MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

02/12/2012

PRA INGLÊS VER: primeira parte (Borges)

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 09 de fevereiro de 1999)

A pergunta diante de O homem no espelho do livro  (a tradução de Fábio Fernandes  para The man in the mirror of the book: a life of Jorge Luis Borges, Inglaterra-1996), de James Woodall,é a seguinte:  ela ajudará a compreender o feitiço dos textos do incomparável autor argentino? Os dados biográficos permitirão  uma maior compreensão da maneira como Ficções (1944) e O Aleph (1949) revolucionaram a literatura, de um modo que qualquer lista sensata dos dez maiores autores do século XX não pode deixar de lado o seu nome?

A resposta para a pergunta é: não.. Há muitas informações, é claro. Através da prosa ágil de Woodall acompanhamos a família de Borges (que tinha ascendência inglesa) deixando Buenos Aires no começo do século (ele nasceu em 1899) para se fixar alguns anos na Europa; quando retornam à Argentina, Georgie (seu apelido) torna-se um líder da vanguarda modernista e elege a capital como centro de uma mitologia poética muito especial (que deu origem a obras como Fervor de Buenos Aires). Mesmo jovem, ele já impressionava pela vastidão de suas leituras, pela memória espantosa e pela capacidade de conquistas as pessoas pela conversa.

Aos poucos, e principalmente após um acidente, vai perdendo o medo de escrever histórias e, a partir de A aproximação de Almotássim, produz os textos curtos mais fascinantes da literatura contemporânea (com a possível exceção das histórias de Isaac Bashevis Singer).

Vai ficando cego, sofre agruras (e até ignomínias) com  o governo Perón (a quem sempre detestou e continuará atacando vida afora). Seus textos começam a ser traduzidos (primeiro para o francês) e, após o prêmio Formentor, em 1961, consolida seu status como autor mais  influente da segunda metade do século, antes mesmo do boom da literatura hispano-americana (que beneficiou mais autores como Cortázar e García Márquez).

Pena que a análise de textos seja muito pobre, quando não meramente descritiva, em O homem no espelho do livro. Não dá para escrever sobre um autor tão voltado para a literatura e produzir coisas vagas do tipo: “Uma das afirmações mais desesperadas de Borges sobre a realidade” (trata-se de A biblioteca de Babel, mas por quê?); “a investigação mais estranha de Borges nos mistérios da ontologia” (As ruínas circulares, mas por quê?).

A mediocridade do background literário (contrariando a promessa do belo título), que o próprio Woodall admite já de saída, dá as mãos a uma inoportuna e irrelevante hipertrofia da sexualidade de Borges, ou melhor, dos seus problemas sexuais, inclusive uma possível impotência, talvez fonte das afirmações desesperadas sobre a realidade ou das investigações estranhas nos mistérios da ontologia.

E talvez isso não fosse tão problemático se o tempo todo Woodall não insinuasse que provavelmente Borges tivesse sido mais feliz e realizado, se superasse suas inibições sexuais ao invés de sublimar tudo no seu tipo de imaginário ficcional muito peculiar, onde mal aparecem problemas cotidianos ou temas como amor e sexo.

Mas elementar, meu caro Woodall, então ele não teria sido Borges e nulo seria o interesse por sua vida. Não é possível acreditar seriamente que o caminho para se compreender um conto como O Aleph, uma das obras-primas do autor de Elogio da sombra, seja um amor não-correspondido e que o Aleph do conto seja uma sublimação do orgasmo, que Borges tanto temia.

Há muitas pessoas mal amadas, tristes, mal resolvidas sexualmente, por esse mundão de Deus. Se esse fosse o cerne da vida de Jorge Luis Borges (um homem que só queria, no fundo, mas bem no fundo, ser feliz e nada mais, parece ser a “mensagem” do livro), em que ela poderia interessar a um apaixonado por literatura, ou uma pessoa que leu seus grandes textos sem saber nada das circunstâncias biográficas?

O fracasso de biografias como O homem no espelho do livro é que, ao invés de tentar fazer o leitor compreender o conjunto de circunstâncias e o processo interno que fazem um gênio, parecem ao contrário diminuir a genialidade através de detalhes comezinhos e rasos. Ou será que o fato de Borges ter sido um bocó de mola com as mulheres pode obliterar o deslumbramento que um leitor de, digamos, Sri Lanka, pode estar tendo neste exato momento com textos como A morte e a bússola, A escrita do Deus, O jardim de sendas que se bifurcam, O imortal, Os tigres azuis e tantos outros? Ou então servirá de alerta a jovens escritores: sejam felizes, não apostem tudo na literatura.

Aliás, é bom aproveitar esse deslumbramento meramente literário antes que se concretize a já perceptível indústria Borges, made in Kodama, cuja denúncia velada talvez seja uma das poucas qualidades da empreitada de Woodall.

(LEIA TAMBÉM: https://armonte.wordpress.com/2011/03/22/pra-ingles-ver-segunda-parte-machado/
https://armonte.wordpress.com/2011/03/22/pra-ingles-ver-terceira-parte-entre-a-providencia-divina-e-os-comerciantes-britanicos/)

07/11/2012

FICÇÕES: a cultuada blasfêmia dos subúrbios

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 05 de abril de 2008)

“… Em Borges é como se tudo se tivesse desgarrado de todo contexto histórico, para existir em absoluta autonomia com relação à realidade…”

Quando escreveu tais palavras (que fazem parte do ensaio que serviu como intróito para uma das várias edições da tradução de Carlos Nejar publicadas pela Globo), Davi Arrigucci Jr. não imaginava que viria a ser o novo tradutor de Ficções, de Jorge Luis Borges, um livro cultuado mundialmente, como provam as afirmações seguintes do mais especial dos seus admiradores: “Se tivesse de apontar quem na literatura realizou perfeitamente o ideal da exatidão de imaginação e de linguagem construindo obras que correspondem à rigorosa geometria do cristal e à abstração do raciocínio dedutivo, diria sem hesitar: Borges… textos contidos em poucas páginas, com exemplar economia de expressão… seus contos adotam freqüentemente a forma exterior de algum gênero da cultura popular, formas consagradas por longo uso, que as transforma quase em estruturas míticas.”(Italo Calvino).

Também eu, mais modestamente, tenho já meu quarto de século de prazeres e descobertas dos 16 contos (nas últimas edições excluiu-se Aproximação a Almotásim), divididos em duas partes: O Jardim de Veredas que se Bifurcam (1941) e Artifícios (1944). Cada uma apresenta contos inesgotáveis. Na primeira, o mais famoso é A Biblioteca de Babel, mas há também o conto-título, As Ruínas Circulares, Pierre Menard, Autor do Quixote, e o conto de abertura, o originalíssimo Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, que começa inesquecivelmente: “Devo à conjunção de um espelho com uma enciclopédia a descoberta de Uqbar (depois de ler isso não há como parar); na segunda, temos O Sul, Funes, o memorioso, Tema do Traidor e do Herói, O Milagre Secreto, e principalmente aquele que, numa escolha pessoal, ocupa o lugar de honra: A Morte e a Bússola.

É uma mistura de paródia de história policial com conto filosófico (e pensar que Ernesto Sabato, a quem o texto desagradava, escreveu que “Borges é um escritor inglês que sai a blasfemar nos subúrbios… de Buenos Aires e da filosofia, que bom para Buenos Aires e para a filosofia): o criminoso Red Scharlach vai transformando a capital argentina numa armadilha para seu arquiinimigo (e duplo), o detetive Erik Lönrot, através de uma série de assassinatos cheios de detalhes elaboradíssimos.

A ironia da história é que a armadilha é bem sucedida justamente devido à vaidade dedutiva de Lönrot, que evoca a dos detetives como Sherlock e Poirot, mas também a do racionalismo cartesiano que crê ser possível pesar, medir e analisar tudo. O clímax acontece na chácara Triste-le-Roy que “abusava de inúteis simetrias e repetições obsessivas, localizada num arrabalde que, de repente, é o cerne da literatura contemporânea (sorry, Sabato): “Por ante-salas e galerias foi dar em pátios iguais e repetidas vezes no mesmo pátio. Subiu por escadas poeirentas e antecâmaras circulares; infinitamente se multiplicou em espelhos opostos; cansou de abrir ou entreabrir janelas que lhe revelavam, de várias alturas e vários ângulos, o mesmo desolado jardim; dentro, móveis com capas amarelas e lustres embalados em tarlatana. Um dormitório o reteve; nesse dormitório, uma única flor num copo de porcelana; ao primeiro toque as pétalas antigas desfizeram-se. No segundo andar, o último, a casa lhe pareceu infinita e crescente…”

No seu ensaio, “Borges ou do conto filosófico”, Arrigucci Jr. mostrava que era um engodo a indiferença de Borges à história, e provava. Mas o que é delicioso, e já inscrito no próprio título do livro, é que Ficções é uma festa do fingido, do artificioso, do engenho fabricado, da intenção de levar uma existência absolutamente autônoma com relação à realidade. Nos tempos que correm, de fixação infantil em reality shows e coisas do gênero, como é saudável haver tais Ficções que não se envergonham de sê-las.  O que enche mesmo a paciência são os imitadores da grande arte borgiana.

