


10.11.09-
O título deste “post” é auto-explicativo: dentro da prolífica, irregular e muitas vezes deslumbrante obra de Marguerite Duras (1914-1996), podemos destacar, neste ano de 2009, duas datas comemorativas:
1) há 50 anos, o cinema era sacudido pela invenção, densidade e fusão indissolúvel entre texto e imagem que resultou da parceria entre Duras e o genial Alain Resnais: HIROSHIMA, MEU AMOR, que eu eu colocaria sem hesitar entre os dez maiores filmes já feitos (o problema é que pelo menos três outros filmes de Resnais poderiam aspirar a pertencer essa lista, e ora estou mais apaixonado por um, ora mais apaixonado por outro: O ano passado em Marienbad, Providence, Meu tio da América), absolutamente original na época em que foi lançado, em 1959, e até hoje uma experiência moderna, não “datada”;
2) há 25 anos, ela realizava o sonho dos sonhos: escrever um livro personalíssimo, com o léxico particular que todo escritor tem, mergulhar fundo nas suas obsessões (no seu narcisimo e auto-centramento, também)… e ser um grande sucesso, ter uma obra popular, que esgota edições e mais edições. E isso aos 70 anos, após décadas tachada como “difícil’, “impenetrável”, “hermética”. O AMANTE tem muitas dimensões, mas sobretudo é um livro “carismático”, que destoa de boa parte do que Duras escreveu e publicou (e como ela escreveu e publicou!) porque não necessita de “seguidores”, de fánáticos leitores apaixonados (um culto muito similar ao que ronda aqui no Brasil Clarice Lispector e que pouco tem a ver com o ato literário: são pessoas que querem ídolos, gurus, guias de vida, o que é um direito delas, claro, mas também é nosso direito ver os textos clariceanos e durasianos como “meros textos”, entendendo-se o mero num sentido irônico, já que são grandes escritoras, únicas, assim como são únicos Guimarães Rosa e Claude Simon, sem que haja um culto fanático em torno deles).
Hiroshima, meu amor”: O AMOR ENQUANTO EXPERIÊNCIA DA MEMÓRIA
Hiroshima e Nevers, as referências espaciais do filme, são abstrações. São palcos para encontrar, perder e sobretudo rememorar o amor, pois em Duras os amantes mergulham numa intimidade palpavelmente física, de uma maneira como raras viu se viu em cinema ou literatura (sem um clichê erótico, sem especificações de posições, quem fez o quê, sem terminologia de lugares, o que sempre resvala para cômico), porém o ‘amor’ passa longe deles, é inagarrável: quando se fala de amor, sempre é outra coisa: os amantes de Moderato Cantabile (1958) falam do amor de outro casal, os amantes que se conhecem e trepam na Hiroshima de 1959 vão falar do amor perdido da protagonista, durante a Segunda Guerra, um alemão (o que acarretou que lhe raspassem os cabelos por ser uma “colaboracionista”, quando na verdade ela é uma ‘durasiana”, uma autista devido ao arrebatamento da paixão, que é bem diferente e mais abissal do que simplesmente estar apaixonada, ela fica é “folle”).

Após vários minutos em que nós vemos suas peles, tão aproximadas, que se tornam territórios, ou ainda com um tom que parece o de vítimas da radiação nuclear, num máximo de intimidade física a que uma câmera já tinha se permitido com dois personagens, e ao mesmo tempo a protagonista (interpretada por Emmanuelle Rivas) conta suas idas ao museu de Hiroshima, e nos dá variadas informações sobre a recuperação coletiva da cidade enquanto cidade e ao mesmo tempo a recuperação coletiva, através de um gigantesco esforço, da tragédia, o amante japonês diz: você não viu nada de Hiroshima, quer dizer, você não conhece nada de Hiroshima. E é a pura verdade. Hiroshima é uma abstração, no máximo será o corpo desse homem com quem ela passa algumas horas, e do qual se aproxima e se afasta, reconstituindo o antigo amor (em Nevers, no interior da França, enquanto outra destruição era levada a cabo), ressurgindo de um sono de quatorze anos (as mulheres de Duras, a não ser que estejam no estado de ‘ravissement”, arrebatamento ou êxtase, costumam ser meio mortas-vivas).
