que, evidentemente, foi o que ela fez.
“Ela é uma falsa, você sabe. Bastou olhar para ele e vi que era uma falsa. E mentirosa. Não é boa da cabeça. Ficava lá sentada e dizia que estava escrevendo cartas, mas escrevia as mesmas coisas uma porção de vezes. E não eram cartas, eram as mesmas coisas várias vezes. Tem um parafuso a menos”.
Com isso entendi que ela havia desamassado as páginas jogadas na minha lata de lixo.
São enredos primorosos no descortínio de mentalidades que vão se entrechocando na passagem das gerações, do rural para o urbano, dos costumes petrificados para a liquidez da modernidade, criando um palimpsesto cronológico que casa perfeitamente com o andamento enviesado da narrativa. E sempre um apetite vigoroso pela intriga, por ambientes e personagens que, com maestria, ganham a nitidez de lugares onde vivemos e de pessoas que conhecemos.
Outro ponto alto é As crianças ficam, no qual a protagonista, Pauline, em férias com a família (filhas, marido e os pais deste último), foge com o diretor da montagem amadora de uma peça na qual ela desempenha o papel de Eurídice (aquela que Orfeu tenta resgatar da morte)[6]:
Os pensamentos que lhe vinham sobre Jeffrey absolutamente não eram pensamentos—e sim algo mais parecido com alterações em seu corpo. Isso podia acontecer quando estava sentada na praia (…), quando torcia as fraldas depois de lavadas ou quando ela e Brian visitavam os pais dele. No meio de partidas de Monopólio, de Scrabble e de buraco. Ela continuava a falar, ouvir, trabalhar e vigiar as crianças enquanto alguma recordação de sua vida secreta a perturbava como uma explosão radiante. Era então invadida por uma sensação de calor que ocupava todos os seus vazios e a reconfortava. Mas não durava muito, o alívio se dissipava e ela se sentia como uma avarento que vê seus ganhos repentinos desaparecerem, e não imagina que a sorte possa voltar a alcançá-lo.
Nesse, como e em outros momentos da obra de Alice Munro, ela me pareceu bem próxima dos romances admiráveis de Anne Tyler. Os laços afetivos em ambas são fortes e concretos, mas elas também apresentam o seu lado inquietante—o fato de que essas relações são, no fundo, uma alternativa escolhida entre outras:”Havia um outro tipo de vida que ela poderia ter tido—o que não era o mesmo que dizer que teria preferido assim”, lemos num dos melhores contos de Ódio Amizade Namoro Amor Casamento (2001), coletânea que a apresentou ao leitor brasileiro.

Em O sonho de mamãe, que fecha O amor de uma boa mulher, somos apresentados a uma família de mulheres que recebe em casa a viúva do irmão (morto na guerra), que logo terá uma criança—a narradora da história (mesmo que, no campo dos acontecimentos aí narrados, ela seja apenas um bebê):
Minha mãe—Jill—está de pé junto à mesa da sala de jantar banhada pela luz intensa do final da tarde. A casa está cheia de pessoas convidadas a irem lá após o serviço fúnebre na igreja. Estão bebendo chá ou café enquanto tentam segurar os diminutos sanduíches ou fatias de pão de banana, bolo de nozes e bolo inglês. As tortas de creme ou de passas, com sua massa farelenta, precisam ser comidas com um garfo de sobremesa e os pratinhos de porcelana com desenhos de violetas pintados pela sogra de Jill quando noiva. Jill pega tudo com os dedos. Migalhas de massa caíram, uma passa caiu, e o veludo verde do vestido ficou manchado. É um vestido quente demais para aquele dia, e absolutamente não é um vestido para mulheres grávidas e sim um tipo de túnica larga feita para os recitais, quando ela toca violino em público. A bainha está levantada na frente por minha causa. Mas é a única coisa suficientemente folgada e apresentável que ela em para usar nas cerimônias fúnebres do marido.
Mais uma vez pensamos: a mágica não pode se repetir indefinidamente, ela não será capaz de criar mais um momento incrível que parece conter a vida inteira (gerações, passagem do tempo, conflitos e recalques entre membros de uma família e de uma comunidade, ou seja, a vida de todo dia que vivemos). E, presto!, novamente ficamos estupefatos com o número de ilusionismo. Se isso não é gênio (pelo menos na área da ficção), não sei o que mais poderá ser.