03/11/2012

Na “delicada penumbra da cegueira ”: “A CIFRA”, de Borges

“Oh, dias consagrados ao inútil

empenho de esquecer a biografia

de um poeta menor do hemisfério

austral, a quem o fado ou os astros

deram um corpo que não deixa um filho

e a cegueira, que é penumbra e cárcere,

e a velhice, alvorecer da morte,

e o renome, que ninguém merece,

e o hábito de tecer decassílabos

e o velho amor pelas enciclopédias

e pelos finos mapas caligráficos

e pelo marfim tênue e a nostlagia

eterna do latim…

e esse mau costume, Buenos Aires…

e que na tarde, igual a tantas outras,

resigna-se a estes versos.”

 

Passaram-se alguns anos após uma sucessão ininterrupta de livros (O ouro dos tigres, A rosa profunda, A moeda de ferro, História da noite) e em 1981 o agora octogenário Borges reaparece com um livro surpreendentemente ágil e intenso, A cifra, com 45 poemas. Novamente há uma “Inscrição” para María Kodama e um prólogo importante:

“Minha sina é o que se costuma chamar de poesia intelectual… Admirável exemplo de uma poesia puramente verbal é a seguinte estrofe de  Jaimes Freyre: Peregrina paloma imaginária/que avivas os últimos amores / alma de luz, de música e de flores/ peregrina paloma imaginária. Não quer dizer nada e, à maneira da música, diz tudo; exemplo de poesia intelectual é aquela silva de Luis de Leon, que Poe sabia de cor: Viver comigo quero / gozar do bem que devo ao Céu anseio / sem testemunha, austero / de amor e ciúme, alheio / de ódio, de esperança, de receio. Não há uma única imagem. Não há uma única palavra bonita, com a duvidosa exceção de testemunha, que não seja uma abstração.

     Estas páginas procuram, não sem alguma incerteza, uma via intermediária”. 

    O primeiro poema, “Ronda”, não poderia ser mais típico:

 

“O Islã, que foi espadas

que desolaram o poente e a aurora

e um fragor de exércitos na terra

e uma revelação e uma disciplina

e a aniquilação dos ídolos

e a conversão de todas as coisas

em um terrível Deus, que está só…”

 

Na minha leitura das coletâneas, não tive dificuldade de extrair pequenas citações de cada poema. A cifra, no entanto, me deu trabalho: é difícil não transcrever cada poema inteiro.

“O ato do livro” entrelaça Cervantes e sua criação ao Islã: “Será esta fantasia mais estranha que a predestinação do Islã que postula um Deus, ou que o livre-arbítrio, que nos dá a terrível potestade de escolher o inferno?”

    “Descartes” inaugura um tipo de poema comum no volume: aquele que repete em uma seqüência de versos a palavra inicial, dando uma cadência diferente ao livro com relação aos anteriores.

“Talvez um deus tenha me condenado ao tempo, essa

         longa ilusão.

Sonho a lua e sonho meus olhos, que percebem a lua.

Sonhei a tarde e a manhã do primeiro dia.

Sonhei Cartago e as legiões que desolaram Cartago…

Sonhei a geometria.

Sonhei o ponto, a linha, o plano e o volume.

Sonhei o amarelo, o azul e o vermelho.

Sonhei minha enfermiça infância.

Sonhei os mapas e os reinos e aquele duelo ao alvorecer.

Sonhei a inconcebível cor…

Quem sabe eu sonho ter sonhado.

Sinto um pouco de frio, um pouco de medo…

Continuarei sonhando Descartes e a fé de seus pais.”

Dois poemas seguidos, “As duas catedrais” e “Beppo” aludem aos Arquétipos platônicos.

Transcrevo algo de “Beppo”:

“O gato branco e casto se contempla

no luzidio vidro do espelho

e não pode saber que essa brancura

e esses olhos de ouro nunca vistos

antes na casa são sua própria imagem.

Quem lhe dirá que o outro que o observa

é somente um sonho do espelho?

Digo-me que esses gatos harmoniosos,

o de cristal e o de sangue quente,

são simulacros que concede ao tempo

um arquétipo eterno…”

“Ao adquirir uma enciclopédia”, após falar da “dilatada miscelânea que sabe mais que qualquer homem”, ele alude a um  

 

                             “…novo hábito

deste antigo hábito, a casa,

uma gravitação e uma presença,

o amor misterioso pelas coisas

que nos ignoram e se ignoram”.

Em “Duas formas da insônia”, ficamos sabendo que a insônia é “ensaiar com inútil magia uma respiração regular, é o peso de um corpo que bruscamente muda de lado, é apertar as pálpebras, é um estado parecido com a febre e que certamente não é a vigília…é querer mergulhar no sono e não conseguir mergulhar no sono, é o horror de ser e de continuar sendo…”; mas há a insônia pior, a da longevidade, “o horror de existir em um corpo humano cujas faculdades declinam, é uma insônia que se me mede por décadas e não com ponteiros de aço… é não ignorar que estou condenado à minha carne, a minha detestada voz, a meu nome, a uma rotina de lembranças, ao castelhano, que não sei manejar, à nostalgia do latim, que não sei, a querer mergulhar na morte e não poder mergulhar na morte, a ser e continuar sendo”.

“Buenos Aires”, onipresente desde o seu primeiro livro de versos, Fervor de Buenos Aires, publicado nos anos 20:

“Nasci em outra cidade que também se chamava Buenos Aires.

Recordo o ruído dos ferros do portão gradeado.

Recordo os jasmins e o algibe, coisas da nostalgia…

Recordo o que vi e o que me contaram meus pais…

Naquela Buenos Aires, que me deixou, eu seria um estranho.

Sei que os únicos paraísos não proibidos ao homem são os

         paraísos perdidos.

Alguém quase idêntico a mim, alguém que não terá lido esta

         página,

lamentará as torres de cimento e o talado obelisco.”

Em “Hino”:

“Esta manhã

há no ar o incrível aroma

das rosas do Paraíso.

Às margens do Eufrates

Adão descobre o frescor da água,

Uma chuva de ouro cai do céu;

é o amor de Zeus….

Pitágoras revela a seus gregos

que a forma do tempo é a do círculo…

Whitman canta em Manhattan.

Homero nasce em sete cidades.

Uma donzela captura agora

o unicórnio branco.

Todo o passado volta feito onda

e essas antigas coisas reaparecem

porque uma mulher te deu um beijo.”

 

(o8.07.09)

Dentro da mesma linha, acesse também:

https://armonte.wordpress.com/2012/11/02/historia-da-noite-o-que-a-memoria-concede/

https://armonte.wordpress.com/2012/11/01/as-perpetuas-aguas-de-heraclito-a-moeda-de-ferro-de-borges/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/26/borges-e-o-nome-da-rosa/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/25/o-ontem-fatal-e-inevitavel-borges-e-o-ouro-dos-tigres/

 

02/11/2012

HISTÓRIA DA NOITE: O que a memória concede

“…A memória

Me concede esta estampa de um livro

Cuja cor e cujo idioma ignoro…

Às vezes sinto medo da memória.”

“…no tempo repetem uma trama

Eterna e frágil, misteriosa e clara”

“As coisas são seu porvir de pó.

É óxido o ferro. A voz, o eco”

Contrariando seu apego por prólogos,  HISTÓRIA DA NOITE (1977), essa obra-prima que expressa o “recato da melancolia” e reúne 31 poemas começa com uma “Inscrição” dedicada a María Kodama (a quem ele fizera um poema “A lua”). Em compensação, há um “Epílogo”:

“Um volume de versos não passa de uma sucessão de exercícios mágicos. O modesto feiticeiro faz o que pode com seus modestos meios… Trabalhamos às cegas. O universo é fluido e cambiante; a linguagem é rígida.

De todos os livros que publiquei, o mais íntimo é este. É pródigo em referências livrescas; também prodigalizou-as Montaigne, inventor da intimidade… Como certas cidades, como certas pessoas, uma parte muito grata de meu destino foram os livros. Poderei repetir que a biblioteca de meu pai foi o fato capital de minha vida? A verdade é que nunca sai dela, com nunca saiu da sua Alonso Quijano”.

