

O DON JUAN JUDAICO
É possível que Isaac Bashevis Singer (1904-1991) seja o maior contista (no sentido estrito do termo) da segunda metade do século passado. Desde que li Breve sexta-feira, é essa a minha opinião.
Mas é curioso ter essa imagem fixada de Singer como um contista supremo, quando ele escreveu também vários romances, e (pelo menos os que li) com a mesma qualidade excepcional: Satã em Gorai, de A família Moskat (infelizmente, ainda não li sua continuação, O solar) e O MÁGICO DE LUBLIN, que está completando seu cinquentenário de publicação, e aqui no Brasil foi traduzido pelas irmãs Maria Luiza & Rachel de Queiroz para a Edinova, em 1967 (parece que e a única edição brasileira).
Relendo-o agora, procurei aclarar para mim mesmo porque a imagem de Singer contista se impõe sobre a de Singer romancista. Confesso que não consegui decifrar a charada. Deve ser porque nesse gênero mais extenso ele tem muitos rivais, e só consigo pensar, no gênero curto, em Jorge Luis Borges, que no entanto é mestre de outra vertente… Enfim, são questões acadêmicas, adorei o livro novamente e Yasha Mazur, o protagonista, certamente é um dos grandes personagens da ficção pós-guerra.
Ele é um mágico que percorre com sucesso a Polônia, morando em Lublin, mas centrando-se artisticamente em Varsóvia, e sempre com a esperança de se tornar um “artista internacional”, o que por enquanto não aconteceu. Boa parte da história acontece às vésperas de uma nova temporada de espetáculos, quando ele promete à plateia (nos cartazes espalhados pela cidade) um novo e espetacular número de “salto mortal”.

O busílis é que Yasha, mais do que um Houdini, é um Don Juan judeu: casado com Ester, mantém um caso com pelo menos mais três mulheres (sua ajudante nos números mágicos, a camponesa Magda, a mulher de um ladrão, Zeftel; e esta apaixonado por—e quer fugir para a Itália com—a viúva Emilia; ainda por cima, tem uma atração imprópria pela filha desta, Halina).
Como, apesar do seu entusiasmo por uma nova vida com Emilia, não consegue se desvencilhar de nenhuma das outras relações (e ainda se complica porque quando está com cada mulher fica empolgado com o quotidiano e as possibilidades “daquela” situação específica: em suma, é um homem que vive para a disponibilidade, para o momento, o que não é exequível a longo prazo), ele precisa de mais dinheiro de que dispõe e que conseguirá com seu número, para “ajeitar” tudo. Uma das suas habilidades (além de hipnotizar as pessoas) é conseguir abrir qualquer fechadura, o que sempre lhe valeu propostas da roda de ladrões que cerca Zeftel (a qual, diga-se passagem, se envolve com um sujeito que trafica mulheres para a América do Sul).
Emilia lhe fala de um velho usurário que mantém no seu cofre todas as economias e uma noite Yasha invade o apartamento dele e tenta roubá-lo. Não consegue, atrapalha-se todo e ainda machuca gravemente o pé, o que é fatal para o seu novo número. No meio de tudo, algumas cenas em que ele se refugia em sinagogas, mostram a situação de exílio de Yasha de sua própria herança judaica, embora ele não seja um “assimilado” (estamos na 2a. metade do século XIX, quando a Polônia fazia parte do império russo, após uma malograda tentativa de independência).

A partir do assalto frustrado, da queda, e da dissolução de todos os seus relacionamentos (após confessar-se com Emilia, eles percebem a impossibilidade de continuar o relacionamento; Magda, eternamente humilhada e preterida, enforca-se; Zeftel se torna amante do traficante de mulheres), a narrativa adota um tom febril e alucinatório à Dostoievski…
Da primeira vez que eu li o romance, eu não tinha gostado muito do capítulo final, quando Yasha, após seu momento de herói dostoievskiano, volta para a esposa, mas resolve se tornar um “penitente”, emparedando-se vivo no quintal da sua casa em Lublin. Ainda gosto mais do resto da narrativa do que dessa parte final, porém a verdade é que Yasha apenas encapsulou seu problema em termos de espaço: os tormentos continuam os mesmos, só que o Don Juan assume o destino mais estritamente judaico, por assim dizer.