______________
VER TAMBÉM NO BLOG:
https://armonte.wordpress.com/2013/10/11/alice-munro-e-o-unidunite-dos-afetos-odio-amizade-namoro-amor-casamento/


TRECHOS SELECIONADOS
Quando tinha quatro ou cinco anos, Enid disse à sua mãe que havia ido ao escritório do pai e o vira sentado atrás da escrivaninha com uma mulher no colo. Tudo de que ela se lembrava daquela mulher, tanto na época quanto agora, se resumia ao fato de que ela usava um chapéu com muitas flores e um véu (algo bem fora de moda mesmo então), além de que a parte de cima do vestido ou da blusa estava desabotoada e um seio nu se projetava para fora, com o bico desaparecendo na boca do seu pai. Contara isso à mãe com a absoluta certeza de que havia visto a cena, dizendo a ela: “Uma frente dela estava enfiada na boca do papai”. Não conhecia a palavra que designava seios, embora soubesse que vinham em pares.
Sua mãe disse: “Vamos, Enid. Do que você está falando? O que é essa tal de frente?”
“Igual a uma casquinha de sorvete”, respondeu Enid.
Foi desse jeito que ela viu, exatamente. Ainda podia ver desse jeito. O cone cor de biscoito com sua porção de sorvete de baunilha apertada contra o tórax da mulher, a outra ponta espetada na boca do pai.
Sua mãe fez então algo muito inesperado. Abriu o vestido e pôs para fora um objeto esmaecido, que sacudiu com a mão. “Como isso aqui?”
Enid disse que não. “Uma casquinha de sorvete”.
“Então foi um sonho”, disse sua mãe… (trecho de O amor de uma boa mulher)
Em todas as visitas que fizera durante aquela viagem, sempre tinha havido um momento de séria decepção. O momento em que se dava conta de que a pessoa com quem estava falando, a pessoa que se esforçara para encontrar, não ia lhe dar o que quer que ele tinha ido buscar. O velho amigo que visitou no Arizona estava obcecado pelos perigos da vida apesar de viver numa mansão dentro de um condomínio fechado. A mulher desse velho amigo, que tinha mais de setenta anos, queria lhe mostrar fotografias dela e de outra mulher fantasiadas de dançarinas de cabaré no tempo da Corrida do Ouro (…) E os filhos, agora adultos, estavam totalmente imersos em suas próprias vidas. Isso era bem natural e não o surpreendia. A surpresa estava em que essas vidas, as vidas de seus filhos e de sua filha, pareciam fechadas, de certa forma previsíveis. Até mesmo as mudanças que ele podia antever ou lhe foram anunciadas—Noelle estava prestes a deixar seu segundo marido—não era muito interessantes. Ele não havia admitido isso para Deborah—e quase nem mesmo para ele próprio—porém era verdade. E agora Sonje. Sonje, de quem ele nunca gostara muito, de quem sempre guardara certa desconfiança, mas a quem respeitara por ter um quê de mistério—Sonje se tornara uma velha tagarela com um parafuso a menos. (trecho de Jacarta)
Eu e Chess vínhamos de famílias onde o sexo antes do casamento era visto como repugnante e imperdoável, enquanto o sexo depois do casamento aparentemente nunca era mencionado, sendo via de regra logo esquecido. Quando a mãe de Chess encontrou camisinhas em sua mala de viagem, foi chorando falar com o pai dele (…) Por isso, ter um lugar nosso e uma cama nossa, onde podíamos fazer o que bem quiséssemos, parecia maravilhoso. Tínhamos feito um pacto em favor da lascívia, mas nunca nos ocorreu que pessoa mais velhas—nossos pais, tias e tios—pudessem ter feito a mesma barganha, por lascívia. Imaginávamos que o maior desejo deles tinha a ver com casas, terrenos, cortadores de grama motorizados, freezers e muros de sustentação. E, naturalmente, no que tange às mulheres, com bebês. No futuro, pensávamos, todas essas coisas poderiam ser escolhidas, ou não escolhidas, por nós. Nunca pensamos que elas nos viriam inexoravelmente, como a idade ou as condições meteorológicas.