“O algibe. Lá no fundo a tartaruga.

E sobre o pátio a vaga astronomia

Do menino. Essa herdada prataria

Que se espelha no ébano. A fuga

Do tempo, que no início nunca passa.

Um dos sabres que serviu no deserto.

Um grave rosto militar e morto.

O tímido saguão. A velha casa.

Naquele pátio que foi dos escravos

A sombra da parreira, encurvada.

Um tresnoitado assovia na calçada.

No mealheiro dormem os centavos.

Nada. É somente pobre mediania

Que procuram o olvido e a elegia.” (“Buenos Aires, 1899)

A palavra “noite” já aparece no primeiro verso do primeiro poema, “Alexandria 641 a.D.”: “Desde o primeiro Ada que viu a noite…” Também temos o tema da vida virtual, que segue existindo na não-existência:”Ordeno a meus soldados que destruam/ Pelo fogo essa vasta Biblioteca,/Que não perecerá…”. Nesse poema inaugural há um verso belíssimo: “o verso em que perdura a carícia”. E quem diz que o nosso poeta não era um lírico?

“Alguém” homenageia os narradores anônimos que transmitiram o nosso repertório de histórias: “Não sabe (nunca o saberá) que é nosso benfeitor”.

Em “Leões”:

“Nem o esplendor do cadencioso tigre

Nem do jaguar os signos prefixados

Nem do gato o sigilo. Dessa tribo

É o menos felino, e no entanto

Sempre os sonhos dos homens acendeu…”

Em “Endímion em Latmos”: “Inútil repetir-me que a lembrança/ de ontem e um sonho são iguais”, que nos prepara, talvez, para o lindo poema sobre Cervantos/Quijano/Quixote (“Eu nem mesmo sou pó”):

“Não quero ser quem sou. A avara sorte

Deparou-me o século XVII,

O pó e a rotina de Castela,

As coisas repetidas, a manhã

Que, prometendo o hoje, nos dá a véspera…

Sou um homem entrado em anos. Uma página

Casual me revelou não usadas vozes

Que me buscavam, Amadis e Urganda…

Cavaleiros cristãos iam e vinham

Pelos reinos da terra, vindicando

A honra ultrajada ou impondo

Justiça com os gumes da espada.

Queira Deus que um enviado restitua

A nosso tempo esse exercício nobre.

Meus sonhos o divisam. Já o senti

Em minha triste carne celibatária.

Não sei ainda seu nome. Eu, Quijano,

Serei esse paladino. E meu sonho.

Dentro da velha casa há uma adarga

Antiga e uma espada de Toledo

E uma lança e os livros verdadeiros

Que a meu braço prometem a vitória.

A meu braço?Meu rosto (que não vi)

Não projeta nenhum rosto no espelho.

Eu nem mesmo sou pó. Sou aquele sonho

Que entretece no sono e na vigília

O meu irmão e pai, capitão Cervantes,

Que militou nos mares de Lepanto

E soube algum latim e algo de árabe…

A fim de que eu possa sonhar o outro

Cuja verde memória será parte

Da existência dos homens, eu te suplico:

Meu Deus, meu sonhador, segue a sonhar-me.”

Nessa nostalgia do épico, do “rumor de hexãmetros”, que nos traz poemas sobre a Islândia ou Gunnar Thorgilson, temos também a memória do trágico, como no poema sobre “Macbeth” (“…a grande voz de Shakespeare (na qual estão as outras)…”.

“Apenas uma coisa entre as coisas

Mas também uma arma. Foi forjada

Na Inglaterra, em 1604,

E carregada com um sonho. Encerra

Som e fúria e noites e escarlate.

Minha palma a sopesa. Quem diria

Que contém o inferno: as barbadas

Bruxas que são as parcas, os punhais

Que executam as leis da sombra…

Esse tumulto silencioso dorme

No espaço de um daqueles livros

Da sossegada estante. Dorme e espera.” (“Um livro”)

E voltamos também aos compadritos, aos duelos de punhais dos arrabaldes, ao passional que movimenta o tango, o compadrito Ezequiel Tabares que quer se vingar, em 1890, do homem que lhe roubou a mulher: “Faz tempo que não se lembra da mulher; só pensa no outro… Sem que ele saia, Buenos Aires cresceu a seu redor como uma planta que faz barulho… As pessoas o atravessam e ele não sabe… Hoje,13 de junho de 1977, os dedos da mão direita do compadrito morto Ezequiel Tabares, condenado a certos minutos em 1890, roçam em um eterno entardecer um punhal impossível”.

No poema “O suicida” o eu lírico afirmava terrificamente: “Lego o nada a ninguém”. Veja-se a contrapartida, ainda que com o recato da melancolia, em “Things that might have been”:

“Penso nas coisas que poderiam ter sido e não foram…

A história sem a tarde da Cruz e sem a tarde da cicuta.

A história sem o rosto de Helena…

O orbe sem a roda ou sem a rosa.

O juízo de John Donne sobre Shakespeare…

O filho que não tive.”

Temos um poema “À França”: “Desviaram-me outros amores/ e a erudição vagabunda, / mas não deixei nunca de estar na França/ e estarei na França quando a grata morte me chamar/ em algum lugar de Bueno Aires./Não direi a tarde e a lua; direi Verlaine. / Não direi o mar e a cosmogonia; direi o nome de Hugo./ Não a amizade, e sim Montaigne…”

Temos “Um sábado” do poeta: “Um homem cego em uma casa oca/ Fatiga certos limitados rumos/ E toca as paredes que se alongam/ E o cristal das portas interiores/ E as lombadas ásperas dos livros/ Proibidos a seu amor …/ E sente que os atos que executa/ Interminavelmente em seu crepúsculo/ Obedecem a um jogo que não entende/ E que dirige um deus indecifrável…”

Para terminar, o poema-título (“Ao longo de diversas gerações/ os homens erigiram a noite./ Em seu começo era cegueira e sonho…/ Nunca saberemos quem forjou a palavra/ para o intervalo de sombra/ que cinde os dois crepúsculos) e dois dos melhores poemas, os quais, creio eu, fornecem as senhas e cifras para o recato da melancolia:

“Quando menino, eu temia que o espelho

Me mostrasse outro rosto ou uma cega

Máscara impessoal que ocultaria

Algo na certa atroz. Temi também

Que o silencioso tempo do espelho

Se desviasse do curso cotidiano

Dos horários do homem e hospedasse

Em seu vago extremo imaginário

Seres e formas e matizes novos.

(Não disse isso a ninguém, menino tímido.)

Agora temo que o espelho encerre

O verdadeiro rosto de minha alma,

Lastimada de sombras e de culpas,

O que Deus vê e talvez vejam os homens.” (“O espelho”)

“…Sou apenas a sombra que projetam

Essas íntimas sombras intrincadas.

Sou sua memória, e sou também o outro

Que, como Dante e os homens todos,

Já esteve no raro Paraíso

E nos muitos Infernos necessários.

Sou a carne e o rosto que não vejo.

Sou no final do dia o resignado

Que dispõe de modo algo diverso

As palavras da língua castelhana

Para narrar as fábulas que esgotam

O que se chama de literatura.

Sou o que folheava enciclopédias,

O tardio escolar de fontes brancas

Ou cinza, prisioneiro de uma casa

Cheia de livros que não possuem letras,

Que na penumbra escande um temeroso

Hexâmetro aprendido junto ao Ródano…

O passado me acossa com imagens…

Sou o que não conhece outro consolo

Que recordar o tempo da ventura.

Às vezes sou a ventura imerecida.

SOU O QUE SABE NÃO PASSAR DE UM ECO,

O que anseia morrer inteiramente.

Sou talvez o que tu és no sonho.

Sou a coisa que sou. Já disse Shakespeare… “ (“The thing I am”)

(julho de 2009; todas as passagens foram traduzidas por Josely Vianna Baptista)

Acesse também, na mesma linha de anotações de leitura da poesia tardia de Borges:

https://armonte.wordpress.com/2012/11/01/as-perpetuas-aguas-de-heraclito-a-moeda-de-ferro-de-borges/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/26/borges-e-o-nome-da-rosa/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/25/o-ontem-fatal-e-inevitavel-borges-e-o-ouro-dos-tigres/

01/11/2012

“As perpétuas águas de Heráclito”: A MOEDA DE FERRO, de Borges

“…o intrincado jogo

Que urdem a terra, a água, o ar, o fogo”

“Hoje somos noite e nada”

“Eu cometi o pior dos pecados

Possíveis a um homem. Não ter sido

Feliz…”

‘A firme trama é de incessante ferro”

São 36 os poemas dessa coletânea de 1976, muito marcada pelo tema do “sonho” (e também pela nostalgia do épico, claro, e também pelo “remordimiento”, o remorso de não viver plenamente e o apego a “naderías”, e também pelas perpétuas águas de Heráclito, que seguem nos arrastando, através dos “hábitos do Tempo”) e pela forma soneto. Ele começa, no entanto, com uma bela elegia:

“Que não daria eu pela memória

De uma rua de terra com muros baixos,

De um alto cavaleiro invadindo a alvorada

(Longo e surrado o poncho)

Em um dia qualquer sobre a planura,

Em um dia sem data.