É curioso como, apesar de ficar evidente em Singer aquela característica do povo judeu como “povo do Livro”, fundamentado na erudição e na exegese metafísica, sempre que leio esse autor maravilhoso, me vem à cabeça o nosso Dalton Trevisan, que não poderia lidar com uma gente menos “povo do Livro”; no entanto, as pulsões e a atmosfera sexual são muito parecidas: é um mundo de apetites, de cobranças mesquinhas entre os gêneros, de guerra mesmo, da vontade primordial do macho sobre a capitulação ritual da fêmea, e ao mesmo tempo de uma fraqueza do macho diante da ancoragem da fêmea (culturalmente adestrada) no cotidiano, que tornam as cidades polonesas e Curitiba bem próximas…
Já era hora de reeditarem O MÁGICO DE LUBLIN por aqui, não?

“Ele, Yasha, segundo todas as aparências era um igual[1], fazia parte do grupo; entretanto, uma barreira os separava. Nunca o conseguira explicar. Sua ambição e sua sede de viver alternavam-se com uma tristeza vaga, a consciência da inutilidade de tudo e o sentimento de uma culpa que não podia ser expiada nem esquecida. Afinal, para que viver se não sabemos por que nascemos ou por que morremos? Qual o sentido das belas palavras sobre positivismo, sobre a reforma industrial e sobre o progresso, se tudo ficava encerrado com a laje da sepultura? Apesar de toda a sua vitalidade, Yasha estava sempre à beira da melancolia. Quando não o dominava o apaixonado interesse por novos truques ou por novos amores, as dúvidas o assaltavam como um bando de gafanhotos. Fora apenas para dar saltos mortais e iludir algumas mulheres que viera ao mundo?”
“Estranho ter esquecido que ele mesmo dera dinheiro a Zeftel para que ela viesse a Varsóvia. Esquecera-se completamente da existência dela. O emaranhado da sua vida, embora muitas vezes o deixasse tonto, dava-lhe também um certo prazer maligno, como se a sua história fosse um romance onde as situações ficassem cada vez mais tensas, a ponto de não se poder esperar para virar a página… Vou livrar-me dela e depois irei ver Emilia, decidiu. Emilia não saberia o que pensar, era a primeira vez que ele faltava a um compromisso. Sua preocupação era que ela estivesse realmente magoada. As coisas estavam por um fio. Também já se arrependera de ter abandonado Magda naquele estado. Nesse instante, Yasha deu-se conta de que já não era o mesmo. Dantes, havia épocas em que mantinha meia dúzia de casos com mulheres ao mesmo tempo, sem que isso lhe trouxesse qualquer preocupação. Enganava a todas, livrava-se delas quando queria e tudo sem qualquer sentimento de culpa. Agora, atormentava-se com insignificâncias e estava sempre procurando agir com correção. Será que estou virando santo? —murmurava para si mesmo. Não valia a pena discutir com Emilia por causa de Magda e Zeftel. Mas aquele aguilhão na mente, que dera agora para lhe ditar a última palavra em todos os seus atos, o impelia a ficar do lado de Zeftel.”
“Ele bem sabia que o seu pior inimigo era o tédio. Para fugir do tédio cometera todas as suas loucuras. O tédio o flagelava como um chicote de muitas pontas. Por causa dele, sobrecarregava-se de encargos.”
“Olhou pela janela do balcão. Um fracasso completo. Pela primeira vez na vida. A noite fora terrível. Agora sim, sentia medo. No íntimo sabia que a sua má sorte não se limitaria apenas àquela noite. Agora, afinal, ganhava a parada o inimigo que vinha há anos ocultando-se dentro dele e que a cada investida tinha de ser repelido com energia e habilidade á custa dos sortilégios e exorcismos que cada um tinha de aprender por si mesmo. Yasha sentia a sua presença—um ser satânico, um duende, o adversário implacável que o procurava confundir, ora a atrapalhar-lhe os malabarismos, ora a tentar empurrá-lo do arame, ora a querer torná-lo impotente…”
“Quando a mulher lhe trouxe o fígado com pão, ele sabia que precisava, antes de comer, fazer suas abluções. Mas não viu por perto nenhum local apropriado para isso. Mordeu um pedaço do pão e o homem da veste franjada perguntou:
