MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

28/03/2017

UM CLÁSSICO DO MODERNISMO E DA CONTRACULTURA

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de março de 2017)

Na semana passada, comentei Ao Farol, de Virginia Woolf, por conta dos 90 anos de sua publicação original. Outro clássico do modernismo, também surgido em 1927, ainda mais influente (marcou profundamente a época da contracultura, nos anos 60), é O LOBO DA ESTEPE, a mais conhecida obra do grande Herman Hesse.

Harry Haller, o protagonista, está chegando aos 50 anos obcecado pela ideia de degolar-se com uma navalha, para fugir da angustiante divisão do seu ser em duas personalidades: uma burguesa, que deseja calor, companhia (ele, um errante, sempre se hospeda em casas que lembram sua infância); outra, que ele denomina de “lobo da estepe”, misantropa e desadaptada, destinada à solidão e orgulhosa dessa condição.

Doris Lessing, a respeito de O Carnê Dourado (1962), romance que tem muitas afinidades com O LOBO DA ESTEPE, inclusive por causa da estrutura ousada e complexa, afirmou que às vezes pirar é uma forma de autocura, uma maneira de nosso eu interior eliminar falsas dicotomias e divisões. É o que acontece com Harry Haller: ele é convidado a participar de um Teatro Mágico, “só para raros e loucos”.

Esse teatro é sua própria personalidade. Hesse investe contra a pretensa unidade do eu. Na verdade, somos um feixe de eus: “Não há nenhum eu, nem mesmo o mais simples, mas um mundo plural, um pequeno firmamento, um caos de formas”.

E Harry, ao longo do romance, irá experimentar algumas das suas outras almas, numa saudável esquizofrenia, por assim dizer, tendo como guias Hermione e Pablo. Hermione é seu duplo feminino, a cortesã que o obriga imperativamente a usufruir da vida, a dançar, a praticar intensamente o sexo, a se dissolver “na festa”.

Pablo, por sua vez, é o belo músico aparentemente burro e tolo, mas que se revela o guia para os mais recônditos cenários do Teatro Mágico, aqueles onde Harry terá que se deparar com suas almas mais sombrias. Pois uma das “lições” da história de Harry Haller é que se precisa do humor, acima de tudo; para se encarar a vida a sério é necessário não se levar a sério. Como o Mozart do Teatro Mágico diz a Haller: “Aprenda a levar a sério o que merece ser levado a sério, e a rir de tudo o mais!”.

Contudo, o melhor de O LOBO DA ESTEPE é que não há soluções ou verdades definitivas, nem o personagem acaba bem, apaziguado, conciliado. Esse livro, na terceira leitura, como na primeira (e provavelmente numa quinta ou décima) é um duro e perturbador reaprendizado da sensibilidade e da percepção do mundo. E sempre restará ao leitor a esperança de, na próxima leitura, ter aprendido a jogar melhor o jogo da existência, desejo formulado por Harry nas frases finais.

01/12/2015

O MÁGICO E O UMBRAL: AS BIOGRAFIAS CONJETURAIS DE HERMANN HESSE

SWITZERLAND-LITERATURE-HERMANN-HESSECapa Demian V3 MF

[uma versão do texto abaixo foi publicada no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO em 18 de novembro de 2015, ver: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/11/o-magico-e-umbral-as-biografias.html]

1

Não deixa de ser um fato inusitado, apesar de auspicioso, a Record publicar uma edição comemorativa dos cinquenta anos da tradução de Ivo Barroso para Demian História da juventude de Emil Sinclair[1].  Texto-ícone do século vinte, fez a cabeça de muitos. Nele encontramos a famosa e nietzschiana frase: «Quem quiser nascer tem que destruir um mundo».

Hermann Hesse (1877-1962) publicou-o em 1919 sob pseudônimo e houve muita especulação na época sobre a verdadeira identidade do autor. Quando foi descoberta, o livro passou a ser considerado uma espécie de divisor de águas na sua trajetória artística. E um grande salto, constata-se hoje, embora na memória de quem aqui escreve e tenham permanecido, durante anos, após a primeira leitura, muitos aspectos irritantes e literariamente derrisórios, a saber:

1) essas pessoas (guias, como são denominadas) que aparecem do nada e que dão ao leitor a ideia de que o universo inteiro está voltado para o destino do protagonista, Emil Sinclair;

2) os símbolos (o pássaro heráldico meio gavião meio fênix, o sinal de Caim, a mãe que se chama Eva), que são exaustivamente explicados para o leitor, como se este fosse retardado;

3) a ausência absoluta de um pano de fundo mínimo para as reviravoltas íntimas do personagem, já que todos à sua volta parecem fantasmas;

4) os diálogos irreais e inverossímeis, e, se pensarmos na faixa etária dos personagens (se é que se pode chamar de personagens seres tão esquemáticos, pedantes e pomposos).

Recapitulemos o fio de enredo: Emil Sinclair, aos 10 anos, oriundo de uma família extremamente religiosa, fica à mercê de outro menino, Kromer, que faz chantagem com ele. Um terceiro garoto, Max Demian, forasteiro que começou a estudar no mesmo colégio de Sinclair, aproxima-se dele e consegue afastar Kromer.

A experiência com Kromer faz Sinclair entrar em contato com o que ele chama de mundo sombrio, subjacente ao mundo luminoso representado pela família. Demian revela, através de uma reinterpretação da história de Caim, que não existe tal dicotomia: o mundo é ao mesmo tempo luminoso e sombrio. Mas Sinclair ainda não está preparado para aceitar tal verdade (e «the readness is all», como diria Hamlet), e através de suas experiências como adolescente mantém uma visão dualista: ora cai na esbórnia, na dissipação, ora cultua a pureza e a santidade[2].

Durante essa trajetória, Demian manteve-se afastado da vida de Sinclair e este teve como único amigo o organista (e sacerdote frustrado) Pistórius, que lhe ensina tudo sobre Abraxas, divindade da Antiguidade a um só tempo Deus e Demônio, congregando em si o luminoso e o sombrio.

A aproximação da guerra é o paralelo coletivo da busca de Sinclair: ele tem de sair da casca, isto é, destruir um mundo, para nascer um novo homem; e o mundo carcomido da Europa talvez tenha de passar pela destruição para renascer como a ave fênix: «A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir o mundo».

As quatro objeções mencionadas só funcionam se forçarmos a barra para enquadrar convencionalmente Demian como romance ou novela. Sem essa muleta classificatória, o texto revela suas qualidades e o seu alcance. E nos damos conta de que foi escrito por um poeta que se exprime num relato lírico, projeção poética de experiências pessoais, que não demanda qualquer verossimilhança, pois se fundamenta numa simbologia particular. Que se aceita ou não.

