“__ Como está se sentindo?—perguntou Bellamy, com o bloquinho de notas a postos.
__ Estou vivo, não?—Harold deu um tapinha no cigarro, fazendo a cinza cair em um pequeno cinzeiro de metal.—Mas hoje em dia, quem é que não está?”
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 de maio de 2014)
Por causa do seriado em exibição pelo canal AXN intitularam no Brasil um romance de Jason Mott que, no original, é The Returned (aproveitando a solução da tradução de Luiz Augusto da Silveira, “Os Ressurgidos”), como Ressurreição[1].
Enquanto na sua adaptação televisiva (pelo menos até a altura em que escrevo esta resenha,), algumas pessoas mortas (um menino afogado, um pai de família nada exemplar e a amada de um pastor religioso) reaparecem numa cidadezinha sulista dos EUA, e segredos ligados a suas mortes vêm à tona (há também uma conexão psíquica entre esses ressurgidos), no livro ocorre uma ressurreição em massa, embora aleatória.
O que seria um milagre capaz de despertar ou renovar a fé (afinal, é o fundamento do cristianismo) descamba para um problema logístico em nível planetário: não só eles agravam a superpopulação, como enfrentam rejeição e hostilidade, em uma escalada de incidentes violentos. Nasce até uma categoria de diferenciação discriminatória, os “autenticamente vivos”. O milagre não é suficiente. A força da vida banal prevalece.
A seguir, as autoridades decidem pelo cadastramento, captura e segregação dos ressurgidos. Aos poucos, acompanhamos a triste lógica da exclusão e do descaso: “… com o passar das semanas, os prisioneiros mais antigos chegaram à conclusão de que não iriam para casa e de que as coisas pioravam a cada dia, então começaram a se importar cada vez menos com a aparência… Os banheiros da ala oeste estavam quebrados por excesso de uso, mas continuavam ativos. A direção parecia achar que, enquanto as pessoas continuassem usando o banheiro quebrado, estava tudo bem. Muitos pararam de se importar. Mijavam ou cagavam onde quer que conseguissem um momento de privacidade. Alguns nem de privacidade precisavam…”
Isso para não falar de alguns aspectos mais próximos ao sadismo institucionalizado dos campos de concentração: um coronel do exército, por exemplo, dispara uma arma numa das ressurgidas para ver “o que acontece”. Como o governo utiliza localidades do interior com baixa produtividade econômica para alojar esses depósitos humanos, os habitantes locais se sentem traídos: formam-se os típicos grupos milicianos, frutos do ressentimento e do culto às armas como uma espécie de fronteira final do “direito do cidadão”[2].
Como se vê, Jason Mott optou por uma abordagem mais política (na linha de The Walking Dead[3]), abdicando da exploração dos fundamentos da ressurreição dessa gentarada toda e sobretudo da especulação do que acontece quando se morre, se há de fato um plano transcendente. Muitos dos seus personagens têm aquela religiosidade arraigada tipicamente norte-americana[4], entretanto a perplexidade é geral quanto ao fenômeno narrado no livro, e nenhum ressurgido revela nada de uma possível vida após a morte, só os vemos mesmo é na sua condição de vítimas de um torvelinho segregacionista.
Por outro lado, como o próprio autor nos diz, ele escreveu um romance para que “um menino pudesse finalmente se despedir de sua mãe”. Então, temos a trama “intimista” de Ressurreição, que tinha tudo para ser o seu calcanhar de aquiles: a volta do menino Jacob Hargrave, o qual morrera com 8 anos, quando os pais, Harold e Lucille eram jovens e que, ao ressurgir meio século depois, os encontra velhos. Harold empederniu-se como um homem rabugento e cético, e que se recusa a ver naquela “criatura” trazida por um agente do governo, negro e ianque (Martin Bellamy — interpretado na adaptação por Omar Epps, e teoricamente o protagonista — que se tornará um grande amigo) o seu filho morto. Mesmo assim, o acompanhará e o protegerá quando ele for levado para detenção.