Se ele diz que ela nada viu de Hiroshima, o final do filme fornecerá a confirmação: ela é ‘Nevers”, ele é “Hiroshima”, ambos são os palcos de seus arrebatamento passionais. Quando ela repete e repete a palavra “Nevers” e depois ele quer saber tudo o que a palavra evoca, explica-se: “de todos os milhares de dados sobre a sua vida escolhi essa palavra”, pois na verdade é um fio da meada, um instantâneo. uma imagem (em O AMANTE lemos, na bela tradução de Denise Bottmann: “A história da minha vida não existe. Ela não existe. Nunca há um centro. Nem caminho, nem linha. Há vastos lugares em que é de se crer que houvesse alguém, não é possível que não houvesse ninguém”). Em Nevers encontramos alguém, que pode ser ninguém e que se torna alguém novamente por um curto tempo num curto-circuito passional em Hiroshima, onde é estrangeira, como era estrangeira na própria cidade natal, mas aí não há disfarces, não há família, não há nenhum modo de não encarar a verdade. Só não há juventude, que é simplesmente a senha para se deixar levar…
Devo dizer que, embora o texto de Duras seja belíssimo (não conheço outro igual no cinema), o filme praticamente impecável e a interpretação de Rivas excepcional (um tour-de-force incomparável, como será de John Gielgud, duas décadas mais tarde, em Providence), há alguns (poucos) momentos em que acho que Resnais deveria ter confiado mais na força da imagem e do silêncio. É o caso da cena em que Nevers fica fugindo de Hiroshima e vão parar num terminal, sentendo-se cada um ao lado de uma velhinha que os observa (e depois puxa papo com Hiroshima, possibilitando que Nevers fuja dele, que a quer reter na cidade, e transformar sua memória da paixão numa nova experiência da paixão, e não há mais juventude, disponibilidade… e será que alguma vida aguentaria?). Pois bem, nessa hora, Resnais podia ter se limitado a filmar os seus maravilhosos atores, e até intercalar imagens do passado em Nevers… mas as elocubrações mentais da protagonista parecem excessivas nessa hora . Isso, aliás, ocorre com mais frequência (embora seja o momento mais grave) nessa altura do filme… Na época também se tornou um certo clichê a mulher apaixonada caminhando pela rua e elocubrando (é o caso de Jeanne Moureau, em Ascensor para o cadafalso, de Louis Malle). Repito: nada tira a beleza do texto ou a força do filme, mas às vezes a imagem é sobrecarregada por ele, em dois ou três momentos próximos ao final, e especialmente nessa cena do terminal.

11.11.09- “O Amante” e o tudo-nada da experiência v ivida (primeira parte):
“Nas histórias dos meus livros que se referem à minha infância, não sei mais o que evitei dizer, o que disse, acho que falei sobre o amor que dedicamos à nossa mãe, mas não sei se falei do ódio também e do amor que havia entre todos nós, e do ódio também, terrível, nessa história comum de ruína e de morte que era a história daquela família, a história do amor como a história do ódio e que foge ainda à minha compreensão, é ainda inacessível para mim, escondida nas profundezas da minha carne, cega como um recém-nascido de um dia. É o limiar onde começa o silêncio. O que acontece é justamente o silêncio, esse lento trabalho de toda a minha vida. Ainda estou lá, na frente daquelas crianças possessas, à mesma distância do mistério. Jamais escrevi, acreditando escrever, jamais amei, acreditando amar, jamais fiz coisa alguma que não fosse esperar diante da porta fechada.”
Assim, como o nome da cidade natal da amante, Nevers, desperta o apetite de “saber” do homem em HIROSHIMA, MEU AMOR, também uma palavra me despertou o apetite de ler Marguerite Duras. Na capa da edição brasileira (da Francisco Alves, que no começo dos anos 80, publicava uma série magnífica e inesquecível chamada “A prosa do mundo”) de O vice-cônsul (uma obra-prima) aparecia o nome da autora e, embaixo dele, seu país de origem: Conchinchina (o Vietnã atual). Que palavra pode ser mais poeticamente evocadora do longínquo, do confim do mundo do que Conchinchina? E volto a repisar uma afirmação que já fiz quanto a J.M.G. Le Clézio: há escritores que não só são bons, mas também tiveram sorte. Nascer na Conchinchina já torna M. Duras algo de único. E ela explorou bem isso: pode-se dizer que há um núcleo forte de experiências ligadas às condições do seu nascimento, da sua infância e da sua família. Essas são concretas, vividamente recordadas, mesmo que alteradas, deformadas… O resto é abstração, é prolongamento desse despertar para o mundo, o resto é como Nevers e Hiroshima no filme de Resnais: o que há de concreto é a intimidade do casal, e seus percursos passionais e memorialísticos, o resto é contorno, é o sombreado que realça o desenho principal. É o que acontece com o mundo das embaixadas e com a própria Índia em O vice-cônsul, meu primeiro contato (feliz primeiro contato, já que se trata de uma de suas melhores obras) com a obra durasiana, mas ainda longe da Conchinchina, que eu experimentaria apenas com a leitura de O AMANTE. Porém, antes, ainda li um outro texto belíssimo, traduzido então por Jorge Bastos, para uma pequena editora, Taurus,numa publicação bilíngüe: A doença da morte.