Só mais tarde é que Hesse conseguiu se reequilibrar como narrador, conservando as conquistas de Demian. Surgiram, assim, seus autênticos romances: O lobo da estepe, Narciso e Goldmund e O jogo das contas de vidro.

Vencidos (parcialmente, é preciso confessar) certos preconceitos literários, é fascinante observar, numa releitura, como Hesse trabalha com vários elementos do imaginário cristão (a história de Caim, a figura de Eva, os dois ladrões crucificados com Jesus, a luta de Jacó com o anjo) para lançá-los de encontro a conceitos do pensamento religioso oriental, principalmente aqueles que são o que talvez de mais coerente e pertinente se tenha pensado sobre o mundo e a existência, isto é, aqueles que se baseiam na impermanência de todas as coisas, mesmo as que amamos; e, além do orientalismo (que daria origem ao seu belíssimo livro seguinte, Sidarta, de 1922[3]), a presença da psicanálise de feição junguiana, com o uso insistente dos sonhos e do inconsciente coletivo, sem contar uma inequívoca tendência edipiana.

Aliás, tudo isso está representado no texto pela mudança de significado de outro símbolo importante: o umbral (ou soleira) que a princípio servia para delimitar o mundo luminoso e o mundo sombrio, e depois é retomado como símbolo de passagem, mas uma passagem que faz tudo convergir e que congrega tudo, inclusive as contradições.

E se o livro parecia antes egocentrado em demasia, agora parece simplesmente individualista[4]. No melhor sentido da palavra. Num mundo uniformizado, onde todos querem se nivelar pelo denominador comum do consumo e da facilidade, ler o processo de constituição de uma individualidade verdadeira e poderosa é algo eletrizante. O próprio texto encarrega-se, por sua vez, de investir contra o rebanho, a submissão à massa:

«Os filhos de Caim, marcados com o “sinal”, atemorizavam os demais, e aquele sinal passou a ser explicado não como a distinção que realmente era, mas exatamente como o contrário. Passaram a dizer que os homens assim marcados eram pessoas suspeitas e ímpias, o que, na verdade, ocorria. Pois os homens corajosos, as pessoas de caráter, sempre inquietaram os demais. Tornava-se, portanto, francamente incômoda a existência de uma raça especial de homens sem medo e capazes de infundir medo aos demais, e então lhes atribuíram um apodo e uma lenda amarga para se vingarem daquela raça e justificarem de certo modo os temores sofridos…. Entendes?

 — Acho que sim… Mas… nesse caso, Caim não era mau e toda a narração da Bíblia está errada.

 — Está e não está…. Essas histórias da remota antiguidade são sempre em essência verdadeiras, mas nem sempre foram recolhidas e explicadas com toda a garantia de exatidão. Para resumir, minha opinião é que Caim era um verdadeiro homem, e lhe arranjaram essa história porque o temiam. A origem do assunto não passou de um murmúrio, como tantas dessas coisas que se contam por aí; mas a fábula tinha cunho de verdade no que diz respeito a Caim e seus filhos trazerem um sinal e se diferençarem dos demais homens… ».

 

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Em Autobiographical writings, traduzido no Brasil como Minha vida, Theodore Ziolkowski reuniu doze textos autobiográficos de diversas épocas, feições e níveis de qualidade. Nenhum deles é desperdício de tempo, três são especialmente lindos.

O meu favorito, de longe, é Hóspede do Balneário (1924); como esquecer, contudo, A infância do mágico (1923) ou Autobiografia resumida (1925)? Este último é muito curioso e instigante: até certo ponto, Hesse parece estar nos contando de uma forma poética e concentrada os caminhos da sua vida, mas em determinado ponto, assim como fez com seus personagens nos romances, ele inventa um destino biográfico para si, fazendo um exercício de biografia conjetural. Assim, por exemplo, a persona, ou eu lírico, que nos narra sua autobiografia mostra como anelou por ser poeta desde a adolescência («A questão era a seguinte: a partir do meu décimo terceiro ano de idade tornou-se claro que eu queria ser poeta ou nada»). Vocação assumida e até bem-sucedida enquanto carreira profissional, por incrível que pareça, de repente uma terrível cisão interna, que a Primeira Guerra acarretou, fez com que abraçasse um pacifismo revoltante para seus concidadãos e amigos, amargando um terrível isolamento («vi-me denunciado como traidor»).

O sofrimento e os conflitos, tanto externos quanto interiores (faz um severo exame de consciência, «obrigado a procurar a causa de meus sofrimentos não externamente, mas dentro de mim») desemboca numa radical transformação pessoal. Nós sabemos, por Demian, que isso aconteceu de fato com Hermann Hesse.  Mas ele transforma seu poeta num pintor, envolvido também com magia, que acaba sendo preso («Com mais de setenta anos de idade, logo após ter sido escolhido por duas universidades para receber graus honorários, fui levado a julgamento por ter seduzido uma jovem usando mágica»). Na prisão, ele pinta uma paisagem (atravessada por um trem) na parede da cela e a fantasia biográfica vai se encaminhando para um fim digno de Borges:

«Foi diante desse quadro em minha cela que eu me achava um dia, quando os guardas chegaram mais uma vez, com seu chamamento tedioso e tentaram arrancar-me de minha atividade feliz. Nesse momento senti cansaço e algo como uma revolta contra toda aquela azáfama, aquela realidade brutal e sem espírito. Se não me permitiam ficar com meu inocente jogo de artista, sem ser perturbado, nesse caso devia recorrer àquelas artes mais severas a que havia dedicado tantos anos da vida. Sem a mágica, aquele mundo era intolerável.

   Chamei ao espírito a fórmula chinesa, mantive-me por um minuto com a respiração suspensa e me libertei da ilusão da realidade. Depois solicitei afavelmente aos guardas que fossem pacientes por mais um momento, já que tinha de entrar em meu quadro e procurar alguma coisa no trem. Eles riram como costumavam fazer, pois me consideravam mentalmente desequilibrado.

   Foi quando me tornei pequeno e entrei em meu quadro, embarquei no trenzinho e segui nele para o túnel pequenino e negro. Por algum tempo a fumaça de fuligem continuou a ser visível, saindo do buraco redondo, depois se dispersou e desapareceu, e com ela todo o quadro e eu com ele.

   Os guardas ficaram para trás, tomados de grande embaraço».