E quando agora penso nisso com toda a honestidade, não vieram. Nada aconteceu sem que quiséssemos. Nem a gravidez. Arriscamos ter um filho só para ver se éramos de fato adultos, se isso realmente podia acontecer. (trecho de A Ilha de Cortes)
Preferiu não mencionar o fragmento de muro que vira acima dos arbustos. Por que se dar ao trabalho, quando havia tantas coisas que ela achava melhor não mencionar? Primeiro, a brincadeira com Philip, que acabou por excitá-lo demais. E quase tudo sobre Harold e seus companheiros. Tudo, sem a menor exceção, acerca da garota que pulara para dentro do carro.
Há pessoas que levam a decência e o otimismo sempre com eles, que dão a impressão de limpar a atmosfera nos lugares em que estão. A elas não se devem dizer certas coisas, é muito perturbador. Apesar de sua simpatia naquele momento, Ian parecia a Eve uma dessas pessoas (…) Antes, eram as pessoas mais idosas que demandavam esse tipo de proteção, mas parecia que cada vez mais era o caso dos jovens, e alguém como Eve tinha que tentar não revelar como estava em situação difícil: toda sua vida podia ser vista como uma forma inapropriada de se debater, um erro radical.
Ela podia dizer que a casa fedia, que o dono e seus amigos estavam bêbados e pareciam gente vil, mas não que Harold estava nu e nunca que ela própria teve medo. E nunca do que ela teve medo.
Philip estava encarregado de recolher as espigas debulhadas e jogá-las ao longo da borda do campo (…) não acrescentara nada à história de Eve e nem parecera se importar com o relato. Mas, depois que a história acabou e Ian (interessado em colocar aquela historinha local no contexto de seus estudos profissionais) perguntou a Eve o que ela sabia sobre a desintegração dos velhos padrões da vida nas cidadezinhas e no campo, sobre a expansão do chamado agronegócio, Philip enfim ergueu os olhos da sua tarefa de se abaixar e se arrastar no meio dos pés dos adultos. Ele olhou para Eve. Um olhar neutro, um momento de vazio conspiratório, um sorriso submerso, tudo se passando rápido demais para que precisasse ser reconhecido.
O que significava aquilo? Simplesmente que ele começara o trabalho íntimo de armazenar e esconder, decidindo por conta própria o que devia ser preservado e como, o que tais coisas iriam significar para ele, no seu futuro desconhecido. (trecho de Salve o ceifador)

Suas filhas cresceram. Não a odeiam por ter ido embora ou por ter ficado longe delas. Também não a perdoam. Talvez não a perdoassem de qualquer modo, mas seria por algo diferente.
Caitlin se recorda um pouco do verão na pousa, Mara nem um pouco (…) “O lugar onde a gente estava quando você foi embora”, ela diz. “Mas só soubemos depois que você foi embora com Orfeu”.
“Não foi com Orfeu”, diz Pauline.
“Não foi com Orfeu? Papai costumava dizer que foi. Ele dizia: “E aí sua mãe fugiu com Orfeu”.
“Então estava brincando”, diz Pauline.
“Sempre pensei que tinha sido Orfeu. Quer dizer que foi com outra pessoa”.
“Foi alguém ligado à peça. Com quem vivi durante algum tempo”.
“Mas não Orfeu”.
“Não. Nunca ele”. (trecho de As crianças ficam)
“Acho que a mãe de Karin está vindo jantar”, disse Derek. “Silêncio, silêncio. Será que é o carro dela chegando?”
“Ah, meu Deus, eu devia pelo menos lavar o rosto”, disse Ann. Pôs de lado as verduras e subiu correndo a escada.
Derek se aproximou da vitrola e repôs a agulha no início do disco. Quando a música recomeçou, saiu para receber Rosemary, coisa que não costumava fazer. A própria Karin tinha pensado em correr para recebê-la. Mas, ao ver Derek tomar a iniciativa, abandonou a ideia. Em vez disso, seguiu Ann escada acima. Porém, não até o fim. Havia uma janelinha no patamar intermediário onde ninguém parava e por onde ninguém costumava olhar. Como a janela tinha uma cortina, não era possível que alguém pudesse vê-la.
Chegou tão depressa que viu Derek cruzar o gramado e atravessar a abertura de cerca viva. Passos largos, ansiosos, furtivos. Chegaria a tempo de se inclinar e abrir a porta do carro, abri-la com um floreio e ajudar Rosemary a sair. Karin nunca o vira fazer aquilo, mas sabia que ele tencionava fazê-lo agora.
Ann ainda estava no banheiro. Karin podia ouvir o chuveiro. Teria alguns minutos para observar sem ser perturbada.
