MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

25/08/2012

A gramática da dor

A poucos meses de completarem 40 anos de casamento, Joan Didion perdeu subitamente seu marido, John Gregory Dunne (autor do belo Confissões verdadeiras, cuja adaptação cinematográfica proporcionou a Robert de Niro um dos seus desempenhos mais inesquecíveis), na véspera do reveillon de 2004. Já na época do natal, eles estavam com a filha, Quintana, em coma induzido devido a um choque séptico.

O quadro clínico de Quintana irá se agravar ainda por meses após a morte do pai com sérios problemas neurológicos. Um ano de pesadelo, portanto. E por isso pareceria, de saída, ostensivamente irônico o título que a grande escritora norte-americana deu ao livro em que narra toda essa experiência com a perda: O ano do pensamento mágico. Seria mais justo dizer “dolorosamente irônico” porque no fundo, lá no fundo, irracionalmente, ela ainda não acreditava na morte do marido e esperava que o devolvessem, como prova um trecho em que  está separando as roupas dele para doação: Num outro dia, algumas semanas depois, peguei mais sacolas vazias e fui até o escritório do John, onde ele guardava suas roupas. Ainda não me sentia preparada para encarar os ternos, as camisas e as jaquetas, mas achei que poderia dar uma olhada no que restava dos sapatos… Parei na porta do escritório. Eu não podia doar o resto dos sapatos dele. Fiquei ali parada por um momento, e depois compreendi porquê: se ele fosse voltar, precisaria dos sapatos. Ter consciência desse pensamento não o afastou de modo nenhum.

O ano do pensamento mágico é mais do que o relato dessas vivências muito particulares, embora funcione como  o livro de memórias que Joan Didion talvez nuca escrevesse, e feito do seu modo peculiar, por flashes associativos e frases-refrão, típicos do jeito de narrar (ela é a autora do apaixonante Democracia, que tem a minha personagem feminina favorita  em toda a ficção norte-americana: Inez Christian Victor, a mulher que percebe que ninguém está isento do movimento geral”). Nesse jogo da memória evitada (porque causa dor) e constantemente acionada (porque 40 anos em comum não propiciam muitos desvios mentais), há a visão de uma vida não-planejada, de algo que foi dando certo pelo improviso constante, principalmente para quem –segundo ela mesma—tinha problemas em pensar em mim mesmo como esposa… o conceito de esposa não deveria ter sido difícil para mim, mas foi, apesar de, numa surpreendente afinidade com Clarice Lispector, dar grande valor aos rituais da vida doméstica: Aquilo parecia ter funcionado. Mais adiante: “De algum modo tudo funcionou. Por que achei que essa improvisação nunca fosse acabar? Se eu tivesse percebido que podia terminar, o que teria feito de diferente?”

Isso nos leva ao mais terrível do livro: planejada ou improvisada, a vida que construímos mostra a mesma precariedade tanto diante da morte inelutável (como no caso de John) quanto na experiência degradante que ganha o eufemismo de “tratamento médico” (o caso de Quintana). Ela mesma premonitoriamente já escrevera, vinte anos antes, páginas fantásticas com Inez à volta com hospitais e médicos, em Democracia.

Algumas histórias desvelam essa luta inglória para continuar humano num universo mais inóspito e desumano que qualquer outro: o universo da medicina moderna. É o caso de filmes como Wit, de Mike Nichols, com Emma Thompson, ou do ainda mais notável O óleo de Lorenzo. É o caso da internação e tratamento de Quintana, tal como vividos por sua mãe que, de certa forma comovente e ingênua, ainda tem a pretensão de obter algum controle sobre os fatos, mergulhando na literatura médica a respeito, pois aprendeu, em sua formação intelectual: Leia, aprenda, trabalhe em cima da coisa, consulte a literatura específica. Como se houvesse literatura específica para a dor, o medo e a mortalidade. O resultado de tal ‘pesquisa’ é resumido de uma forma brilhante e desalentada: quando comecei a ler [o Clinical Neuranatomy] só conseguia pensar numa viagem que fiz à Indonésia em que fiquei desorientada pela minha incapacidade de captar a gramática do bahasa indonésico, a língua oficial  usada na sinalização urbana, nas lojas e nos cartazes.”

Em tempo: afirmou-se mais atrás que O ano do pensamento mágico funcionava como livro de memórias. Também funciona para ilustrar os erros da memória: tudo o que Joan Didion afirma e cita com respeito a Hans Castorp, herói de A montanha mágica, é na verdade referente ao pai dele.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em  em 22 de julho de 2006)

Vislumbres do movimento geral: a poética do desfocamento de Joan Didion

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 27 de julho de 1999).

Em Democracia, um dos romances que eu mais aprecio, pode ser lida a seguinte frase: “Não havia razão para qualquer um ficar isento do movimento geral”. Este, poderia ser, ao que parece, o lema nos livros de Joan Didion, como o leitor pode conferir em A ÚLTIMA COISA QUE ELE QUERIA (The lost thing he wanted, 1996, em tradução de Carlos Eduardo Matos para a Record),já de saída uma das traduções importantes de1999.