Esse texto fantasioso e notável prolonga a vivência descrita em Infância do Mágico, onde são acrescentados aos detalhes reais (ele evoca os pais, o avô de uma forma extraordinária) elementos “fantásticos” que, na verdade, reproduzem as percepções de qualquer criança imaginativa: «Duradouro foi o meu sonho infantil de que o mundo me pertencia, que somente o presente existia, que tudo se achava arrumado em volta de mim para tornar-se um belo brinquedo… Tudo era prenhe de realidade e tudo era prenhe de mágica, os dois cresciam conscientemente lado a lado, ambos me pertenciam… Como era diferente o aspecto da nossa porta dianteira, o barracão do jardim e da rua em uma noite de domingo, confrontado com a manhã de segunda-feira! Que semblante inteiramente diverso o relógio da parede e a imagem de Cristo na sala de visitas apresentavam no dia em que o espírito do vovô dominava, em confronto com aqueles dias quando dominava o espírito de meu pai, e como tudo isto mudava outra vez e por completo naquelas horas quando não havia mais o espírito de pessoa alguma, senão o meu próprio, dando às coisas sua assinatura, quando minha alma brincava com as coisas e lhes conferia nomes e significados novos… Como era pouco o que se mostrava fixo, estável, duradouro…».

Em 1924, o futuro amigo íntimo (a essa altura, longe disso; apesar de se conhecerem há muitos e muitos anos) Thomas Mann lançava A montanha mágica. Hesse, por sua vez, sofrendo com a ciática, passou algumas semanas na estação de águas de Baden. Escreveu então uma longa e apaixonante crônica da sua estadia, que parece ser a contrapartida miniatural do enciclopédico e ciclópico livro do colega. Uma joia rara, desde o momento em que ele desce na estação, reconhecendo seus “companheiros” e “concidadãos” no universo da ciática, ao mesmo tempo sentindo-se superior por poder andar um pouco mais desembaraçadamente, sem tantos indícios de invalidez: «Via-me cercado de longe e de perto por colegas sofredores, competidores junto aos quais eu era vastamente sofredor. Que sorte a minha ter vindo a tempo, ainda na primeira etapa de uma ciática camarada, ainda com os primeiros sintomas débeis de artritismo inicial! Fazendo a volta e apoiado na bengala fiquei olhando o leão-marinho por algum tempo, com aquela sensação conhecida de satisfação, provando que a língua não pode ainda exprimir os processos psicológicos, pois os opostos linguísticos, maldade e solidariedade, aqui se encontram unidos com a maior profundeza».

A partir daí não há uma página em que o leitor não tenha um trecho deslumbrante em sua percepção da natureza humana, dos próprios processos íntimos neuróticos (a insônia e seus tormentos, e a premente, mas quimérica necessidade de encontrar um quarto de hotel “tranquilo”). Enfim, uma obra-prima de um mágico que tirava existências da cartola.

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ANEXO

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em primeiro de dezembro de 2015)

Não deixa de ser um fato inusitado, apesar de auspicioso, a Record publicar uma edição comemorativa dos cinquenta anos da clássica tradução de Ivo Barroso para Demian. Mas se trata de uma obra que fez a cabeça de gente sem conta. Hermann Hesse publicou-o em 1919, sob pseudônimo, e houve muita especulação na época sobre a verdadeira identidade do autor. Quando foi descoberta, o livro passou a ser considerado uma espécie de divisor de águas, e um grande salto mortal, na sua trajetória artística.

Recapitulemos o fio do enredo: Emil Sinclair, aos dez anos, oriundo de uma família extremamente religiosa, fica à mercê de Kromer, que faz chantagem com ele. Um terceiro garoto, Max Demian, forasteiro, aproxima-se dele e consegue repelir o colega assediador.

A experiência com Kromer faz Sinclair entrar em contato com o que ele chama de mundo sombrio, subjacente ao mundo luminoso representado pela família. Demian revela, através da reinterpretação da história de Caim, que tal dicotomia não se sustenta: o mundo é luz e sombra. Sinclair, contudo, ainda não está preparado para aceitar essa verdade, e através de suas experiências como adolescente mantém uma visão dualista: ora cai na esbórnia, na dissipação; ora cultua a pureza e a santidade.

Durante essa trajetória, Demian manteve-se afastado da vida de Sinclair e este teve como único amigo o organista (e sacerdote frustrado) Pistórius, que lhe ensina tudo sobre Abraxas, divindade da Antiguidade, a um só tempo Deus e Demônio.

A aproximação da guerra é o paralelo coletivo da busca de Sinclair: ele tem de sair da casca, isto é, destruir um mundo, para nascer um novo homem; e o mundo carcomido da Europa talvez tenha de passar pela destruição para renascer como fênix: «A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir o mundo». Aliás, tudo isso está representado no texto pela mudança de significado de outro símbolo importante: o umbral (soleira) que a princípio servia para delimitar o mundo luminoso e o mundo sombrio, e depois é retomado como símbolo de passagem, que faz tudo convergir e congrega todos os dados do existir, inclusive as contradições e dilaceramentos.

Demian foi escrito por um poeta que se exprime num relato lírico, projeção cifrada de experiências pessoais, que não demanda qualquer verossimilhança, pois se fundamenta numa simbologia muito particular. Que se aceita ou não. Vencido certo pé-atrás literário, é fascinante observar, numa releitura, como Hesse trabalha com vários elementos do imaginário cristão (Caim, Eva, os dois ladrões crucificados com Jesus, a luta de Jacó com o anjo) para lançá-los de encontro a conceitos do pensamento místico oriental  que se baseiam na impermanência de todas as coisas, mesmo as que amamos; e, além do orientalismo (que daria origem ao seu belíssimo livro seguinte, Sidarta, de 1922), a presença da psicanálise de feição junguiana, com o uso insistente dos sonhos e do inconsciente coletivo.

Um livro individualista. No melhor sentido da palavra. Num mundo uniformizado, onde todos querem se nivelar pelo denominador comum do consumo e da facilidade, ler o processo de constituição de uma individualidade verdadeira e poderosa é algo eletrizante. Enfim, uma obra-prima de um mágico (figura artística muito prezada pelo Nobel de 1946) que tirava existências da cartola, em inesquecíveis biografias imaginárias

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NOTAS

[1] Publicada primeiramente pela Civilização Brasileira.

[2] Essa polarização reaparecerá nas trajetórias dos protagonistas de um grande romance da maturidade de Hesse, Narciso e Goldmund (1930).

[3] Traduzido no Brasil por Herbert Caro, também em 1965.

[4] Bom lembrar que a “individuação” é o objetivo da psicanálise junguiana.

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30/12/2012

TRATADO SOBRE A TOLICE HUMANA: “O pêndulo de Foucault”, de Umberto Eco

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O ANTI CÓDIGO DA VINCI

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 24 de junho de 2006)

    Após o medíocre suspense de  Código da Vinci, com sua trama conspiratória que vinha de longe no Tempo, não houve outro jeito senão voltar a um romance que, em 1989 (época do seu lançamento por aqui), causou decepção a quem aguardava com sofreguidão um novo O Nome da Rosa.

