(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 06 de julho de 2010)
Achei tocante e delicada a idéia de KAFKA E A BONECA VIAJANTE (Kafka y la muñeca viajera, 2006, traduzido no Brasil por Rubia Prates Goldoni para a Martins), do espanhol Jordi Sierra i Fabra: ele se inspirou numa anedota da vida de Kafka contada por sua última amante, Dora Dyamant, segundo a qual, tendo encontrado uma menininha desconsolada por ter perdido sua boneca num parque, ele começou a escrever cartas (as quais entregava, adotando a identidade de “carteiro de bonecas”) que seriam da boneca desaparecida, com relatos de suas viagens.
Nunca foram encontradas tais cartas, nunca se soube da identidade da menina ou da veracidade do incidente, ou seja, é mais um daqueles “enigmas” e caça a textos perdidos que comprazem os especialistas e os obcecados e criam uma aura em torno dos grandes autores.
Pois Sierra i Fabra resolveu recriar ficcionalmente todo o incidente, narrando-o num romance infanto-juvenil: ele começa de maneira muito adequada e pertinente, mostrando a solidão de Kafka e sua fome de vida, de alegria, de coisas espontâneas e descomplicadas (“Quando a vida floresce, tudo são janelas e portas abertas”). Está morando em Berlim com Dora (1923), sua tuberculose agravou-se, ele está perto da morte, e adora perambular, pelas manhãs, no parque Steglitz, com sua figura magra e cavalheiresca (“Tinha quarenta anos, portanto era um velho para a menina. E, com sua saúde frágil,talvez fosse mesmo. Como não seria um velho precoce alguém que já está afastado do mundo e aposentado havia um ano devido à tuberculose…”). Numa manhã, ele encontra a pequena Elsi debulhada em lágrimas devido ao desaparecimento de Brígida, sua boneca de estimação.
Uma das coisas mais bonitas do texto é a reação do adulto diante do desamparo infantil (“Por que a dor infantil é tão poderosa?”). Por isso, desorientado e perplexo diante desse sorvedouro emocional, Kafka diz a menina que a boneca não se perdeu, que ela “viajou”, e que ela receberá no dia seguinte uma carta explicando tudo, criando um tumulto de expectativa, uma fenda na realidade prosaica: “Por nada neste mundo, por mais criança que fosse, ela esqueceria a carta. Chegaria em casa e passaria o resto do dia pensando nela. Almoçaria, jantaria e iria dormir se tirá-la da cabeça. Não havia mais nada. Sem Brígida, só lhe restava a carta. Um pequeno grande mundo. Franz Kafka tinha certeza de que pela manhã ela acordaria e faria tudo o que devia, brincar, estudar, ir à escola ou qualquer outra coisa a que estivesse acostumada, mas, quando chegasse a hora, correria até o parque Steglitz à sua procura…”
E ele se entrega febrilmente, assim como em todos os seus projetos de escrita, a compor a carta em que Brígida se explica. Ela é um sucesso. A pequena Elsi “viaja” com sua boneca e então fica à espera de mais, e mais. E aí Kafka se vê enredado por uma menina-sultão que lhe exige o sherazadiano ofício de dar conta do destino da sua boneca viajante. A voracidade do mundo infantil, as exigências do maravilhamento infantil às quais estamos tão pouco equipados a corresponder (“De quantas cartas Elsi precisaria para ser feliz? E Brigida, de quantas para se libertar?”; “A menina nunca perguntava nada sobre ele. Que importava? Os pequenos imaginam que a vida alheia é como sua própria vida. O essencial para ela eram as cartas”; “Elsi nunca se cansaria. Brígida era sua boneca, e cada carta era um maravilhoso jogo e a possibilidade de continuar a seu lado, unidas, compartilhando os dias felizes de sua existência. O final não viria por conta dela, mas dele mesmo”).
Assim, a cada noite ele se vê obrigado a prolongar a viagem de Brígida pelos mais diversos continentes (“No mundo das bonecas não existiam fronteiras, nem raças, nem problemas com as diversas línguas”), deixando sua própria e agônica obra interrompida, à espera, até que o impasse se resolva.
É uma bela idéia, como já afirmei antes, e gostei muito do livro, mas me permitam esse travo de insatisfação: não deixa de ser decepcionante Sierra i Fabra não ter mergulhado a fundo na ficção kafkiana da boneca, e ter dado vida às cartas, às viagens de Brígida. Senti falta disso o tempo todo da leitura: tudo é muito bem armado, o encontro de Kafka com Elsi, as semanas em que ele lhe entrega as cartas, a descrição do relacionamento dele com Dora, a caracterização de uma Berlim pós-guerra (e rumo a outra). O que faz falta é Brígida, no fundo ela continua desaparecida na narrativa, pois o autor nos mostra a “descrição” das suas aventuras, pouco se aventura em imaginar as próprias cartas, ou deixar que elas conduzam a narrativa geral.
Apontada esta limitação, mesmo assim KAFKA E A BONECA VIAJANTE é um texto digno de nota, e com uma proposta aliciadora.
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