Que não daria eu pela memória

De minha mãe contemplando a manhã

Na estância de Santa Irene,

Sem saber que seu nome ia ser Borges.

Que não daria eu pela memória

De haver combatido em Cepeda

E de ter visto Estanilao del Campo

Cumprimentando a primeira bala

Com a alegria da coragem (…)

Que não daria eu pela memória

(Que já tive e perdi)

De uma tela de ouro de Turner,

Extensa como a música.

Que não daria eu pela memória

De ter sido um ouvinte de Sócrates

Que, na tarde da cicuta,

Examinou serenamente o problema

Da imortalidade,

Alternando os mitos e as razões (…)

Que não daria eu pela memória

De que tivesses dito que me amavas

E de não adormecer até a aurora,

Perdido e feliz.” (“Elegia da lembrança impossível”).

Que não daria ele para ser, talvez, como o coronel Suárez, com seu “sombrio semblante de metal e melancolia” (veja-se que junção maravilhosa, essa do metal e da melancolia) ou o “antigo rei”(“Sei que me sonha e que me julga…”): “Já não há rostos assim. A firme espada/ Vem acatá-lo, como seu cão, leal”. Ou ter, talvez, o destino de Hilário Ascasubi: “Houve um dia a felicidade. O homem/ Aceitava o amor e a batalha/ Com o mesmo regozijo…” Que não daria ele para falar como Einar Tambarskever: “Não há outra obrigação que ser valente”. E que pena que ele seja apenas aquele que diz, desse episódio da saga islandesa: “Agora eu a traslado/ Tão longe desses mares e desse ânimo”.

Que não daria ele para ser, talvez, o aedo épico da Pátria:

“Pompas do mármore, árduos monumentos,

E pompas da palavra, parlamentos,

Centenários e sesquicentenários,

São apenas a cinza, a menor flama

Dos vestígios de uma antiga chama.” (“Elegia da Pátria”)

“Tua versão da Pátria, com seus faustos brilhantes,

Entra na minha vaga sombra como se entrasse o dia

E a ode zomba da Ode. (É apenas nostalgia

–Minha própria versão –de facas ignorantes

E de velha coragem.) Já estremece o Canto,

Já, a custo contidas pela prisão do verso,

Surgem as multidões do futuro e diverso

Reino que será teu, seu júbilo e seu pranto.

Manuel Mujica Lainez, algum dia tivemos

Uma pátria—recordas?—e os dois a perdemos.” (“A Manuel Mujica Lainez”)

Que não daria ele para escrever em outra língua que não “esse latim decaído, o castelhano”. Que não daria ele para ser aquele que fixou uma batalha memorável em 991 a.D.: “As pessoas o seguiam com atenção. Iam recordando os fatos que Aidan [aedo] enumerava e que pareciam compreender só agora, quando uma voz cunhava as palavras”. Que não daria ele para ser o filho de Aidan que o pai pede para renunciar à contenda e escreva versos “para que perdure o dia de hoje na memória dos homens”.

Que não daria ele para não morrer “sem ter visto minha infindável casa”, ainda que vivo, “sou uma sombra que a Sombra ameaça”.

Que não daria ele para ser um dos homens do Arquétipo do Conquistador: “Eu sou o Arquétipo. Eles, os homens…”, para dizer, ao final: “O resto não importa. Eu fui valente”.

Que daria ele para que o futuro não fosse “…tão irrevogável/ Quanto o rígido ontem…”.

Que daria ele para não ser uma “procissão de sombras”, um “homem cinza”.

Que não daria ele para ser verdadeiramente o poeta que fizesse justiça a Brahms:

“Quem te honre há de ser nobre e valente.

Sou um covarde. Sou um triste. Nada

Poderá justificar esta ousadia

De cantar a magnífica alegria

–Fogo e cristal—de tua alma enamorada.” (“A Johannes Brahms”)

Se ainda fosse Shakespeare:

“… alguns séculos

E o rei volta a morrer na Dinamarca

E ao mesmo tempo, curiosa magia,

Em um tablado em meio aos arrabaldes

De Londres…” (“Os ecos”)

Ou Espinosa:

“…O assíduo manuscrito

Aguarda, já repleto de infinito (…)

O feiticeiro insiste e lavra

Deus com geometria delicada…” (“Baruch Espinosa”)

Mesmo que sentisse o horror de Heráclito, ao descobrir sua fórmula:

“… E então sente

Com o assombro de um horror sagrado

Que também ele é um rio e uma fuga.

Deseja recobrar essa manhã

E sua noite e a véspera. Não pode”. (“Heráclito”)

Mas resta o consolo dos espantos singelos:

“não há no orbe

Uma coisa que não seja outra, ou contrária, ou nenhuma.

A mim só inquietam os espantos singelos.

Assombra-me que a chave tenha uma porta aberta;

Assombra-me que minha mão seja um fato certo;

Assombra-me que do grego a eleática seta

Instantânea não alcance a inalcançável meta;

Assombra-me que a espada cruel seja formosa,

E que a rosa tenha o perfume da rosa.” (“O ingênuo”)

Um dos poemas mais bonitos é sobre a onipresente memória do pai:

“Nós te vimos morrer risonho e cego.

Nada esperavas ver do outro lado,

Mas tua sombra talvez tenha avistado

Os arquétipos que Platão, o Grego,

Sonhou e que me explicavas. Ninguém sabe

De que manhã o mármore é a chave.” (“A meu pai”)

Assim como o poema a Melville:

“Sempre o cercou o mar dos ancestrais,

Os saxões, que ao mar deram o nome

De rota da baleia, em que se juntam

As duas enormes coisas (…)

Sempre foi seu o mar. Quando seus olhos

Viram em alto-mar as grandes águas,

Já o havia desejado e possuído

Naquele outro mar, que é da Escritura (…)

…o prazer, por fim, de avistar Ítaca (…)

Melville cruza nas tardes New England.

Mas o habita o mar…” (“Herman Melville”)

Ou o sonho com Kafka:

“Ela era a companheira de Kafka.

Kafka a sonhara…

Ele era o amigo de Kafka.

Kafka o sonhara…

A mulher disse ao amigo:

Quero que esta noite me queiras…

O homem lhe respondeu: Se pecarmos,

Kafka deixará de sonhar-nos…

Kafka disse a si mesmo:

Agora que os dois partiram, fiquei sozinho.

Deixarei de sonhar-me”. (“Ein Traum”)

Duas citações bonitas poderiam ser a “summa” de angústia (“que não daria ele…”) do livro: uma, tirada de “Signos”, com aquela formulação lapidar típica: “Posso ser tudo. Deixa-me na sombra”; a outra de “Não és os outros”: “Não és os outros e te vês agora/ Centro do labirinto que tramaram/ Os teus passos”.

Mas outras duas citações bonitas são mais esperançosas, menos atadas a essa trama de incessante ferro.

De “Para uma versão do I-Ching”:

“A firme trama é de incessante ferro.

Porém em algum canto de teu encerro

Pode haver um descuido, a rachadura.

O caminho é fatal como a seta,

Mas Deus está à espreita entre a greta”.

E do poema-título:

“Aqui está a moeda de ferro. Interroguemos

As duas contrárias faces que serão a resposta

Da pertinaz pergunta que ninguém já se fez:

Por que um homem precisa que uma mulher o queira?”

Isso me lembra “O palácio” (de O ouro dos tigres): “já estamos mortos quando nada nos toca, nem uma palavra, nem um desejo, nem uma memória. Eu sei que não estou morto”.

(anotações de julho de 2009; passagens traduzidas por Josely Vianna Baptista)

Dentro da mesma linha, acesse também:

https://armonte.wordpress.com/2012/11/02/historia-da-noite-o-que-a-memoria-concede/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/26/borges-e-o-nome-da-rosa/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/25/o-ontem-fatal-e-inevitavel-borges-e-o-ouro-dos-tigres/

26/10/2012

BORGES E O NOME DA ROSA

“No dialeto de hoje

Direi, por minha vez, coisas eternas…”

“Ao esquecimento, às coisas do esquecimento, acabo de

Erigir este monumento…”

“Que arco terá lançado esta seta

que sou ? Que cume pode ser a meta?”