     Mais tarde, numa resenha, condensei meu precipitado desagrado no seguinte veredicto: pernóstico e insuportavelmente chato. Ainda mais constrangedora, relida hoje (bom que “mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir”, nos ensina Guimarães Rosa), esta outra afirmação: a atualidade não é o forte de Umberto Eco como romancista! Ele, grande investigador da tolice humana, acharia muita graça, pois já colocara uma maliciosa armadilha para incautos no prólogo de O Nome da Rosa:

“… sinto-me livre para contar, por mero gosto fabulatório, a história de Adso de Melk… tão gloriosamente privada de relações com os nossos tempos, intemporalmente estranha às nossas esperanças e às nossas certezas. Porque esta é uma história de livros, não de misérias cotidianas…”

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    O Pêndulo de Foucault narra como Casaubon (o narrador), Belbo & Diotallevi, funcionários de uma editora, durante o planejamento de uma coleção destinada a divulgar livros esotéricos e ocultistas, diante da mixórdia do material que se lhes apresenta (fãs de Dan Brown encontrarão o casamento de Jesus com Maria Madalena e sua relação com o Santo Graal no capítulo 65) e diante da constatação de que “quando se entra num estado de suspeita não se deixa de lado mais indício algum”, resolvem elaborar um Plano Único  cuja origem remontaria aos Templários, claro. O seu sucesso dependeria de encontros em determinados lugares na virada para o dia 24 de junho, a cada 120 anos. Só que o Plano extraviou-se e agora inúmeras seitas e sociedades secretas andam à caça de pistas.

    O Plano, portanto, é uma impostura engendrada por três intelectuais desencantados frente a um universo de simulacros e analogias forçadas (“esta extraordinária capacidade de colocar tudo junto…”; “… quando se quer encontrar conexões, encontra-se sempre, por toda a parte e em tudo, o mundo explode numa rede…”). Todavia, são levados a sério e, enquanto Diotallevi se encontra no estágio terminal de um câncer, Belbo é  perseguido. O romance começa com Casaubon à sua procura, vasculhando seus arquivos de computador, depois indo a Paris. Isso aí, leitor, Paris, como em O Código da Vinci. Em vez do Louvre, o menos turístico Conservatoire des Arts et Métiers, onde está o pêndulo do título, cuja trajetória apontaria na data certa a localização do segredo resguardado pelo Plano.

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    Pernóstico? Insuportavelmente chato? A atualidade não é seu forte? Poucos livros têm momentos tão saborosos,  quando o trio passa em revista as teorias e proposições das doutrinas secretas. Como Umberto Eco não é raso como Dan Brown e conhece tudo, movimenta uma massa de informações que ameaça tornar-se indigesta num volume de 600 páginas e 120 capítulos. Mas estamos num mundo de delírios, de suspeita (e a atualidade se desenha de forma inequívoca e vigorosa, principalmente no contraste das gerações a que pertencem Belbo e Casaubon), por isso o excesso é pertinente. Mais ainda, coerente. A parte inapelavelmente mal resolvida e enfadonha é a dos files do computador de Belbo, mesmo se considerarmos o pioneirismo na introdução do cotidiano informatizado no espaço ficcional .

    Na maior parte do tempo, essa volta ao Pêndulo foi uma experiência deliciosa e uma revelação: como os filmes de Stanley Kubrick, esse livro já nasceu com a vocação de esgotar todo um gênero. Contribuem muito para o prazer inesperado algumas personagens scundárias: Lia, uma das amadas do narrador, com seu bom senso inabalável e sedutor (a outra, Amparo, recebe a Pomba Gira na parte brasileira do livro); Aglié, o pretenso Saint Germain atuando ainda em nossos tempos; e sobretudo o delicioso dono da editora, o sr. Garamond, useiro e vezeiro em roubar cenas. Prova de que, se for perdoável a pobre rima, enquanto seus heróis reciclavam impostura, Eco criava autêntica literatura.

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08/08/2012

O Teatro Mágico do “eu” dividido: “O lobo da estepe”

resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 19 de setembro de 2000

    Falta pouco para o século terminar e naturalmente tendemos a fazer as contas. Que obras literárias ficarão? Daí a importância do reaparecimento nas livrarias, em nova edição, daquelas em cuja sobrevivência apostamos. É o caso de O LOBO DA ESTEPE (“Der Steppenwolf, 1927; a tradução é de Ivo Barroso), a mais famosa das obras-primas de Hermann Hesse (1877-1962).

   Harry Haller, o protagonista, está chegando aos 50 anos obcecado pela ideia de degolar-se com uma navalha, para fugir da angustiante divisão do seu ser em duas personalidades: uma, burguesa, que deseja calor, companhia (ele, um errante, sempre se hospeda em casas que lembam sua infância); outra, que ele denomina de “lobo da estepe”, misantropa e desadaptada, destinada à solidão e orgulhosa dessa condição. No fundo, é a velha dicotomia entre o “mundo luminoso” e o “mundo sombrio” que atormentava Emil Sinclair em Demian.

    Doris Lessing, a respeito de The golden notebook- O carnê dourado, romance que tem muitas afinidades com O LOBO DA ESTEPE, inclusive por causa da estrutura ousada e complexa, afirmou que às vezes pirar é uma forma de autocura, uma maneira de nosso eu interior eliminar falsas dicotomias e divisões. É o que acontece com Harry Haller: ele é convidado a participar de um Teatro Mágico (o qual o tradutor, Ivo Barroso, interpreta como disfarce metafórico para o uso de drogas, numa decifração meio pobre), “só para raros e loucos”.

     Esse teatro é sua própria personalidade. Hesse investe contra a pretensa unidade do eu. Na verdade, somos um feixe de eus: “Não há nenhum eu, nem mesmo o mais simples, mas um mundo plural, um pequeno firmamento, um caos de formas.. Todo homem é uno quanto ao corpo, mas não quanto à alma (…) Nosso Lobo da Estepe crê levar também em seu peito duas almas (lobo e homem) e por isso sento o peito demasiadamente oprimido e estreito… Crê, como Fausto, que duas almas são demais para um só peito e podem arrebentar com ele. Mas, ao contrário, são demasiado poucas…”

      E Harry, ao longo do romance, irá experimentar algumas das suas outras almas, numa saudável esquizofrenia, por assim dizer, tendo como guias Hermione e Pablo. Hermione é seu duplo feminino, a cortesã que o obriga imperativamente a usufruir da vida, a dançar, a praticar intensamente o sexo (não com ela, entretanto), a se dissolver “na festa” (lembre-se, leitor, que O LOBO DA ESTEPE se passa nos anos 20 e a euforia desenfreada e desesperada que marcou essa década se insinua no romance de Hesse, embora de forma menos óbvia do que nos textos de Scott Fitzgerald; a atmosfera das experiências de Harry lembra também a dos textos de Arthur Schnitzler, o austríaco que inspirou De olhos bem fechados, de Kubrick). Aliás, a cena do baile à fantaisa é um dos grandes momentos de um livro da mais alta qualidade literária.

