A poucos meses de completarem 40 anos de casamento, Joan Didion perdeu subitamente seu marido, John Gregory Dunne (autor do belo Confissões verdadeiras, cuja adaptação cinematográfica proporcionou a Robert de Niro um dos seus desempenhos mais inesquecíveis), na véspera do reveillon de 2004. Já na época do natal, eles estavam com a filha, Quintana, em coma induzido devido a um choque séptico.
O quadro clínico de Quintana irá se agravar ainda por meses após a morte do pai com sérios problemas neurológicos. Um ano de pesadelo, portanto. E por isso pareceria, de saída, ostensivamente irônico o título que a grande escritora norte-americana deu ao livro em que narra toda essa experiência com a perda: O ano do pensamento mágico. Seria mais justo dizer “dolorosamente irônico” porque no fundo, lá no fundo, irracionalmente, ela ainda não acreditava na morte do marido e esperava que o devolvessem, como prova um trecho em que está separando as roupas dele para doação: “Num outro dia, algumas semanas depois, peguei mais sacolas vazias e fui até o escritório do John, onde ele guardava suas roupas. Ainda não me sentia preparada para encarar os ternos, as camisas e as jaquetas, mas achei que poderia dar uma olhada no que restava dos sapatos… Parei na porta do escritório. Eu não podia doar o resto dos sapatos dele. Fiquei ali parada por um momento, e depois compreendi porquê: se ele fosse voltar, precisaria dos sapatos. Ter consciência desse pensamento não o afastou de modo nenhum.”
O ano do pensamento mágico é mais do que o relato dessas vivências muito particulares, embora funcione como o livro de memórias que Joan Didion talvez nuca escrevesse, e feito do seu modo peculiar, por flashes associativos e frases-refrão, típicos do jeito de narrar (ela é a autora do apaixonante Democracia, que tem a minha personagem feminina favorita em toda a ficção norte-americana: Inez Christian Victor, a mulher que percebe que “ninguém está isento do movimento geral”). Nesse jogo da memória evitada (porque causa dor) e constantemente acionada (porque 40 anos em comum não propiciam muitos desvios mentais), há a visão de uma vida não-planejada, de algo que foi dando certo pelo improviso constante, principalmente para quem –segundo ela mesma—tinha problemas em “pensar em mim mesmo como esposa… o conceito de esposa não deveria ter sido difícil para mim, mas foi”, apesar de, numa surpreendente afinidade com Clarice Lispector, dar grande valor aos rituais da vida doméstica: “Aquilo parecia ter funcionado”. Mais adiante: “De algum modo tudo funcionou. Por que achei que essa improvisação nunca fosse acabar? Se eu tivesse percebido que podia terminar, o que teria feito de diferente?”
Isso nos leva ao mais terrível do livro: planejada ou improvisada, a vida que construímos mostra a mesma precariedade tanto diante da morte inelutável (como no caso de John) quanto na experiência degradante que ganha o eufemismo de “tratamento médico” (o caso de Quintana). Ela mesma premonitoriamente já escrevera, vinte anos antes, páginas fantásticas com Inez à volta com hospitais e médicos, em Democracia.
Algumas histórias desvelam essa luta inglória para continuar humano num universo mais inóspito e desumano que qualquer outro: o universo da medicina moderna. É o caso de filmes como Wit, de Mike Nichols, com Emma Thompson, ou do ainda mais notável O óleo de Lorenzo. É o caso da internação e tratamento de Quintana, tal como vividos por sua mãe que, de certa forma comovente e ingênua, ainda tem a pretensão de obter algum controle sobre os fatos, mergulhando na literatura médica a respeito, pois aprendeu, em sua formação intelectual: “Leia, aprenda, trabalhe em cima da coisa, consulte a literatura específica”. Como se houvesse literatura específica para a dor, o medo e a mortalidade. O resultado de tal ‘pesquisa’ é resumido de uma forma brilhante e desalentada: “quando comecei a ler [o Clinical Neuranatomy] só conseguia pensar numa viagem que fiz à Indonésia em que fiquei desorientada pela minha incapacidade de captar a gramática do bahasa indonésico, a língua oficial usada na sinalização urbana, nas lojas e nos cartazes.”
Em tempo: afirmou-se mais atrás que O ano do pensamento mágico funcionava como livro de memórias. Também funciona para ilustrar os erros da memória: tudo o que Joan Didion afirma e cita com respeito a Hans Castorp, herói de A montanha mágica, é na verdade referente ao pai dele.
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em em 22 de julho de 2006)