Em A rosa profunda (1975), talvez o poema central (ele fica mais ou menos no meio dos 26 poemas) é “1972”:

“Temi que o porvir (que já declina)

Seria um profundo corredor de espelhos

Indistintos, ociosos e minguantes,

Um repetir sem fim de fatuidades,

E na penumbra que precede o sonho

Pedi a meus deuses, cujo nome ignoro,

Que algo ou alguém enviassem a meus dias.

Fizeram-no. É a Pátria. Meus ancestrais

Serviram-na com longas proscrições,

Com penúrias, com fome, com batalhas,

Aqui de novo está o formoso risco.

Não sou aquelas sombras tutelares

Que honrei com versos que não esquece o tempo (…)

Mas hoje a Pátria profanada quer

Que com minha obscura pena de gramático,

Douta em nimiedades acadêmicas

E distante dos trabalhos da espada,

Congregue o grande rumor da epopéia

E exija o meu lugar. Eu o estou fazendo.”

Outro poema que me parece central (e que está bem próximo ao anterior) é “All our yesterdays”:

“Quero saber de quem é meu passado.

De qual dos que já fui? Do genebrino

Que traçou algum hexâmetro latino

Pelos anos lustrais já apagado?

Édo menino que buscou na inteira

Biblioteca do pai as pontuais

Curvaturas do mapa e as ferais

Formas que são o tigre e a pantera?

Ou daquele outro que empurrou uma porta

Atrás da qual um homem morria

Para sempre, e beijou no branco dia

A face que se vai e a face morta?

Sou os que já não são. Inutilmente

Sou em meio à tarde essa perdida gente.”

Na coletânea, há um poema chamado “Eu” (“os caminhos de sangue que não vejo”) e um poema chamado “Sou” (“Sou, tácitos amigos, o que sabe/ Que não há outra vingança que o olvido/ Nem há outro perdão (…) Sou eco, olvido, nada”).

E os temas do rio, da trama do tecido, do sonho (“Bem no fundo do sonho estão os sonhos”, lemos em “Efialtes”; “Eu também sou um sonho fugitivo que dura/ Alguns dias mais…”, lemos em “A cerva branca”) e do mapa do Tempo continuam entretecidos nesse Boitempo (“… a morte, esse outro nome/Do incessante tempo que nos rói…”, lemos em “Elegia”) borgeano:

“O grande rio de Heráclito, o Obscuro,

Seu curso misterioso não empreendido,

Que do passado flui para o futuro,

Que do olvido flui para o olvido.” (“Cosmogonia”)

“Serei todos ou ninguém. Serei o outro

Que sem saber eu sou, o que fitou

Esse outro sonho, minha vigília. E a julga,

Resignado e sorridente…” (“O sonho”)

“…o humano tempo,

Cujo espelho espectral é a memória” (“O bisão”)

…”Cada coisa

É infinita coisas. Tu és música,

Firmamentos, palácios, rios e anjos,

Rosa profunda, ilimitada, íntima…” (“The unending rose”)

Machadianamente (pelo menos, no que se refere ao narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas), neste nosso “intolerável universo”, o suicida pode afirmar: “Lego o nada a ninguém” (“O suicida”). Mas, para compensar, há o rouxinol, “voz repleta de mitologias”, que merece este belíssimo verso: “Keats te ouviu por todos, para sempre” (“Ao rouxinol”).

As 13 moedas de O ouro dos tigres, retomadas, foram acrescidas de mais duas. Em uma delas temos essa homenagem a Poe:

“Os sonhos que sonhei. O poço e o pêndulo.

O homem das multidões. Ligéia…

Mas também este outro.” (“Quinze moedas”)

O tigreiro Simón Carbajal:

“Sempre estava matando o mesmo tigre

Imortal. Não te assombre demasiado

Seu destino. É o teu e é o meu,

Salvo que nosso tigre possui formas

Que mudam sem parar. Chama-se o ódio,

O amor, o acaso, cada momento.” (“Simón Carbajal”)

A cegueira:

“Não sei qual é o rosto que me mira

Quando miro o rosto do espelho;

Não sei que velho espreita em seu reflexo

Com silenciosa e já cansada ira.

Lento em minha sombra, com a mão exploro

Meus invisíveis traços. Um lampejo

Me toca. Teu cabelo entrevejo,

Se ora de cinza ou ainda de ouro, ignoro.

Repito que o perdido foi somente

A inútil superfície das coisas.” (“Um cego”)

A nostalgia do épico persiste, claro. Alguém percorre os caminhos de Ítaca e não se lembra daquele rei que partiu para Tróia, que desceu ao Hades para consultar Tirésias (“O desterrado”).

Os destinos que não são nossos; os destinos não que não nos couberam, nesse jardim de veredas que se bifurcam da existência:

“Eu, com ela, morro de infinitos

Destinos que o acaso não me depara.” (“Em memória de Angélica”)

Enquanto (creio que não dá para ser totalmente solipsista), “Sobre nós vai crescendo, atroz, a história” (“Em memória de Angélica”):

“…as vozes dos mortos

vão me dizer para sempre.” (“Meus Livros”)

Esclarecendo que os “meus livros” são os livros que ele possui (mas não pode ler) e não aqueles que ele mesmo escreveu.

E, por fim, a visão da “cerva branca”:

“Leve criatura feita de uma certa memória

E de um pouco de olvido…” (“A cerva branca”).

(anotações de leitura de julho de 2009; todos os trechos foram traduzidos por Josely Vianna Baptista)

Dentro da mesma linha, acesse também:

https://armonte.wordpress.com/2012/11/02/historia-da-noite-o-que-a-memoria-concede/

https://armonte.wordpress.com/2012/11/01/as-perpetuas-aguas-de-heraclito-a-moeda-de-ferro-de-borges/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/25/o-ontem-fatal-e-inevitavel-borges-e-o-ouro-dos-tigres/

25/10/2012

O “ontem fatal e inevitável”: Borges e o ouro dos tigres

O OURO DOS TIGRES

Publicado em 1972, no seu belo título já trai a recorrente fascinação de Borges com esse que é o animal mais bonito. A imagem do ouro ligado ao animal selvagem, uma espécie de fulgor da ferocidade, também trai um dos temas centrais dessa coletânea de 48 poemas. Em ocasiões diversas (por exemplo, ao comentar Ulisses, de Joyce, ou A pedra do reino, de Ariano Suassuna), eu levantei a questão da nostalgia do épico, e é isso que vemos em O ouro dos tigres. Borges como o fazedor de versos, descendente longínquo e pálido dos aedos e cantores de sagas, ou ainda, em termos mais pessoais e irrisórios, último representante de uma família de militares “machos”, um eco já apagado, uma sombra, do que foi grandioso, e se não foi, ficou assim “naquele plástico ontem irrevogável”, “Essas coisas podiam não ter sido./ Quase não foram. Nós as concebemos/ em um ontem fatal e inevitável”,“O ontem ilusório é um recinto/ de imutáveis figuras de cera/ ou de reminiscências literárias/ que o tempo irá perdendo em seus espelhos” (“O passado”). Não por acaso, os dois primeiros poemas, que estabelecem o “clima”, por assim dizer, tratam de um conquistador, um homem de ação (“Tamerlão”), que protagonizou uma tragédia de Christopher Marlowe, o grande rival do jovem Shakespeare, e de espadas famosas (“Espadas”).