Pablo, por sua vez, é o belo músico aparentemente burro e tolo, mas que se revela o guia para os mais recônditos cenários do Teatro Mágico, aqueles onde Harry terá que se deparar com suas almas mais sombrias e estranhas, que paradoxalmente servirão para divertir os imortais Goethe e Mozart, os ídolos artísticos do Lobo da Estepe. Pois uma das “lições” da história de Harry Haller é que se precisa do humor, acima de tudo; para se encarar a vida a sério é necessário não se levar a sério. Como o Mozart do Teatro Mágico diz a Haller: “Aprenda a levar a sério o que merece ser levado a sério, e a rir de tudo o mais!”

    Contudo, o melhor de O LOBO DA ESTEPE é que não há soluções ou verdades definitivas, nem o personagem acaba bem, apaziguado, conciliado. Esse livro, na terceira leitura, como na primeira (e provavelmente numa quinta ou décima) é um duro e perturbador reaprendizado da sensibilidade e da percepção do mundo e, mesmo numa releitura, sempre se poderá repetir a seu respeito o comentário de Thomas Mann, numa carta de janeiro de 1928 ao amigo Hesse (essa correspondência é um dos amores da minha vida de leitor): O Lobo da Estepe conseguiu me ensinar novamente depois de muito tempo o que significa ler”. E sempre restará ao leitor a esperança de, na próxima leitura, ter aprendido a jogar melhor o jogo da existência, desejo formulado por Harry nas frases finais.

A poética do umbral: um texto-ícone do século XX

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de maio de 2000)

Além de Thomas Mann, outro grande escritor alemão está ressurgindo nas livrarias este ano: Hermann Hesse (1877-1962). A Record deu um novo e melhorado tratamento visual aos seus livros, entre os quais DemianHistória da juventude de Emil Sinclair, um texto-ícone do século XX, aquele que tem a famosa frase (bem nietzschiniana): “Quem quiser nascer tem que destruir um mundo”.

Hesse publicou-o em 1919 sob pseudônimo e houve muita especulação na época sobre a verdadeira identidade do autor. Quando foi descoberta, o livro passou a ser uma espécie de divisor de águas na sua trajetória artística. E um grande salto, constata-se hoje, embora na memória de quem escreve este artigo tenham permanecido, durante anos, após a primeira leitura, muitos detalhes irritantes e literariamente derrisórios: 1) essas pessoas (guias, como são denominadas) que aparecem do nada e que dão ao leitor a idéia de que o universo inteiro está voltado para o destino do protagonista, Emil Sinclair; 2) os símbolos (o pássaro heráldico meio gavião meio fênix, o sinal de Caim, a mãe que se chama Eva), que são exaustivamente explicados para o leitor, como se este fosse retardado; 3) a ausência absoluta de um pano de fundo mínimo para as reviravoltas íntimas do personagem, já que todos à sua volta parecem fantasmas; 4) os diálogos irreais e inverossímeis, e, se pensarmos na faixa etária dos personagens (se é que se pode chamar de personagens seres tão esquemáticos, pedantes e pomposos).

Recapitulemos o fio de enredo: Emil Sinclair, aos 10 anos, oriundo de uma família extremamente religiosa, fica à mercê de outro menino, Kromer, que faz chantagem com ele. Um outro garoto, Max Demian, forasteiro que começou a estudar no mesmo colégio de Sinclair, aproxima-se dele e consegue afastar Kromer.

A experiência com Kromer faz Sinclair entrar em contato com o que ele chama de mundo sombrio, subjacente ao mundo luminoso representado pela família. Demian revela, através de uma reinterpretação da história de Caim, que na verdade não existe tal dicotomia: o mundo é ao mesmo tempo luminoso e sombrio. Mas Sinclair ainda não está preparado para aceitar tal verdade (e “the readness is all”), e através de suas experiências como adolescente mantém uma visão dicotômica e dualista: ora cai na esbórnia, na dissipação, ora cultua a pureza e a santidade.

Durante essa trajetória, Demian manteve-se afastado da vida de Sinclair e este teve como único amigo o organista (e sacerdote frustrado) Pistórius, que lhe ensina tudo sobre Abraxas, divindade da Antiguidade a um só tempo Deus e Demônio, congregando em si o luminoso e o sombrio.

A aproximação da guerra é o paralelo coletivo da busca de Sinclair: ele tem de sair da casca, isto é, destruir um mundo, para nascer um novo homem, e o mundo carcomido da Europa talvez tenha de passar pela destruição para renascer como a ave fênix: “A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir o mundo”.

As quatro objeções mencionadas só funcionam se forçarmos a barra para enquadrar convencionalmente Demian como romance ou novela. Sem essa muleta classificatória, o texto revela suas qualidades e o seu alcance. E nos damos conta de que foi escrito por um poeta que se exprime num relato lírico, projeção poética de experiências pessoais, que não demanda qualquer verossimilhança, pois se fundamenta numa simbologia particular. Que se aceita ou não.

Só mais tarde é que Hesse conseguiu se reequilibrar como narrador, conservando as conquistas de Demian. Surgiram, assim, seus grandes romances: O lobo da estepe, Narciso e Goldmund & O jogo das contas de vidro, além do especialíssimo Viagem ao Oriente.

Vencidos (parcialmente, é preciso dizer) certos preconceitos literários, é fascinante observar, numa releitura,como Hesse trabalha com vários elementos do imaginário cristão (a história de Caim, a figura de Eva, os dois ladrões crucificados com Jesus, a luta de Jacó com o anjo) para lançá-los de encontro a conceitos do pensamento religioso oriental, principalmente aqueles que são o que talvez de mais coerente e pertinente se tenha pensado sobre o mundo e a existência, isto é, aqueles que se baseiam na impermanência de todas as coisas, mesmo as que amamos; e, além do orientalismo (que daria origem ao seu belíssimo livro seguinte, Sidarta), a presença da psicanálise de feição junguiana, com o uso insistente dos sonhos e do inconsciente coletivo, sem contar uma inequívoca tendência edipiana.

Aliás, tudo isso está representado no texto pela mudança de significado de outro símbolo importante: o umbral (ou soleira) que a princípio servia para delimitar o mundo luminoso e o mundo sombrio, e depois é retomado como símbolo de passagem, mas uma passagem que faz tudo convergir e que congrega tudo, inclusive as contradições.

E se o livro parecia antes subjetivo em demasia, agora parece simplesmente individualista. No melhor sentido da palavra. Num mundo uniformizado, onde todos querem se nivelar pelo denominador comum do consumo e da facilidade, ler o processo de constituição de uma individualidade verdadeira e poderosa é algo eletrizante. O próprio texto encarrega-se, por sua vez, de investir contra o rebanho, a submissão à massa.