A princípio implica-se um pouco com A última coisa que ele queria porque parece uma reedição de temas e ritmos narrativos de Democracia: uma mulher norte-americana é colocada numa situação em que perde todos os seus referenciais (ou seja, é arrebatada pelo movimento geral), e que se envolve com um sujeito que atua “por debaixo dos panos” na estratégia política dos EUA, daquele tipo que fornece, como a autora diz: “vislumbres colaterais das longínquas fronteiras da Doutrina Monroe” (leia-se “imperialismo norte-americano”).

Mas atacar o livro por esse ângulo é mais do que inapropriado, é inaproveitável: é o mesmo que dizer que Fellini se repetia na maioria dos seus filmes, ou que Scorsese ao filmar Cassino reeditou Os bons companheiros. Bobagem. Obsessões criativas não criam repetição, criam jogos de espelhos, criam reverberações novas onde parecia que nada mais iria acontecer.

Em A última coisa que ele queria a protagonista que “perde todos os seus referenciais”, que perde sua isenção no movimento geral, é Elena McMahon, que, ao fazer uma visita ao pai, descobre que ele está muito doente e que iria fazer uma grande negociação com armas (na verdade, seria enganado e serviria como bode expiatório de um atentado) para a América Central (é a época do auge do governo sandinista). Ele, então, pede à filha que faça a transação por ele (tornando-a, sem querer, o novo “pato” da trama).

O homem com quem ela se envolve, aquele que mexe os pauzinhos “por debaixo dos panos” é Treat Morrison, que é, afinal, o alvo do atentado.

Como no outro romance, Didion aparece como a narradora que não quer seguir as regras do jogo, que “perdeu a paciência com as convenções do ofício”, que não aceita mais contar uma história. Ela, portanto, a monta, desmonta, contrai e estica, através de frases e imagens que vão e voltam incessantemente, de uma forma que nos remonta ao noveau roman francês, naquele tipo de ficção experimentada por Alain Robbe-Grillet ou Marguerite Duras (embora sejam escritores bem diferentes), uma experimentação formal que muitas vezes tinha um conteúdo bem politizado, como é o caso do próprio Robbe-Grillet e especialmente de Claude Ollier, veja-se, por exemplo, A encenação.

Mas é bem possível que a técnica narrativa de Joan Didion e de seus maravilhosos romances nada deva a esses talentosos experimentadores franceses. A impressão que fica é que ela optou por narrar dessa forma porque os fatos políticos que acontecem em seus livros geram tantas controvérsias, inverdades, “versões” oficiais, que acabam gerando uma necessidade de contá-los levando em conta essas distorções da realidade.

O leitor, ao longo de A última coisa que ele queria, vê dispostas numa mesa várias fotos desfocadas. O trabalho da narradora não foi tanto o de torná-las mais nítidas, contudo (e isso sim é muito mais instigante), quanto de fazer o leitor pressentir os motivos para o desfocamento, o que poderia estar implícito nessas imagens imprecisas. Talvez o elemento condutor, o fio que liga todos esses instantâneos duvidosos, Elena McMahon, não seja tão marcante quanto a Inez Christian Victor, de Democracia, possivelmente a personagem feminina mais fascinante da década de 1980 (pelo menos na ficção norte-americana), mas esse novo vislumbre do movimento geral apanhando na sua rede alguém que parecia isento e imune é quase tão bom quanto o outro.

27/12/2009

Em relação ao século XX: 100, 75, 50, 25 anos de obras e autores

[Juan Carlos Onetti]

{Eugene Ionesco}

[Norberto Bobbio]

[Selma Lagerlöf]

100 anos- Em 2009, a escritora alemã Herta Müller ganhou o Nobel. Exatamente cem anos atrás, a sueca Selma Lagerlöf (1858-1940) tornava-se a primeira mulher a receber o prêmio. Não conheço muito bem sua obra,  só li algumas histórias de De saga em saga, uma coletânea que aparece numa coleção dos premiados com o Nobel, porém há um ensaio excelente de Marguerite Yourcenar sobre ela em Notas à margem do tempo, e que nos faz vislumbrar um universo fascinante.

    No mesmo ano em que a autora de A saga de Gösta Berlings (seu livro mais conhecido) se tornava a pioneira de uma lista ainda muito pequena, nascia na Romênia natal de Herta Müller um dramaturgo originalíssimo, que faria parte do chamado “teatro do absurdo”: Eugene Ionesco, de A cantora careca, Os rinocerontes; A lição; e, no Uruguai, um dos prosadores que mais mereceriam o Nobel no século XX: Juan Carlos Onetti, com obras do calibre de A vida breve, O estaleiro & Junta-Cadáveres, e que forma, com o argentino Jorge Luis Borges e o mexicano Juan Rulfo a santíssima trindade da ficção hispano-americana.

      Também em 1909, nascia o grande pensador italiano Norberto Bobbio, autor dos ensaios maravilhosos reunidos em Nem com Marx, nem contra Marx. E na Letônia nascia o luminoso Isaiah Berlin (que faria carreira na Inglaterra), o autor de Pensadores russos, um pensador que gostava mais de escrever ensaios do que preparar “livros”.  E naquele ano, Lima Barreto lançava seu libelo anti-racista que também, e principalmente, é um poderoso romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha.