A ação heróica, destinada a ser literatura (e um dos elementos daquela continuidade de que eu falava nos comentários sobre Elogio da sombra), o épico que encontra o lírico e o cósmico em Whitman, presença tutelar do livro desde o prólogo (apesar de este fornecer uma imagem ambivalente, mais negativa que positiva; “Para um verdadeiro poeta, cada momento da vida, cada fato, deveria ser poético, já que profundamente o é. Que eu saiba, ninguém alcançou até hoje essa alta vigília. Browning e Blake se aproximaram mais do que qualquer outro; Whitman a propôs, mas suas deliberadas enumerações nem sempre passam de catálogos insensíveis”):

“Roma, que impõe o numeroso hexâmetro

Ao obstinado mármore dessa língua

Que manejamos hoje, espedaçada;

Os piratas de Hengist que atravessam

A remo o temerário mar do Norte

E com fortes mãos e a coragem

Fundam um reino que será o Império;

O rei saxão que oferta ao da Noruega

Sete palmos de terra e que cumpre,

Antes que o sol decline, a promessa

Na batalha de homens; os cavaleiros

Do deserto, que cobrem o Oriente

E ameaçam as cúpulas da Rússia;

Um persa que relata a primeira

Das Mil e uma noites e não sabe

Que deu início a um livro que os séculos

Das outras gerações, ulteriores,

Não entregarão ao quieto esquecimento;

Snorri, que salva em sua perdida Tule,

Sob a luz de crepúsculos morosos

Ou na noite propícia à memória,

As letras e os deuses da Germânia;

O jovem Schopenhauer, que descobre

Um projeto geral do universo;

Whitman, que numa redação do Brooklyn,

Entre o cheiro de tinta e de tabaco,

Toma e a ninguém conta a infinita

Resolução de ser todos os homens

E de um livro escrever que seja todos…”

E o poeta Borges, ou o avatar de poeta que ele tomou para si neste livro? Vejamos o último dos “Tankas” (estrofe japonesa que tem um primeiro verso de cinco sílabas, o segundo de sete sílabas, o terceiro de cinco sílabas e os dos últimos de sete sílabas):

“Não ter tombado

Como outros de meu sangue,

Na batalha.

Ser na inútil noite.

O que conta sílabas.”

“…com o verso / devo lavrar meu insípido universo”, lemos em “O cego”; “…o resignado / exercício do verso não te salva” (“Ao triste”), enquanto se espalham as alusões ao projeto whitmaniano:. Em “On his blindness”: “Walt Whitman, esse Adão nomeador / das crianças que existem sob a lua”; em 1971 (um poema em homenagem à descida do homem na lua e seus antecedentes míticos e literários): “Esses filhos de Whitman haviam pisado/ o páramo lunar, o inviolado…”, numa paródia a sério da expressão “filhos de Adão”.

E por falar em Adão, uma das “Treze moedas” recapitula concisamente uma situação já explorada no poema “Lenda” de Elogio da sombra:

“Foi no primeiro deserto.

Dois braços atiraram uma grande pedra.

Não houve um grito. Houve sangue.

Houve pela primeira vez a morte.

Já não me lembro se foi Abel ou Caim”.

No poema anterior:

“Abel e Caim se encontraram depois da morte de Abel. Caminhavam pelo deserto e se reconheciam de longe, porque os dois eram muito altos. Os irmãos sentaram-se na terra, fizeram um fogo e comeram. Guardavam silêncio, à maneira das pessoas cansadas quando o dia declina. No céu despontava alguma estrela, que ainda não recebera seu nome. À luz das chamas, Caim notou na testa de Abel a marca da pedra e deixou cair o pão que estava para levar à boca e pediu que seu crime lhe fosse perdoado.

Abel respondeu:

–Tu me mataste ou eu te matei? Já não me lembro; aqui estamos juntos como antes.

–Agora sei que você me perdoou de verdade, disse Caim, porque esquecer é perdoar. Eu também tentarei esquecer.

Abel disse devagar:

–Assim é. Enquanto dura o remorso, dura a culpa”.

Voltando à “nostalgia do épico”, um dos elementos constituintes na mítica pessoal borgiana é a figura do “gaúcho” e seu cenário natural, o pampa:

“O beco final com seu poente.

Inauguração do pampa.

Inauguração da morte.” (“Oeste”)

“No fim de sua terceira geração

Regresso às planícies dos Acevedo,

Os meus antepassados. Vagamente

Procurei-os por esta velha casa…

Na chuva que ensombrece a varanda,

Entre o crepúsculo de seus espelhos,

Num reflexo, um eco, que foi seu

E que agora é meu, sem que eu o saiba…

Aqui foram a espada e o perigo,

As duras prescrições e os levantes;

Firmes sobre o cavalo, aqui regeram

A sem princípio e a sem fim planura…” (“A busca”)

“… Professaram

A antiga fé do ferro e da coragem…

Por essa fé morreram e mataram.

Entre os acasos de uma montonera

Pereceu pela cor de uma divisa;

Foi quem nada pediu, nem a efêmera

Glória, feita de alarde e de brisa.”

Há até uma poética do épico em “Os quatro ciclos”, que afirma que “Quatro são as histórias. Durante o tempo que nos resta, continuaremos a narrá-las, transformadas”. São elas a história da Ilíada, da Odisséia, de Jasão e o velocino, e do sacrifício de um deus (Átis, Odin, Cristo).

Nessa obsessão pelo épico, que só estou pincelando, há uma homenagem a Camões (no poema “O mar”; aliás, mar e épico estão inextricavelmente ligados), embora seu nome não seja citado:

“O mar. O mar de Ulisses…

É o do tal cavaleiro que escrevia

A um só tempo a epopéia e a elegia

De sua pátria, no pântano de Goa…”

E o próprio Borges, numa auto-ironia, mostra sua fidelidade aos ideais militares que, vinculada a coisas imemoriais e nada comezinhas, tiveram o efeito desastroso de propiciar desastradas declarações políticas num país sob ditadura militar. No poema “A sentinela”, e Borges- O outro determina coisas para Borges-o mesmo::

“Converteu-me ao culto idolátrico de militares mortos, com

os quais talvez não pudesse trocar uma única palavra”.

Acho que esse trecho esclarece bem a questão “Borges & regime militar”.

Esse mesmo poema termina de uma forma terrível:

“A porta do suicida está aberta, mas os teólogos afirmam

que na sombra ulterior do outro reino estarei eu, me

esperando.”

Que ecoa a fórmula de “O ameaçado”: “o horror de viver no sucessivo”, o que expressa a impotência dos seres majestosos e enjaulados (a pantera, o tigre, cuja visão o fascinou antes da cegueira):

“Em vão é vário o orbe. A jornada

Que cumpre cada qual já foi fixada” (“A pantera”)

Do ouro dos tigres só sobrou na cegueira a cor amarela:

“Agora só perduram contornos amarelos,

E só consigo ver para ver pesadelos.”

Em 1970, Borges esteve em São Paulo e lá escreveu “Poema da quantidade”:

“Aqui são excessivas as estrelas.

O homem é excessivo. As gerações

Inúmeras de aves e de insetos,

Do jaguar constelado e da serpente,

De galhos que se tecem e entretecem,

Do café, da areia e das folhas

Oprimem as manhãs e nos prodigam

Seu minucioso labirinto inútil.

Talvez cada formiga que pisamos

Seja única ante Deus, que a define

Para a execução das regulares

Leis que regem Seu curioso mundo.

Não fosse assim, o universo inteiro

Seria um erro e um oneroso caos.

Os espelhos do ébano e da água,

O espelho inventivo de um sonho,

Os liquens e os peixes, as madréporas,

Tartarugas alinhadas no tempo,

Os vaga-lumes de uma única tarde,

As araucárias e suas dinastias,

As perfiladas letras de um volume

Que a noite não apaga são sem dúvida

Não menos pessoais e enigmática

Que eu, que as confundo. Não me atrevo

A julgar nem a lepra nem Calígula.”

Não posso me furtar a transcrever parte de “A um gato”:

“Não são mais silenciosos os espelhos

Nem mais furtiva a aurora aventureira;

Tu és, sob a lua, essa pantera,

Que divisam ao longe nossos olhos…

Mais remoto que o Ganges e o poente,

Tua é a solidão, teu o segredo.

Teu dorso condescende à morosa

Carícia de minha mão. Sem um ruído,

Da eternidade que ora é olvido,

Aceitaste o amor dessa mão receosa.

Em outro tempo estás. Tu és o dono

De um espaço cerrado como um sonho.”

E para finalizar essa minha passagem pelos poemas de O ouro dos tigres, duas passagens que eu acho emocionante. Uma é o último verso de “O ameaçado”, um poema sobre o amor “com suas mitologias, com suas pequenas magias inúteis”):

“Dói-me uma mulher por todo o corpo” (que bom ver o corpo referido em Borges).

A outra, que considero um fecho perfeito para qualquer texto, é de “O palácio”. Apesar do horror de viver no sucessivo:

“… já estamos mortos quando nada nos toca, nem uma palavra, nem um desejo, nem uma memória. Eu sei que não estou morto.”

Escrito em julho de 2009;  todas as passagens foram traduzidas por Josely Vianna Baptista

Dentro da mesma linha, acesse também:

https://armonte.wordpress.com/2012/11/02/historia-da-noite-o-que-a-memoria-concede/

https://armonte.wordpress.com/2012/11/01/as-perpetuas-aguas-de-heraclito-a-moeda-de-ferro-de-borges/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/26/borges-e-o-nome-da-rosa/

09/06/2012

Borges: de que secretas regiões da astronomia ou do tempo, de que antigo e agora incalculável crepúsculo, haverá alcançado este arrabalde?