Quanto à edição nova, é mais do que satisfatória do ponto de vista da qualidade gráfica, além de manter a antiga e bela tradução de Ivo Barroso. Só que em algumas páginas houve troca ou supressão de palavras (isso acontece nas páginas 89, 133 e 163). Além disso, um importante parágrafo (no qual Demian explica suas restrições à história bíblica do Bom Ladrão) ficou truncado na página 78. Ali o leitor encontrará: “A história não passa de um caso devoto, alambicado e falso, untuosamente comovida e com um fundo edificante. Se tivesse de escolher hoje por amigo um dos dois ladrões ou meditar sobre qual deles poderias depositar melhor tua confiança, decerto não escolherias, sem dúvida, ao outro, que é um indivíduo de caráter…” Na parte final da passagem, deve-se ler: “Se tivesse de escolher hoje por amigo a um dos dois ladrões ou meditar sobre qual deles poderias depositar melhor tua confiança, decerto não escolherias esse choramingas converso. Escolherias, sem dúvida, ao outro, que é um indivíduo de caráter”.

28/11/2010

sintonia e focalização em MARCOVALDO E PALOMAR

(resenha publicada em A TRIBUNA em 22 de novembro de 1994)

     A certa altura de Seis propostas para o próximo milênio, de Italo Calvino (1923-1985), na conferência sobre a rapidez, o grande escritor italiano discute a complementaridade entre dois seres mitológicos, ambos filhos de Júpiter: Mercúrio e Vulcano, o primeiro representando a sintonia com o mundo, a participação no coletivo; e o segundo representando a focalização, isto é, a concentração em si mesmo.

     Essa dupla disposição ajuda a entender outros dois maravilhosos livros de Calvino, os quais, publicados em épocas diversas, são bem similares: Marcovaldo ou As estações na cidade, de 1963 (que, aliás, foi lançado na Itália como obra juvenil!), e Palomar, de 1983, respectivamente traduzidos por Nilson Moulin e Ivo Barroso.

    Seus protagonistas vivem a dicotomia sintonia-focalização de maneira mais complexa: ambos procuram focalizar sua atenção para conseguir uma sintonia com um mundo invisível (talvez a verdadeira “natureza”, esta palavra que é um saco de gatos, onde se coloca de tudo um pouco), esmagado pelas aparências, um mundo que pulsa sob as convenções, o espaço urbano e a destruição causada pela ação humana.

     Marcovaldo é um livro engraçadíssimo. E italianíssimo, se me permitem a tautologia. Lembra filmes de Vittorio de Sica, de Pasolini, de Fellini, Monicelli, Wertmüller ou Scola, ou seja, tem aquela mágica alquimia entre a crítica social, o patético e o ridículo, o cômico que beira a chanchada e uma imponderável poesia, que nos faz amar Umberto D, Cabíria, Brancaleone, os vitteloni, o quinteto irreverente, Mimi, o metalúrgico, os feios, sujos e malvados, e Mamma Roma. E amar Marcovaldo, esse carregador italiano, miserável, cheio de filhos, que procura uma impensável e impossível vida natural na cidade.O que engendra episódios deliciosos como o que apresenta o conselho de um médico da Previdência para o tratamento de reumatismo: areia. A única areia limpa que Marcovaldo descobre está numa barcaça. Ele pede aos filhos que o cubram para a efetivação do “tratamento” e eles afastam-se para brincar. A barcaça desamarra-se e lá vai nosso herói soterrado rio abaixo. Há ainda o episódio do coelho que ele rouba do hospital e que (como cobaia que era) está contaminado por uma doença religiosa. Ou os cogumelos que nosso ingenuamente ladino carregador descobre, maravilhado, num canteiro e os quais vai colher, com toda a família, indo todos parar no pronto-socorro, intoxicados.

       Palomar não é tão anedótico nem apresenta uma ternura tão explícita pelo seu protagonista, mas o senhor Palomar é no fundo um Marcovaldo mais culto, mais abstraído das contingências humanas (segue um pouco uma tradição intelectal  em que a figura mais ilustre é  M.Teste, embora a criação de Paul Valéry  este jamais tivesse o calor humano e a simpatia do personagem do autor italiano), porque o livro é mais abertamente filosófico, destilando as muitas experiências de Calvino entre a ficção e o ensaio.

    O senhor Palomar focaliza um ponto no mundo para tentar limpar, depurar sua percepção: uma única onda na praia, o seio nu de uma moça, as constelações no céu,  o vôo migratório dos estorninhos, sem nenhuma noção preconcebida. Parece insípido? Experimente, leitor, para ver o que é estilo, o que é humor refinado. Se trinta anos separam o carregador Marcovaldo do senhor Palomar, o mesmo homem brilhante os criou, e uma das delícias de Palomar é a confusão que ele cria à sua volta com suas “pesquisas”.

    Com esses dois livros belíssimos, a Companhia das Letras continua a publicação da obra de um escritor verdadeiramente fascinante, como já provaram O barão nas árvores, O cavaleiro inexistente, As cidades invisíveis, O castelo dos destinos cruzados ou a sua obra-prima suprema (publicada pela Nova Fronteira numa tradução esplêndida de Margarida Salomão,  que me apresentou ao universo calviniano), Se um viajante numa noite de inverno[1]. Sempre com um mistura da qual podemos tirar a fórmula nas Seis propostas:

     “Assim como a melancolia é a tristeza que se tornou leve, o humor é o cômico que perdeu peso corpóreo… e põe em dúvida o eu e o mundo, com toda a rede de relações que os constituem”.

 

ANEXOS

Trecho de Marcovaldo: a estação é o inverno e o capítulo se chama “O bosque na rodovia”. Os  filhos de Marcovaldo, tiritando de frio, após a leitura de um livro que falava de um menino, filho de um lenhador, que saía com o machado para cortar lenha no bosque,  resolvem sair à procura de um bosque para encontrar a madeira que os aqueceria a todos:

“Nas margens da rodovia, os meninos viram o bosque: uma densa vegetação de árvores estranhas cobria a vista da planície. Tinham os troncos finos, finos, retos ou oblíquos; e copas achatadas e amplas, com formas as mais estranhas e as mais estranhas cores, quando um carro passou e iluminou-as com os faróis. Ramos em forma de dentifrício, de rosto, de queijo, de mão, de navalha, de garrafa, de vaca, de pneu, constelados por folhagens de letras do alfabeto.

__ Viva!- disse Michelino—Isto é um bosque!

    E os irmãos observavam encantados a lua despontar entre aquelas sombras estranhas.