Ouviu então a porta do carro se fechar. Mas não suas vozes. Impossível, com a música invadindo toda a casa. E eles não tinham surgindo na abertura da cerca. Ainda não. E ainda não. E ainda não. (trecho de Podre de rica)
O advogado de meu pai diz que é muito “incomum”. Entendo que, para ele, essa é uma palavra bem forte e suficiente.
Há dinheiro bastante na conta bancária de meu pai para cobrir as despesas do enterro. O suficiente para despachá-lo , como dizem alguns (não o advogado, ele não fala assim). Mas não sobra muito mais. Não há certificados de ações no cofre particular do banco, nenhum registro de investimentos. Nada. Nenhuma doação testamentária para o hospital, para a igreja ou para a escola criar uma bolsa. O que é ainda mais chocante, nenhum dinheiro a ser dado à Sra. Barrie. A casa e o que há dentro dela pertencem a mim, e isso é tudo. Tenho ainda meus cinco mil dólares.
O advogado parece pouco à vontade, penosamente embaraçado e mesmo preocupado com a situação. Talvez pense que eu suspeito de seu comportamento, que vá tentar denegrir seu nome. Quer saber se existe algum cofre na casa, qualquer esconderijo onde pudesse estar uma alta soma em dinheiro vivo (…)
Digo-lhe que não estou terrivelmente preocupada com o dinheiro.
Que coisa horrorosa de dizer! Ele mal consegue olhar nos meus olhos. (trecho de Antes da mudança)
Uma vez retirada as bandagens e depois de ela ter verificado que sua barriga já estava bem lisa, Jill olhou para suas mãos. O inchaço parecia ter desaparecido por completo. Ela desceu a escada, pegou o estojo no armário do hall e retirou o violino. Estava pronta para tentar algumas escalas.
Era uma tarde de domingo. Iona se deitara para tirar uma soneca, sempre alerta para qualquer ruído que eu pudesse fazer. A Sra. Kirkham também estava deitada. Ailsa pintava as unhas na cozinha. Jill começou a afinar o violino.
Meu pai e sua família não tinham o menor interesse por música. Na verdade, ignoravam isso. Pensavam que a intolerância ou mesmo a hostilidade que sentiam com relação a certo tipo de música (visível até mesmo no modo como pronunciavam a palavra “clássica”) se fundamentavam na força de caráter, na integridade e na determinação de não se deixarem enganar. Como se qualquer música que fosse além de uma simples canção encerrasse uma tentativa de tapeá-los, coisa de que todo mundo no fundo sabia, embora algumas pessoas—por pretensão, falta de simplicidade e honestidade—jamais o admitissem. Sobre essa artificialidade e essa tolerância covarde se erguia o mundo das orquestras sinfônicas, das óperas, do balé e dos concertos que faziam todos dormirem.
A maior parte dos habitantes da cidadezinha pensava o mesmo. No entanto, por não ter nascido lá, Jill desconhecia a profundidade desse sentimento, e como aquilo era aceito sem discussão. Meu pai nunca exibiu sua opinião (…) Gostara da ideia de Jill ser uma instrumentista não por causa da música propriamente dita, mas porque isso a tornava uma escolha estranha, como suas roupas, seu estilo de vida, seus cabelos não-domesticados. Ao escolhê-la, ele mostrava às pessoas o que pensava delas. Mostrava às garotas que haviam tido a esperança de fisgá-lo. Mostrava a Ailsa. (trecho de O sonho de mamãe)

[1] The Love of a Good Woman, que citarei utilizando a tradução de Jorio Dauster (os títulos originais dos contos, além daquele que dá o título à coletânea, são–pela ordem: Jakarta; Cortes Island; Save the reaper; The children stay; Rich as stink; Before the change e My mother´s dream.
[2] O que já é indicado na passagem que indica o prazer que é para os meninos perambular pelo local onde encontram o corpo:
“Outra mudança nas conversas que tinham por lá era o fato de praticamente pararem de usar nomes. Já não costumavam empregar muito seus nomes verdadeiros e nem mesmo os apelidos dados pelas famílias, tal como Bud. Mas, na escola, quase todo mundo ganhava outro nome, alguns dos quais relacionados à aparência ou à maneira de falar da pessoa, como Quatro Olhos ou Pato Rouco. Outros, como Cu Ralado e Fode Galinha, derivavam de acontecimentos reais ou imaginários na vida de quem recebia o apelido ou na de seus irmãos, pais e tios, pois tais nomes eram transmitidos de geração em geração. Mas tudo isso era deixado de lado quando se encontravam no mato ou nos remansos do rio. Se precisavam chamar a atenção de um companheiro, tudo que diziam era Ei! Até mesmo o uso de nomes que os adultos não deviam ouvir, por serem ofensivos e obscenos, prejudicaria a sensação que tinham naquelas ocasiões de absoluta familiaridade com a aparência, os hábitos, a família e a história pessoal de cada um.