(esta resenha foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 03 de julho de 2001, antes da Indústria Borges ser transferida para a Companhia das Letras; nesta nova fase, O LIVRO DA AREIA foi traduzido por Davi Arrigucci Jr.)

Além de editar a Obra Completa de Jorge Luis Borges (1899-1986), em quatro volumes, a Globo está relançando alguns títulos avulsos, que já trazem a bem-vinda mudança (na verdade, um resgate) do logotipo da editora.

E assim como fez a Companhia das Letras com as obras de Milan Kundera, os treze contos de O LIVRO DA AREIA (El Libro de Arena, Argentina-1975, em tradução de Lígia Morrone Averbuck) foram mesmo revisados (por Maria Carolina Araújo & Jorge Schwartz). Corrigiram-se, por exemplo, alguns trechos mal alinhavados em A noite dos dons; lia-se, antes: “Com uma chicotada, Moreira deixou-o estendido de costas no solo. Caiu de costas e morreu movendo as patas”; agora se lê algo mais eficiente e fiel ao original: “Com uma chicotada, Moreira deixou-o estendido no chão. Caiu de costas e morreu movendo as patas” (“De un talerazo, Moreira ló dejó tendido en el suelo. Cayó de lomo y se murió moviendo las patas”).

No entanto, o título anteriormente dado, A noite das dádivas, era bem melhor, e sente-se uma fidelidade demasiada ao espanhol em certas modificações. Por exemplo, se Borges pode colocar em seu original Adolfo Hitler, ao invés de Adolf, por que Adán de Bremen não pode virar Adão?

Em Como e Por que Ler, Harold Bloom afirma que o conto foi dominado, grosso modo, por duas tendências. Por um lado, a tchekhoviana, seguindo o impressionismo do autor de A dama do cachorrinho; por outro, a borgiana: “Em Borges, ouvimos a voz solitária de um elemento submerso no turbilhão, uma voz acossada por uma pletora de vozes literárias que a precederam (…) Borges encanta-nos e transporta-nos a um mundo de forças impessoais, onde a memória de Shakespeare constitui um imenso abismo, capaz de tragar-nos, fazendo com que percamos quaisquer resquícios da nossa pessoa”.

As palavras de Bloom caracterizam bem as narrativas (quase todas em primeira pessoa) de O LIVRO DA AREIA: nelas, encontramos solitários, senão misantropos: “Para um celibatário entrado em anos, o oferecido amor é um dom que não se espera” (Ulrica); “Por indecisão ou negligência ou por outras razões, não me casei e agora estou só. Não me dói a solidão, já é bastante esforço alguém tolerar a si próprio e suas manias” (O Congresso); “O homem esquece que é um morto que conversa com mortos” (There are more things); “Moro sozinho (…) Essas duas preocupações agravaram minha já velha misantropia” (O Livro de Areia).

Acossados por situações fantasmagóricas, onde o “eu” se dilui e a experiência de vida se torna sonho, esses solitários nem sequer acreditam na alteridade, pois um torna-se o outro e uma experiência alheia tem o mesmo peso do sonho: “No curso fui muitos, mas esse torvelinho foi um longo sonho”, lê-se em Undr. Dessa forma,  duas posturas divergentes, como a dos acadêmicos que protagonizam O suborno acabam indiferenciando-se. Borges já fizera uma experiência inesquecível nesse terreno, em Os Teólogos, um dos seus maiores contos. Como diz o narrador de O Congresso: “Haverá na terra algo sagrado ou algo que não o seja?”.

Mesmo que tudo seja sagrado, em O LIVRO DA AREIA encontramos dois textos que despertam aversão: O Outro & Utopia de um homem que está cansado.

O Outro ainda tem a fascinante situação do encontro entre o Borges de quase 70 anos com seu “eu” de 18, onde semelhança e alteridade entram em discussão. O conto torna-se discutível e antipático quando percebemos que o enfadado escritor aproveita o encontro para desautorizar seu “eu” jovem, suas opiniões, suas paixões políticas. E lemos pérolas do tipo: “A América, presa pela superstição da democracia, não se decide a ser um império” !!!!????

Já o desagradável Utopia de um homem que está cansado, que irrita desde o título (se ele estava tão cansado, por que não se matou de uma vez?), narra uma visita de Borges ao futuro, o qual se apresenta árido, povoado por homens tão enfadados quanto ele próprio e que vivem uma espécie de nirvana auto-complacente, com direito a um elogio do suicídio. O tom é blasé, permitindo-se até uma brincadeira  leviana com o holocausto: “É o crematório… dentro, está a câmara letã. Dizem que foi inventada por um filantropo cujo nome, creio, era Adolf Hitler”!!!???

Nesses passos em falso do mais importante autor da segunda metade do século XX, sentimos que ele está retocando a imagem que esculpiu para a mídia, a sua personalidade-clichê. Mas seis outros textos é que compensam a leitura de O LIVRO DE AREIA: 1) o conto-título, no qual se imagina um livro monstruoso porque infinito e irrepetível; 2) O Congresso, talvez o ponto alto da coletânea, no qual uma confraria torna-se tão abrangente que se confunde com o universo, tal como já acontecera com a loteria da Babilônia, ou tal como a memória de Funes, que anulava-se por não ser seletiva, por se confundir com a experiência; 3) O espelho e a máscara e 4) Undr, dois relatos que se passam em países remotos e lendários, onde o universo  é reduzido a uma única palavra (que pode ser qualquer uma), e que trazem a marca do melhor Borges; 5) A noite dos dons (meu favorito pessoal) e 6) Avelino Arredondo, que se acrescentam a uma das vertentes mais férteis do grande escritor argentino, o uso da história e da mitologia dos pampas e da banda oriental (Avelino, por exemplo, é o uruguaio que assassina o presidente Idiarte Borda, em 25 de agosto de 1897).

Sendo uma das melhores obras da fase final de Borges, O LIVRO DA AREIA funciona tanto para o leitor que se inicia na sua leitura, servindo como ótima introdução, como também para o leitor já aficionado, que pode apreciá-lo (às vezes, não) no exercício de sua maestria, depois de passar pelos desafios das suas criações supremas, Ficções & O Aleph, diante das quais (e do seu autor) a reação coincide com a experimentada pelo protagonista no final da lovecraftiana There are more things: “Como seria o habitante? Que podia buscar neste planeta, não menos atroz para ele do que para  nós? De que secretas regiões da astronomia ou do tempo, de que antigo e agora incalculável crepúsculo haveria alcançado este arrabalde e esta precisa noite? (…) Meus pés tocaram o penúltimo lance da escada, quando senti que algo subia pela rampa, opressivo e lento e plural. A curiosidade pôde mais do que o medo e não fechei os olhos.”

13/04/2012

A sede do primordial

Borges é, sem dúvida, o autor mais influente no universo da literatura a partir da segunda metade do século passado. Isso se deveu mais aos seus incomparáveis contos e ensaios. Sua poesia sempre ficou em segundo plano. No entanto, ele foi quase um militante do gênero nos seus livros iniciais (hoje em dia muito retocados, e reunidos em Primeira Poesia) e se dedicou profundamente à poesia nos seus anos derradeiros (nos sete livros que agora compõem Poesia).

No começo dos anos 60, surgiu um dos seus livros mais fascinantes e híbridos, O fazedor, no qual, após anos de exercício da prosa, voltava a mexer com a forma poética. Porém, o grande elo de ligação entre sua primeira fase e as sete coletâneas finais, é O outro, o mesmo, o qual, agora em sua feição definitiva, comporta cerca de setenta poemas que podem ser uma ótima introdução ao universo borgiano.

Eu gosto muito da poesia final de Borges, mas é preciso dizer que é pouco carismática, muito dura e chega a ser desgastante. No entanto, talvez por reunir poemas de tempos diversos, o genial escritor argentino se mostra, em O outro, o mesmo mais fluido, mais “simpático”, se podemos dizer assim,  menos engessado na sua própria figura icônica, ainda que tenhamos a mesma impressão de uma voz intemporal, lapidar, que no centro de sua majestosa erudição e saturação civilizatória comporta os elementos mais primordiais do universo, o vento, a areia, a rocha, o ferro, junto ao elemento mais presente e insondável, o tempo, e o instrumento mais perecível e mais humano, a memória: “Peço a meus deuses ou à soma do tempo/ que meus dias mereçam o olvido/ que meu nome seja Ninguém como o de Ulisses/ mas que algum verso perdure/ na noite propícia à memória/ ou nas manhãs dos homens”.