__ Como é bonito…

    Michelino lembrou-lhes logo o objeivo pelo qual tinham ido até ali: a lenha. Assim, abateram uma arvorezinha em forma de flor de prímula amarela, cortaram-na em pedaços e levaram-na para casa (…)

    Naquela noite, fora denunciado o fato de que na rodovia um bando de moleques andava derrubando os cartazes de publicidade.”

Trecho de Palomar:

“O senhor Palomar decide que doravante procederá como se estivesse morto, para ver como o mundo se comporta sem ele. Em pouco tempo se dá conta de que entre ele e o mundo as coisas não estão mais como antes; se antes achavam que esperavam algo um do outro,ele e o mundo, agora já nem se record do que haviam de esperar, de bom ou de mau, enm por que essa espera o mantinha em perpétua agitação ansiosa.

    O senhor Palomar deveria conseqüentemente experimenta uma sensação de alívio, não tendo mais que indagar o que o mundo lhe prepara, e deveria também perceber o alívio do mundo por não ter mais que se preocupar com ele. Mas até mesmo a expectativa de saborear essa calma é o bastante para deixar o senhor Palomar ansioso.

    Em suma, estar morto é menos fácil do que se poderia pensar. Em primeiro lugar, não se deve confundir estar morto com não existir, condição que ocupa também a interminável extensão de tempo que precede ao nascimento, aparentemente simétrica com a também ilimitada que se segue à morte. Na verdade, antes de nascer fazíamos parte das infinitas possibilidades de vida que poderiam ou não realizar-se, enquanto mortos já não podemos nos realizar nem no passado…nem no futuro…

       (…) Antes, por mundo ele entendia o mundo mais ele; agora se trata dele mais o mundo sem ele.

     O mundo sem ele significaria para ele o fim da ansiedade?”


[1] A companhia das Letras depois lançou sua própria tradução de Se um viajante numa noite de inverno..

30/07/2010

Minhas amigas Elinor, Marianne e Emma

I

                Entre as muitas razões da importância de Jane Austen está o fato de ela ter sido um dos autores que deram ao romance a forma que vigora até hoje. Ela e Stendhal moldaram a narrativa onde tudo decorre do caráter dos personagens principais, mesmo quando tolhidos pelas convenções.

             Já o título do primeiro romance de Austen publicado (em 1811), Razão e Sentimento, indica o caráter das suas heroínas, as irmãs Dashwood, Elinor e Marianne. Elinor ama com sensatez e resignação Edward Ferrars, que se encontra preso a um compromisso anterior (com uma tola); Marianne ama impulsiva e insensatamente Willoughby, o qual parece ter escapado das grandes histórias românticas, mas que se mostra muito pouco à altura desse papel, preferindo—de forma um tanto desonrosa e quase fatal para a Dashwood sentimental—casar com outra moça, possuidora de um grande dote.

           Pois esse é um problema central no livro. Na Inglaterra da época, as mulheres podiam herdar renda, nunca propriedades. Elinor, Marianne, a irmã caçula e a mãe são praticamente expulsas de sua casa, uma grande propriedade, após a morte do sr. Dashwood, pelo meio-irmão, e vão morar num chalé. Isso não quer dizer que elas fiquem na miséria. Quer dizer que elas assumem a condição de mulheres sem dote, o que, no seu nível social, é uma desgraça equivalente, principalmente porque faz diminuir vertiginosamente a possibilidade de casamento, a grande meta da mulher de então.

           São notáveis s diálogos de Razão e Sentimento. Também impressiona a cada leitura como ela consegue dar vida aos personagens que cercam as duas irmãs-antípodas, caso de Fanny, esposa do meio-irmão e irmã de Edward; da casamenteira e ruidosa mrs. Jennings; de Lucy Steele, a moça que ata a liberdade do amado de Elinor. Só que ainda assim o livro é um tantinho arrastado, e sempre me pareceu uma primeira versão (pois os temas são parecidos), bem mais crua, de  Orgulho e Preconceito, que eu não hesitaria em colocar em qualquer lista de melhores romances de todos os tempos (embora também seja tentado a fazer o mesmo com Mansfield Park).

            Falta, por exemplo, além da amplitude, um personagem masculino do gabarito de mr. Bennet, o pai das heroínas de Orgulho e Preconceito, sem falar no herói dessa obra-prima (mr. Darcy), para não falar do maravilhoso mr. Knightley de Emma.

          Mesmo assim, há momentos inesquecíveis em Razão e Sentimento, como o debate entre John, o meio-irmão, e Fanny, a respeito do montante exato que ele deveria dar a elas em cumprimento à promessa feita ao pai. Ao longo da discussão, o valor vai baixando até terminar em nada. Dá quase para imaginar Machado de Assis deliciando-se com a cena.

           Já houve um a tradução anterior do livro, por Dinah Silveira de Queiroz. A da Nova Fronteira foi realizada por Ivo Barroso. Lançada no início dos anos 80, reaparece agora para pegar carona nas indicações ao Oscar da adaptação cinematográfica de Ang Lee (traduzida como Razão e Sensibilidade) que achei mais para mediana do que para brilhant, apesar dos melhores esforços (no roteiro e na interpretação) da eternamente aflita Emma Thompson, embora às vezes certos filmes ganhem numa revisão [1].

     Austen fascina porque suas histórias românticas tinham uma malícia oculta, como se risse às escondidas de tudo o que oprimia as mulheres. Pena que atualmente as melhores tramas envolvam porquinhos rosados.[2]

 

(resenha publicada, de forma ligeiramente diferente, em 19 de março de 1996)

 


[1] Foi o que aconteceu com este filme, que depois revi vezes sem conta em canais a cabo. Hoje em dia o acho muito melhor, ágil, cheio de malícia e charme, nos momentos certos. Ainda me incomoda a inadequação de uma parte do elenco: acho Emma muito velha para o papel, Kate Winslet mais enjoada do que representante do lado “emoção” da vida, Hugh Grant está desastroso no papel de Edward. O resto do elenco, porém, está supimpa, impecável.

[2] Esse final se deve ao fato de que um dos concorrentes ao Oscar de filme (Razão e Sensibilidade seria teoricamente o favorito, pois ganhara o Globo de Ouro) era Babe, o porquinho atrapalhado. Mas nenhum dos dois levou, e sim Coração Valente, de Mel Gibson. Os outros candidatos eram lastimáveis: Apolo 13 e o horroroso O carteiro e o poeta.

II

    Nos últimos tempos, o cinema vive uma febre de adaptações de obras clássicas. Só para citar algumas:  As afinidades eletivas (pelos irmãos Taviani), Retrato de uma senhora (por Jane Campion), as costumeiras adaptações de Shakespeare… Até o cinema brasileiro embarcou na onda, com as produções em andamento de uma adaptação de Os sertões e outra de O triste fim de Policarpo Quaresma. Mas a autora da moda (embora tenha morrido em 1817,aos 41 anos) é Jane Austen.