Apesar de todos os apelos traiçoeiros do sentimentalismo padronizado de conflitos e mágoas familiares, tão infinitamente explorado na ficção e no cinema, penso que Harold e Lucille são os grandes achados de Jason Mott como romancista (em alguns momentos, eles me trouxeram à mente o universo de Anne Tyler e seu olho infalível para as fissuras nas relações mais íntimas, nos “laços de ternura” mais apertados). É uma lástima que no seriado, embora vividos por veteranos da categoria de Frances Fisher e Kurtwood Smith, eles não tenham esse realce (fazem falta a pungência da idade e a provocação mútua gerando humor –e calor humano— que acompanhamos no livro). Mesmo assim, considero a interpretação de Smith a melhor coisa, de longe, nos episódios já assistidos.
A surpreendente idade (fugindo do figurino das tramas de ação) que ele deu aos protagonistas da sua história, a ligação deles com a sua casa (muito importante na dinâmica narrativa) e com a cidadezinha onde passaram suas vidas (que ajuda a inserir o seu drama no quadro geral), e o contraste das personalidades, garantem os melhores momentos do texto, apesar do incômodo exagero nos capítulos finais (os mais movimentados, por assim dizer).
Não creio que Mott tenha solucionado de forma totalmente satisfatória a fusão das duas órbitas percorridas por sua soturna fábula (aquela que envolve os Hargrave e a que narra a situação mundial pós-ressurgimento), e penso que ele desperdiçou as possibilidades mais instigantes[5], mas pelo menos me emocionou genuinamente o drama desse casal de pais idosos que, de repente, têm de lidar com o equacionamento de toda uma vida de memórias e de ausência efetuado pela presença muito viva de um filho novo e vulnerável, e que dentro do seu pequeno núcleo tenta domar o caos, o inóspito do mundo à volta, os dilemas da mortalidade e as pequenas picuinhas neuróticas que se incrustam inexoravelmente nas relações. Exatamente como todos nós fazemos dia a dia.
Assim, o livro Ressurreição não precisa da confecção de um suspense por conta segredos que vão sendo deslindados (tal como na série), em meio a um acontecimento sobrenatural, para alimentar seu interesse maior. Basta o mistério (no fundo, o milagre) dos afetos.
NOTAS
[1] Uma opção particularmente infeliz quando se sabe que há o visceral Ressurreição de Tolstói, e de que o primeiro romance de Machado de Assis tem esse título.
[2] Principalmente, a população masculina que vai envelhecendo, sem função, e com todos os seus preconceitos e prevenções. Como o narrador afirma, a respeito do líder deles, Fred Green: “… como frequentemente ocorre com certos tipos de homens, resolvera que se manter raivoso era a melhor maneira de lidar com o que estava acontecendo em seu coração, cujo significado ele não compreendia”.
Em contrapartida, tem sempre aquele personagem (no caso, Lucille) que, tipicamente, fica perplexo com as coisas horríveis que o governo americano pode fazer em seu território: “Ali mesmo, nos Estados Unidos, isso estava acontecendo”.
[3] Embora também há certos elementos de The Returned que me lembraram (guardadas as devidas proporções) os romances alegóricos de José Saramago, como Ensaio sobre a cegueira, afinal o grande escritor português escreveu As intermitências da morte. Porque, apesar das limitações, Mott me pareceu, pela leitura desse único livro, um escritor que não quer ficar apenas na área de influência de Stephen King ou The walking dead. Há até um toque A sangue frio na curiosa história da família assassinada, e a qual representa uma espécie de fardo simbólico de culpa da cidadezinha inteira.
E olhe que fiquei mal impressionado quando li, na edição brasileira, que ele era “bacharel em escrita ficcional” e “mestre (no sentido de formação acadêmica, bem entendido) em poesia”, coisas inconcebíveis para mim.
[4] O que não impede de haver um estranho erro (pelo menos na edição brasileira): O pastor Peter faz um sermão onde diz: “Vivemos num tempo digno do Velho Testamento. Lázaro não só ressurgiu do túmulo, mas, ao que parece, também trouxe todos com ele”. Lázaro não é do Novo Testamento, pastor?
[5] Sem contar que na sua procura (louvável) de um estilo cuidadoso e matizado de imagens, ele incide por vezes em formulações infelizes: “Jim e Connie já na escola eram namorados, dois eternos apaixonados. Relações ilícitas não constavam no DNA do amor deles”. Valha-me Deus!