Mais uma vez Buenos Aires aparece como uma sobreposição, um palimpsesto de tempos passados, de nostalgia pessoal e de cidade real: “E a cidade, agora, é como um mapa/ de meus fracassos e humilhações/daquela porta vi os entardeceres/ e ante este mármore esperei em vão/ Aqui o incerto ontem e o hoje claro/ me ofereceram corriqueiros casos/ de toda a humana sorte; aqui meus passos/ urdem seu impensável labirinto.” Ou ainda: “Antes, eu te buscava em teus confins/ que limitam com a tarde e a planura…/Estavas na memória de Palermo/em sua mitologia de um passado/de baralho e punhal e no dourado/bronze de aldravas nunca utilizadas/ com sua mão e o aro. Eu te sentia/nesses pátios do Sul e na crescente/sombra que desmaece lentamente/ sua longa reta, ao declinar o dia/ Agora estás em mim. És minha vaga/sorte, essas coisas que a morte apaga”.

Como a edição é bilíngüe, dá para ver como o original tem um sabor inigualável (onde está em português “desmaece”, por exemplo, no original temos “desdibuja”).

O grande mérito de Heloísa Jahn (sempre uma ótima tradutora, e que contou com a colaboração de  outro craque, Paulo Henriques Britto, nos poemas ingleses) é propor uma versão em que encontramos uma feição própria, ainda mais num idioma tão próximo, inclusive por um ponderado e feliz uso de vocábulos diferentes, não tão literais, porém mais expressivos na nossa língua (o único senão é que ela elimina, por causa da métrica, de forma contumaz os possessivos borgianos, e isso às vezes altera o sentido de um verso ou uma imagem). É tão bom ler “Para cantar as glórias e lembranças/ amealhava laboriosos nomes/ se era a guerra a conjunção dos homens/ era também a conjunção das lanças” na nossa língua quanto, no original: Para contar memórias o alabanzas/amonedaba laboriosos nombres; la guerra era el encuentro de los hombres/ y también el encontro de las lanzas” . Do encontro à conjunção, nada se perdeu, tudo se enriqueceu.

Aliás, talvez o poema Um soldado de Lee possa ilustrar esse perde-ganha da tradução de Heloísa Jahn. É discutível por exemplo, a maneira como ela verte:

“Lo ha alcanzado uma bala em la ribera

de una clara corriente cuyo nombre

ignora. Cae de boca. (Es verdadera

la historia y más de un hombre fue aquel hombre)…’

    por:

“Atingiu-o uma bala na ribeira

de uma clara corrente cujo nome

ignora. Caiu de boca. (É verdadeira

a história e mais de um homem foi aquele)…”

    Qual o motivo de evitar na tradução a repetição de  “homem”, tão essencial ao verso, a meu ver?

No entanto, vejam como é feliz a tradução, no mesmo poema, do verso:

“caíste como un hombre muerto”

por:

“caíste como cai um homem morto”,porque reforça a aliteração, mas também porque evoca, na nossa própria tradição poética e tradutória, a maneira como Augusto de Campos traduziu um verso da Divina Comédia e que entrou para a história, e que não deve ter passado despercebida a uma tradutora do quilate de Heloísa Jahn quando considerou o verso.

Talvez O outro, O mesmo não tenha o apelo da contemporaneidade, mas é um dos livros mais bonitos do último meio século: “Mais além deste afã e deste verso/ me aguarda inesgotável o universo”.

(resenha publicada de forma ligeiramente mais condensada em “A Tribuna” de 31 de agosto de 2010)

12/04/2012

A TRAMA DO SERÁ, É, FOI

 

 O PARADOXO DE BORGES: sobre “Elogio da sombra”

 

Ninguém pode escrever um livro. Para

Que um livro seja verdadeiramente

Requerem-se a aurora e o poente

Séculos, armas e o mar que une e separa…”

         Assim se inicia um dos poemas do maravilhoso O fazedor (1960). Seu autor, Jorge Luis Borges (1899-1986), tinha horror da subjetividade que parece essencial ao homem do pós-Romantismo (note-se que a própria idéia de “autoria”, isto é, o que há de mais pessoal numa obra, encontra-se problematizada). Por isso, procurou instituir um clima poético que vai justamente na vertente contrária: toda a história e até a eternidade são o mesmo que um único dia (“Em um dia  do homem estão os dias/do tempo, desde o inconcebível/ dia inicial do tempo, em que um terrível/ Deus prefigurou os dias e agonias”; “Dá-me, Senhor, coragem e alegria/ para escalar o cume deste dia”), um indivíduo é toda a humanidade, e a alteridade, o eterno jogo do Mesmo e do Outro se dissipa nessa visão de mundo: “Somos esse quimérico museu de formas inconstantes/ uma pilha de espelhos rotos”, passando enquanto ficam a aurora, o poente, os séculos, as armas e o mar que une e separa, símbolo do imemorial, que foram requeridos para que Borges desse forma a outro grande livro da maturidade, ELOGIO DA SOMBRA (1969), com a mesma mistura de O fazedor de poemas  com pequenos textos em prosa.

         Não é na novidade e no surpreendente que vamos encontramos a grandeza da poesia que permeia ELOGIO DA SOMBRA. É na formulação lapidar de verdades que, justamente da maneira como são trabalhadas por Borges, parecem realmente eternas, vindas do fundo dos tempos, com um potente sopro de sabedoria. Não é à toa que ele foi co-autor de um notável e esclarecedor livro sobre Buda.

         Veja-se o lindíssimo “Heráclito”:

 

O segundo crepúsculo.

A noite que mergulha no sono.

A purificação e o esquecimento.

O primeiro crepúsculo.

A manhã que foi a aurora.

O dia que foi a manhã.

O dia numeroso que será a tarde desgastada.

O segundo crepúsculo.

Esse outro hábito do tempo, a noite.

A purificação e o esquecimento.

O primeiro crepúsculo…

A aurora sigilosa e na aurora

a inquietude do grego.

Que trama é esta

do será, do é  e do foi.

Que rio é este

pelo qual flui o Ganges?

Que rio é este cuja fonte é inconcebível?

Que rio é este

que arrasta mitologias e espadas?

É inútil que durma.

Corre no sonho, no deserto, num porão.

O rio me arrebata e sou esse rio.

De matéria perecível fui feito, de misterioso tempo.

Talvez o manancial esteja em mim.

Talvez de minha sombra,

fatais e ilusórios,  surjam os dias”.

         Diante de um texto como esse temos de reconhecer que existe a perfeição. E que pouca coisa mudou na humanidade, em termos de especulação ontológica, desde os pré-socráticos. Não há uma única idéia nele, a respeito desse “senhor tão bonito” (como diz a música de Caetano Veloso), o tempo, que já não tenha sido expressa milhões de vezes, mas parece que todos esses milhões condensaram-se numa cifra mágica, numa formulação inexcedível.

         Leitor voraz até ficar cego (“Que outros se jactem das páginas que escreveram/ a mim me orgulha o que li”), Borges sempre concebe o contrário, o “outro lado da moeda”: “…o esquecimento/ é uma das formas da memória, seu impreciso porão…”. Outro grande poeta latino-americano, o mexicano Octavio Paz, pensando em termos de ideologia (essa coisa que tanto horrorizava seu colega argentino), exprimiu esse jogo de contrários exemplarmente ao dizer que “a  idéia fixa embebeda-se do oposto”.

         Na trama do “será, é, foi”, tudo volta a se reciclar e tudo leva de novo às fontes, pelo menos o que conseguimos conceber ou o que carregamos no sangue, como mostra o poema que eleva o sobrenome dos avós, Acevedos, ao mítico, que forma o mundo da memória:

 

Campos dos meus avós e que guardam

Ainda o nome de Acevedo, o nosso.

Indefinidos campos que não posso

Imaginar por inteiro. Meus anos tardam

E não contemplei ainda essas cansadas

Léguas de pó e pátria que meus mortos

Viram cavalgando, esses abertos

Caminhos, seus ocasos e alvoradas.

A planície é ubíqua. Tenho-os visto

Em Iowa, no Sul, em terra hebréia,

Naquele salgueiral da Galiléia

Que palmilharam os humanos pés de Cristo.

Não os perdi. São meus. Eu os detenho

No esquecimento, num casual empenho”.

         Borges, o escritor que amava os paradoxos, não poderia ter inventado um melhor do que escrever um livro luminoso chamado ELOGIO DA SOMBRA.

(resenha publicada em 18 de dezembro de 2001, em A TRIBUNA de Santos,  a respeito de uma edição da Globo com tradução dos poemas por Carlos Nejar & Alfredo Jacques). 

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