     Além do oscarizado (pelo menos levou o prêmio de roteiro adaptado) Razão e Sensibilidade, é interessante notar que Emma (1816), uma de suas quatro obras-primas[1], e cuja tradução (de Ivo Barroso) foi lançada recentemente pela Nova Fronteira, deu origem a dois filmes: uma versão modernizada, muito bacana e cativante, Clueless- As Patricinhas de Beverly Hills, e uma versão fiel à época pré-vitoriana, a qual deve estar de olho no Oscar do próximo ano, mas que já peca pela escolha da protagonista, Gwyneth Paltrow, uma das estrelinhas mais sem-graça aparecidas nesta década[2].

      A personagem-título de Emma nos é apresentada como “bela, inteligente e rica, senhora de uma confortável mansão e excelente disposição de espírito”. Morando numa região rural, Highbury, com poucas e selecionadas relações, a sua principal ocupação, fora cuidar do pai, é “arranjar” casamentos.

      Sua imaginação e perspicácia estão sempre prontas a “compor” casais. Isso acontece após o sucesso do primeiro investimento nesse sentido, o enlace da governante, miss Taylor com o simpático vizinho mr. Weston. Só que as próximas investidas casamenteiras de Emma serão cada vez mais desastradas e desencontradas com os fatos. A principal vítima delas é uma garota bela, tola e de nascimento duvidoso, Harriet [3], a quem escolhe como “protegida”. Emma a faz desprezar seu primeiro pretendente, o fazendeiro simplório Robert Martin, e procura uni-la a mr. Elton, o pároco, o qual se revela um arrivista enfatuado (e depois se casa com uma mulher igualmente enfatuada). Depois procura atrair para a amiga Frank Churchill, o qual mantém uma relação secreta, esperando apenas que a tia, da qual depende, morra, para assumir o noivado com a principal rival de Emma na região, Jane Fairfax.

    E quando Harriet “decide-se” por alguém, Emma descobre que é justamente o homem que ela própria ama, mr. Knightley, o maior oponente dos planos casamenteiros e das conclusões a respeito das pessoas em geral da intrometida garota.

   Que delícia ler Emma.  Apesar de aparentemente se concentrar nas pequenas trivialidades da vida quotidiana (ainda que de uma classe socialmente favorecida), é justamente daí, do poder de Austen nos transmitir a sensação da existência corriqueira, que esse romance de 180 anos atrás tira seu encanto. De fato, foi uma das maiores conquistas da ficção inglesa essa capacidade de lidar com o quotidiano de forma realista, e é uma pena que nos últimos anos tanto essa literatura como o cinema inglês tenham perdido isso na maioria das suas realizações, o senso de realidade (para utilizar um título de Graham Greene), com sua fixação decorativa no passado e obsessões intelectuais insossas e bisonhas (e a falta que faz esse dom de apreender a vida comum e torná-la significativa no cerne da sua própria banalidade e aleatoridade, pode ser comprovada na força de um filme como o magnífico Segredos e Mentiras, de Mike Leigh, para mim o grande filme deste ano de 1996).

     Mais uma vez, como em outros livros da grande escritora inglesa, são os personagens secundários que se não roubam a cena poderiam fazê-lo sem escrúpulos. Há a tagarela e simplória miss Bates, tia de Jane Fairfaz; há o pai de Emma, mr. Woodhouse, com suas pequenas e imutáveis manias e que parece emergir do mundo de Laurence Sterne. Eles podem se juntar à Fanny de Razão e Sentimento, ao Mr. Bennet de Orgulho e Preconceito e à mrs. Norris de Mansfield Park, na galeria de tipos inesquecíveis de Jane Austen. Mr. Woodhouse, cm sua indolência egoísta lembra, inclusive, Lady Bertram, irmã de mrs. Norris. São todos personagens de primeira categoria.

    Há o escorregadio Frank Churchill, que lembra os galãs duvidosos que são o interesseiro Willoughby de Razão e Sentimento, e o vaidoso Henry Crawford de Mansfield Park.

     Já  mr. Knightley é, sorry, mr.Darcy e mr. Edmund Bertram (que ficam com as heroínas de Orgulho e Preconceito & Mansfield Park), o mais expressivo e bem realizado  herói cavalheiresco de Jane Austen[4].

    Pena que a tradução de Ivo Barroso, em geral excelente, comprometa-se com soluções horríveis, como, por exemplo, nos diminutivos dos nomes próprios. Emminha!!?? Henryzinho!!??Faça-me o favor, sr. Barroso. E o bizarro deslize, muito comum, dos tradutores brasileiros manterem chance quando acaso seria o equivalente em português. Alguém fica ao sabor da chance, sr. Barroso?

    Essas considerações são mero detalhe, escarafunchações críticas. Austen escrevia para ser lida. E, em Emma, como nos demais romances, consegue envolver o leitor nas vidas distantes e ultrapassadas da comunidade de Highbury, seus moradores, seus visitantes e intrusos. Cada personagem parece criar vida diante do leitor e ter uma realidade gritante, mesmo que sua ética, seus valores e suas convenções sociais sejam letra morta. Se é em A Abadia de Northanger, publicado postumamente (em 1818), que ela parece ter conseguido o tom mais próximo do leitor atual, mais jocoso e malicioso (talvez por causa do lado satírico e paródico muito forte desse romance, que se adapta bem ao clima pós-moderno que vivenciamos), qualquer um dos seus textos consegue ser ainda um milagre de comunicabilidade e fluxo de vida. Isso é genialidade.

(resenha publicada, de forma ligeiramente diferente, em 26 de novembro de 1996)


[1] As outras são, claro, Orgulho e Preconceito, Mansfield Park & Persuasão. Mesmo assim, gosto muito de Razão e Sentimento e do paródico e delicioso A abadia de Northanger.

[2] Hoje já não implico tanto com Paltrow, embora ela nunca tenha merecido o Oscar de atriz que ganhou, e realmente sua Emma deixe a desejar. Muito melhor está a agora linda demais (mas não o era tanto à época) Kate Beckinsale, numa adaptação para a BBC. Quem está surpreendentemente péssimo no filme de Douglas McGrath é Ewan McGregor (no papel de Frank Churchill), com um visual que, segundo meu amigo Eduardo Vieira, lembra o Visconde de Sabugosa.

[3] No filme de época vivida pela maravilhosa Toni Colette e no filme moderninho por Brittany Murphy, ambas ótimas.

[4] E ele teve a sorte de ser vivido pelo irresistível Jeremy Northan no filme de McGrath (o ator da versão da BBC é correto, porém não chega aos pés). Quem está muito bem no papel correspondente, em As Patricinhas de Beverly Hills, é Paul Rudd, o qual depois faria um monte de comédias bobas., mas que era uma promessa na época.

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