Então eu tive a sorte de que, devido ao sucesso do livro na França, lançassem logo O AMANTE por aqui (na tradução de Aulyde Soares Rodrigues, que usei na citação acima), num momento em que a Nova Fronteira vivia uma grande fase, com vários livros notáveis que encabeçaram a lista dos mais vendidos (sim, houve esse momento): Memórias de Adriano, A insustentável leveza do ser, O nome da rosa., até mesmo Doutor Fausto. E assim vieram ao mesmo tempo os livros mais recentes de Duras, como A dor, Emily L., como também suas obras-primas dos anos 50 e 60 (Moderato Cantabile, Dez e meia numa noite de verão e o seu livro supremo, Le ravissement de Lol V. Stein, que deveria ser “O arrebatamento de Lol V. Stein” e virou por aqui O deslumbramento) e seus livros de uma outra fase, diferentes e no entanto fascinantes (O marinheiro de Gibraltar, Os pequenos cavalos da Tarquínia)…
Uma das coisas mais deslumbrantes de O AMANTE é a lição que Duras dá de como tratar o sexo literariamente. Nada de descrições “eróticas”. A cena em que ela, aos 15 anos e meio, acompanha pela primeira vez seu amante chinês à garçonnière dele, em Saigon, e perde a virgindade, é um primor, um dos momentos mais bem escritos da literatura do século XX: “O ruído da cidade é intenso, na lembrança é o som de um filme alto demais, ensurdecedor. Lembro-me bem, o quarto está escuro, não falamos., ele está cercado pelo rumor contínuo da cidade, está situado na cidade, numa rua movimentada da cidade. As janelas não têm vidros, só cortinas e persianas. Nas cortinas as sombras das pessoas que passam ao sol na calçada.Multidões sempre enormes. As sombras regularmente estriadas pelas frestas das persianas. Os tamancos de madeira na calçada martelam minha cabeça, as vozes são estridentes, o chinês é uma língua gritada como sempre imagino serem as línguas dos desertos, é uma língua incrivelmente estrangeira.
Lá fora o dia chega ao fim, percebe-se pelo ruído das vozes e o aumento das sombras que passam, cada vez mais misturados. É um bairro de prazer que vive seu auge à noite. E a noite começa agora, com o pôr-do-sol.
A cama está separada da cidade pelas persianas de treliça, pela cortina de algodão. Nenhum material resistente nos separa das outras pessoas. Quanto a elas, ignoram nossa existência. Percebemos alguma coisa das suas vidas, o conjunto das suas vozes, dos seus movimentos, como uma sirene que lançasse um grito entrecortado, triste, sem eco.”
Chegam até o quarto cheiros de caramelo, de amendoim torrado, sopa chinesa, carne assada, ervas, jasmim, poeira, incenso, carvão vegetal, o carvão aqui é transportado em cestos, vendido nas ruas, o cheiro do bairro é o das aldeias do interior, da floresta (…)
(…) O ruído da cidade está muito próximo, tão perto que o ouvimos ressoar na madeira das persianas. É como se as pessoas atravessassem o quarto. Acaricio o corpo dele em meio a esse ruído, a essa movimentação. O mar, a imensidão que reflui, se afasta, volta. Eu lhe pedira que fizesse mais uma vez e mais outra. Que me fizesse aquilo. E ele o fizera. Fizera-o em meio à untuosidade do sangue. E foi mesmo como morrer. Foi como morrer disso (…)
(…) Ficamos assim abraçados, gemendo por entre o clamor da cidade lá fora. Ainda o ouvíamos. E depois não o ouvíamos mais (…)
(…) Pelas persianas a noite chegou. O barulho é maior. Mais estridente, menos surdo. Lampiões avermelhados se acendem.