75 anos- De 1934, gostaria de destacar dois romances essenciais: o maior livro de Graciliano Ramos, São Bernardo (ser o melhor livro de um escritor como Graciliano é um fato por si só notável; para mim, aliás, os maiores romances brasileiros do século passado são Grande sertão: veredas; A maçã no escuro; São Bernardo  & Triste fim de Policarpo Quaresma); e o terrível e avassalador Morte a crédito, de Louis-Ferdinand Céline (que talvez seja até maior do que sua obra-prima anterior, Viagem ao fim da noite). Vidas secas e cheias de angústia no Nordeste e na França. A vida lembrada, cá e lá, como memórias do cárcere

[raymond chandler]

50 anos- É difícil escolher o acontecimento literário supremo de 1959, ano em que morria o grande Raymond Chandler, pois nesse ano iniciavam suas carreiras gloriosas nomes como Günter Grass, com O tambor de lata, certamente um dos maiores romances já escritos; os outros não começaram já nesse patamar: Philip Roth (Adeus, Columbus), Vargas Llosa (Os chefes) e Dalton Trevisan (Novelas nada exemplares). O único título comparável em magnitude ao de Grass talvez seja O almoço nu, que revelou o universo muito peculiar de William Burroughs, mas cuja legibilidade maior foi possível graças à notável versão cinematográfica de David Cronemberg (a versão de O tambor nada tem de notável). Mesmo assim, um romance cinquentenário pelo qual tenho um carinho especial é Um cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller Jr, merecidamente um clássico da ficção científica, mas que não se restringe a um “livro de gênero”. Na área de contos, é difícil pensar num título mais importante do que As armas secretas, de Cortázar, não só por causa da sua qualidade literária (o meu favorito é “Cartas da mamãe”, mas o mais considerado é “O perseguidor”, baseado na vida de Charlie Parker), como pela sua influência na literatura dos anos 60 e 70: basta lembrar que “As babas do diabo” foi a inspiração de Antonioni para seu Blow up (1968). Também não se pode esquecer a irreverência, a jovialidade e o trato de linguagem de Zazie no metrô, a obra-prima de Raymond Queneau.

     Em 1959, Jean-Paul Sartre dedicou-se a escrever um roteiro imenso (depois não utilizado, naquela época não existiam as produções para a tv a cabo, não existia a HBO; mesmo assim, Sartre resmungou que as pessoas tinham paciência para ver quatro horas da vida de Ben-Hur e não tinham para ver a vida do criador da psicanálise) sobre a vida de Freud para John Huston. O filme é ótimo, mas o texto de Sartre não fica atrás: Freud, além da alma; o marcante romancista português Vergílio Ferreira lançou sua obra mais famosa, o difícil porém importante Aparição; e há quem ache uma obra-prima (não é o meu caso) Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, ainda assim um livro que se deve levar em conta. Em todo caso, eu prefiro o folhetinesco Asfalto selvagem, as deliciosas desventuras em série de Engraçadinha, uma das grandes criações de Nélson Rodrigues

25 anos- Em 1984, morriam tanto Cortázar quanto outro autor genial, Truman Capote, cujo inacabado romance Súplicas atendidas foi lançado no Brasil este ano pela L&PM, e que prova o incrível trabalho feito pela sua alcoólica mãe (que tinha vergonha da homossexualidade do filho) para lhe incutir culpa e autodesprezo. Numa vertente gay oposta, de eliminação de toda essa automortificação, temos um clássico da nossa ficção recente, Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, um romance paródico, inventivo e infelizmente pouco conhecido, assim como Democracia, da norte-americana Joan Didion, e até mesmo O ano da morte de Ricardo Reis, o menos popular (e o melhor) José Saramago. Muito conhecido, pelo contrário, e igualmente notável é O amante, de Marguerite Duras.

julio cortázar & truman capote]

25 anos- Em 1984, morriam tanto Cortázar quanto outro autor genial, Truman Capote, cujo inacabado romance Súplicas atendidas foi lançado no Brasil este ano pela L&PM, e que prova o incrível trabalho feito pela sua alcoólica mãe (que tinha vergonha da homossexualidade do filho) para lhe incutir culpa e autodesprezo. Numa vertente gay oposta, de eliminação de toda essa automortificação, temos um clássico da nossa ficção recente, Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, um romance paródico, inventivo e infelizmente pouco conhecido, assim como Democracia, da norte-americana Joan Didion (sempre cito uma de suas frases, “ninguém está isento do movimento geral”, e sua heroína, Inez Christian Victor, é como se fosse uma amiga pessoal), e até mesmo O ano da morte de Ricardo Reis, o menos popular (e o melhor) José Saramago. Muito conhecido, pelo contrário, e igualmente notável é O amante, de Marguerite Duras, a qual justamente em 1959 havia escrito o mais belo dos roteiros em hiroshima, meu amor, dirigido por Alain Resnais.

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