(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 09 de fevereiro de 1999)
A pergunta diante de O homem no espelho do livro (a tradução de Fábio Fernandes para The man in the mirror of the book: a life of Jorge Luis Borges, Inglaterra-1996), de James Woodall,é a seguinte: ela ajudará a compreender o feitiço dos textos do incomparável autor argentino? Os dados biográficos permitirão uma maior compreensão da maneira como Ficções (1944) e O Aleph (1949) revolucionaram a literatura, de um modo que qualquer lista sensata dos dez maiores autores do século XX não pode deixar de lado o seu nome?
A resposta para a pergunta é: não.. Há muitas informações, é claro. Através da prosa ágil de Woodall acompanhamos a família de Borges (que tinha ascendência inglesa) deixando Buenos Aires no começo do século (ele nasceu em 1899) para se fixar alguns anos na Europa; quando retornam à Argentina, Georgie (seu apelido) torna-se um líder da vanguarda modernista e elege a capital como centro de uma mitologia poética muito especial (que deu origem a obras como Fervor de Buenos Aires). Mesmo jovem, ele já impressionava pela vastidão de suas leituras, pela memória espantosa e pela capacidade de conquistas as pessoas pela conversa.
Aos poucos, e principalmente após um acidente, vai perdendo o medo de escrever histórias e, a partir de A aproximação de Almotássim, produz os textos curtos mais fascinantes da literatura contemporânea (com a possível exceção das histórias de Isaac Bashevis Singer).
Vai ficando cego, sofre agruras (e até ignomínias) com o governo Perón (a quem sempre detestou e continuará atacando vida afora). Seus textos começam a ser traduzidos (primeiro para o francês) e, após o prêmio Formentor, em 1961, consolida seu status como autor mais influente da segunda metade do século, antes mesmo do boom da literatura hispano-americana (que beneficiou mais autores como Cortázar e García Márquez).
Pena que a análise de textos seja muito pobre, quando não meramente descritiva, em O homem no espelho do livro. Não dá para escrever sobre um autor tão voltado para a literatura e produzir coisas vagas do tipo: “Uma das afirmações mais desesperadas de Borges sobre a realidade” (trata-se de A biblioteca de Babel, mas por quê?); “a investigação mais estranha de Borges nos mistérios da ontologia” (As ruínas circulares, mas por quê?).
A mediocridade do background literário (contrariando a promessa do belo título), que o próprio Woodall admite já de saída, dá as mãos a uma inoportuna e irrelevante hipertrofia da sexualidade de Borges, ou melhor, dos seus problemas sexuais, inclusive uma possível impotência, talvez fonte das afirmações desesperadas sobre a realidade ou das investigações estranhas nos mistérios da ontologia.
E talvez isso não fosse tão problemático se o tempo todo Woodall não insinuasse que provavelmente Borges tivesse sido mais feliz e realizado, se superasse suas inibições sexuais ao invés de sublimar tudo no seu tipo de imaginário ficcional muito peculiar, onde mal aparecem problemas cotidianos ou temas como amor e sexo.
Mas elementar, meu caro Woodall, então ele não teria sido Borges e nulo seria o interesse por sua vida. Não é possível acreditar seriamente que o caminho para se compreender um conto como O Aleph, uma das obras-primas do autor de Elogio da sombra, seja um amor não-correspondido e que o Aleph do conto seja uma sublimação do orgasmo, que Borges tanto temia.
Há muitas pessoas mal amadas, tristes, mal resolvidas sexualmente, por esse mundão de Deus. Se esse fosse o cerne da vida de Jorge Luis Borges (um homem que só queria, no fundo, mas bem no fundo, ser feliz e nada mais, parece ser a “mensagem” do livro), em que ela poderia interessar a um apaixonado por literatura, ou uma pessoa que leu seus grandes textos sem saber nada das circunstâncias biográficas?
O fracasso de biografias como O homem no espelho do livro é que, ao invés de tentar fazer o leitor compreender o conjunto de circunstâncias e o processo interno que fazem um gênio, parecem ao contrário diminuir a genialidade através de detalhes comezinhos e rasos. Ou será que o fato de Borges ter sido um bocó de mola com as mulheres pode obliterar o deslumbramento que um leitor de, digamos, Sri Lanka, pode estar tendo neste exato momento com textos como A morte e a bússola, A escrita do Deus, O jardim de sendas que se bifurcam, O imortal, Os tigres azuis e tantos outros? Ou então servirá de alerta a jovens escritores: sejam felizes, não apostem tudo na literatura.
Aliás, é bom aproveitar esse deslumbramento meramente literário antes que se concretize a já perceptível indústria Borges, made in Kodama, cuja denúncia velada talvez seja uma das poucas qualidades da empreitada de Woodall.
(LEIA TAMBÉM: https://armonte.wordpress.com/2011/03/22/pra-ingles-ver-segunda-parte-machado/
https://armonte.wordpress.com/2011/03/22/pra-ingles-ver-terceira-parte-entre-a-providencia-divina-e-os-comerciantes-britanicos/)