E nem por isso se imaginavam como amigos. Nunca teriam designado alguém como seu melhor amigo ou segundo melhor amigo, nem alterado as hierarquias de tempos em tempos, como as meninas faziam. Pelo menos uma dúzia de outros garotos poderia substituir qualquer um daqueles três, sendo aceitos da mesma forma…”
[3] “Seria possível alguém inventar alguma coisa tão pormenorizada e diabólica? A resposta é sim. A mente de um enfermo, de um moribundo, podia ficar repleta de coisas sujas e organizá-las de forma muito convincente. A mente da própria Enid, quando ela dormia naquele aposente, se enchera das invenções mais nojentas, de sujeira pura. “
[4] Que é, supostamente, o interlocutor da narrativa, um recurso bastante eficiente, já que ao mesmo tempo que mostra a cumplicidade “moderninha” e anti-tacanha do casal, mostra também, progressivamente, o seu avesso, o apego dele às convenções:
Fiquei pasma com esses argumentos, que não pareciam consistentes com as ideias da pessoa que eu tinha amado. Os livros que havíamos lido, os filmes que havíamos visto, as coisas sobre as quais tínhamos conversado—perguntei se nada disso tinha importância para você. Você disse que sim, mas a vida era mesmo dura (…) Senti desprezo. Senti desprezo quando vi você se enfiando por baixo do carro, as abas do casaco adejando em volta do seu traseiro. Você tateava na neve em busca do anel, e ficou muito aliviado quando o encontrou..
A certa altura, ela pergunta: Quem é esse “nós” de que venho falando?

[5] O primeiro indício sobre os eventos da ilha é fornecido numa das conversas “fiadas” que a Sra. Gorrie insiste em manter com sua vizinha mais jovem e indefesa quanto à sua índole invasiva:
“Mesmo quando eu vivi longe da civilização, sempre gostei de…” Minha necessidade de bocejar ou gritar se acalmou por um instante. Onde ela teria morado para dizer que era longe da civilização? E quando?
“Ah, lá para o norte da costa”, ela respondeu. “Também já fui recém-casada faz muito tempo. Vivi lá durante anos. Union Bay. Mas isso nem era tão longe de tudo. Ilha de Cortes”.
Perguntei onde era essa ilha e ela disse: “Ah, lá onde Judas perdeu as botas”.
“Deve ter sido interessante”, comentei.
“Ah, muito interessante… Se você acha ursos interessantes. Se acha pumas interessantes…”
Como outros contos da autora, aqui há uma jovem escritora. E o alter ego negativo sempre capitula diante da domesticidade, abdicando dessa incursão pelo imaginativo, por falta de talento e absorção pelo casamento (isso a irmana a algumas estratégias da obra de Doris Lessing, que também utiliza esse recurso de um alter ego negativo, é só lembrar—entre outros casos—de Martha Quest, da série Os filhos da violência fugindo de um casamento medíocre, optando pelo ativismo político e depois se tornando para o resto da vida uma espécie de governanta sempre à mão na casa de A cidade de quatro portas, o volume final da série).
Com relação à reverberação de um lugar distante, um ponto geográfico marcado por certo exotismo, dentro dos acontecimentos da narração, esse conto faz par com o anterior, Jacarta, no qual um dos maridos morre (ou na verdade não morreu, apenas deu um jeito de se evadir?) na cidade do título.
[6] E parece que mais do que “entrar na personagem”, como se diz, ela aprecia “sair da sua vida”, tornando-se a observadora de fora, muito presente nos contos de Alice Munro (pelo menos, nos que eu li). Durante os intervalos de ensaio, quando sai para comprar refrigerantes e café para o grupo: Apreciava a curta caminhada pelas ruas vazias, sentia como se tivesse se tornando um ser urbano, alguém apartado e solitário, que vivia no fulgor de um sonho importante.