__ Não vai fazer suas abluções?
__Ele já as fez antes—disse com sarcasmo o homem de barba preta.
Yasha ficou em silêncio, pensando, admirado, em como pudera a sua precedente sensação de afinidade com eles transformar-se agora em zanga, orgulho e desejo de se ver longe dali. Evitou-os com o olhar e eles logo o esqueceram, empenhados nas suas prontas conversas. Falavam sobre tudo: comércio, hassidismo, milagres. Yasha refletia: tantos milagres e assim mesmo tantas doenças, tanta miséria, tantas epidemias…
O que devia fazer agora? Chamar um médico? Mas o que podia fazer o médico? Eles só tinham um remédio: engessar. Tintura de iodo, ele mesmo poderia passar. E se não houvesse melhora? Ninguém era capaz de dar cambalhotas na corda esticada com o pé naquelas condições. Quanto mais Yasha considerava a sua situação, mais grave ela lhe parecia. Quase sem dinheiro, e ainda por cima machucado, como poderia ganhar a vida? E o que diria a Emilia? Devia estar aborrecida porque ele não aparecera na véspera. E como iria explicar tudo a Magda quando voltasse para casa? Teria também que contar onde passara a noite? Era triste considerar que toda a sua vida e mesmo seus amores dependiam exclusivamente de um pé…”
“Fechou os olhos e escutou os cânticos da Torá. Gritos de vozes adolescentes misturavam-se com os sons roucos e os guinchos dos velhos. As vozes gritavam, murmuravam, cantavam diziam palavras soltas. Yasha lembrou-se do que Wolsky dissera uma vez, depois de um copo de vodca, que ele, Wolsky, não era antissemita, mas que os judeus da Polônia tinham criado uma pequena Bagdá no meio da Europa. Mesmo os chineses e os árabes, de acordo com Wolsky, eram civilizados em relação aos judeus. Por outro lado, os judeus que usavam casaco curto e raspavam as barbas, ou eram revolucionários ou desejavam ardentemente tornar a Polônia russa. Em muitos casos, eram as duas coisas, explorando e revolucionando, ao mesmo tempo, as classes trabalhadoras. Eram radicais, maçons, ateus, internacionalistas, querendo apoderar-se, dominar e macular tudo.
Um silêncio desceu sobre Yasha. Ele poderia ser considerado um dos tais judeus barbeados, mas descobriu que esses lhe eram ainda mais estranhos que os ortodoxos. Desde a infância viva cercado de gente religiosa. Mesmo Ester conservou um lar judeu com uma cozinha kosher. Talvez esse tipo fosse muito asiático, como diziam os judeus intelectualizados, mas pelo menos tinham fé numa pátria espiritual, uma história, uma esperança. Além das próprias leis que governavam o comércio, tinham toda a literatura hassídica: estudavam a cabala e os livros de ética.
Mas que haviam assimilado os judeus? Nada pessoal. Num país falavam polonês, noutro russo, em outro ainda, alemão e francês. Sentavam-se no Café Lurs, no Café Semodeni ou no Café Strassburger, tomando café, fumando cigarros, lendo vários jornais e revistas e contando piadas que provocavam risadas que Yasha sempre considerava desagradáveis. Continuavam suas próprias políticas, sempre planejando greves e revoluções, embora as vítimas dessas atividades fossem sempre os pobres judeus, seus irmãos…
Era estranho, mas assim que Yasha se encontrou na casa de orações, começou a fazer um balanço da própria alma. Era verdade, ele havia se alienado dos piedosos, mas não tinha ido para o campo dos assimilados. Perdera tudo: Emilia, a carreira, a saúde, o lar…”
“Yasha ficou parado, olhando fixamente para um ponto na maçaneta da porta, sentindo-se preso de todos os lados por forças misteriosas. Em volta o silêncio era opressivo. Tinha medo de virar a cabeça. Alguma forma estranha emboscava-se por perto, prestes a atacá-lo—alguma coisa monstruosa e inominável. Desde a infância que se familiarizara com aquela presença. Revelava-se a ele em pesadelos. Era, procurava se convencer, fruto da sua própria imaginação, mas mesmo assim não lhe podia negar a existência…”
“Devo tolerar tudo, refletia Yasha… Ficou ali de pé, envergonhado, humilhado, pronto para abrir mão do resto de orgulho que ainda possuía. Sirva isto de expiação aos meus pecados, murmurou a voz dentro dele…
Virou a maçaneta e a porta abriu-se. A lâmpada estava acesa na cozinha. Zeftel dormia na cama de ferro e ao lado dela estava Hermann. Ambos dormiam. Hermann roncava, profundamente, sonoramente. As vozes dentro de Yasha haviam silenciado. Ficou parado, num pasmo, e depois se voltou para um canto, com medo de que um dos dois abrisse os olhos. Uma vergonha como nunca sentira antes apoderou-se dele—vergonha não pelo caso, mas por si mesmo; a humilhação daquele que compreende que apesar de toda a sua sabedoria e experiência, continua a ser um tolo.”
[1] Esse trecho faz parte de uma cena em que Yasha está num café em Varsóvia.