Saímos da garçonnière (…) Na rua a multidão segue em todas as direções, lenta ou rápida, abre passagem, sarnenta como os cães abandonados, cega como os mendigos, uma multidão da China, vejo-a ainda nas imagens de prosperidade de hoje, no modo como caminham todos juntos sem jamais demonstrar impaciência, aquele modo de estar só no meio da multidão, sem alegria, sem tristeza, sem curiosidade, andando sem parecer ir a lugar algum , sem intenção de ir, mas apenas avançando, por aqui e não por ali, isolados e no meio do povo, jamais sozinhos de verdade, sempre sozinhos no meio da multidão…”

13.11.09- ‘O amante” e o tudo-nada da experiência vivida (segunda parte):
“… todas as coisas confundidas numa única por essência inqualificável…” (M. Duras, O AMANTE)
Pensando no sucesso que O AMANTE fez ao ser lançado, em 1984, me pergunto: as pessoas acharam que estavam lendo um “relato baseado numa historia verídica” ? Seria delicioso saber que sim porque não há nada mais falso do que ler o livro por essa perspectiva. Não que Duras tenha inventado nada (embora também possa haver uma boa dose de invenção, ou pelo menos de ressignificação), é que, apesar do exotismo da situação (moça francesa de quinze anos e meio, pobretona, em 1929 inicia relacionamento de teúda e mantéuda com um chinês doze anos mais velho e rico,no que era então a Conchinchina antes de ser o atual Vietnã), esse aspecto é menos importante do que o desfile de obsessões da autora na sua Macro-Narrativa (isto é, na linha-mestra que percorre várias obras). O ser-escritora, frisado em diversos pontos do relato, é o que conta, e essa constelação de imagens primordiais (dos parentes próximos paradigmáticos, como a mãe e os irmãos; a travessia iniciática da balsa; a mulher fatal da embaixada; o carrão preto; o amante exótico) são as que povoam, mais do que um universo biográfico, um universo autoral (e por isso é totalmente pertinente, apesar de velha, essa discussão entre romance e depoimento biográfico): “Na balsa, ao lado do ônibus, está uma grande limusine preta, o motorista de libré de algodão branco. Sim, é o grande carro fúnebre dos meus livros. Éo Morris Léon-Bollée. O Lancia preto da embaixada da França em Calcutá ainda não estreou na literatura”. Isso interessaria a um leitor do “relato biográfico”? Para ele, uma passagem acidental; para um iniciado nos textos de Duras, a revelação de que o aparentemente simples é uma armadilha. Na edição recente da CosacNaify há um ensaio de Leyla Perrone-Moisés, “A imagem absoluta” , no qual se faz referência ao trabalho imenso de escrita do texto aparentemente muito “legível” e “acessível” (em se tratando de Duras, é claro) de O AMANTE (que, nesse ponto, lembra o sucesso de um outro texto igualmente complexo e desafiante, e no entanto “fácil”: A hora da estrela); “Quero escrever. Já disse a minha mãe: o que eu quero é escrever”… “Respondi que meu maior desejo era escrever, nada mais do que isso, nada”. E é isso que determina o belo jogo de linguagem, em que uma primeira pessoa (“eu”, a velha escritora, o rosto destruído) relata-se em terceira pessoa (‘ela”, a menina cujas experiências de prazer e dor já estavam inscritas na sina do seu corpo antes de ela vivê-las), de um modo muito mais complexo e caleidoscopico do que simplesmente passar de primeira para terceira pessoa, do que estar na Conchinchina, e depois na França. “Eu” tenho um filho e desse filho tenho uma fotografia, onde ele aparece com determinada expressão e postura (“Encontrei uma fotografia de meu filho quando ele tinha vinte anos. Está na Califórnia, com suas amigas Erika e Elisabeth Lennard. É tão magro, magro demais, parece também um ugandense branco. Acho seu sorriso arrogante, um pouco zombeteiro. Quis parecer um jovem vagabundo. Agrada-lhe ser assim, pobre, com jeito de pobre, a magreza desajeitada da juventude”). “Ela” está na balsa do rio Mekong, aos 15 anos e meio, e está para atravessar um rito de passagem, é o último momento antes de “entrar” na obra durasiana. Só que a vida não forneceu uma fotografia dessa imagem da moça na balsa (a fotografia do filho é o que há de mais próximo, com as mil associações que podem ser feitas: “Essa fotografia é a que mais se parece com a que não foi tirada da moça da balsa”): “Durante essa travessia, a imagem poderia definir-se, destacar-se do conjunto. Ela poderia ter existido, uma fotografia poderia ter sido tirada… Mas não foi… A fotografia só seria tirada se fosse possível prever a importância desse acontecimento em minha vida, aquela travessia do rio… Por isso essa imagem, e nem podia ser de outro modo, não existe. Foi omitida. Foi esquecida. Não foi destacada, não foi registrada. A esse fato de não ter existido ela deve sua virtude, a de representar um absoluto, de ser seu próprio autor”. Ora, O AMANTE se propõe a ser a fotografia em palavras que substitui a imagem que não foi fixada. Mas é uma travessia de rio, lembrem-se, e essas palavras formarão uma imagem fluida, auto-transformadoras, metamorfoseantes: o ódio-amor pela mãe, os irmãos oprimidos e desesperados, mas crianças risonhas, numa ótica que se corrige a todo instante, e que nos instila a cautela com a exatidão desses fatos contados (“Eu me esqueço de tudo, me esqueci de dizer isso, que éramos crianças risonhas, meu irmão mais novo e eu, que ríamos até perder o fôlego, a vida”); o amante que não é amado (no entanto, por que essa dor com o afastamento definitivo?, a viagem de navio, ao mesmo tempo libertadora, para a França): “Não havia vento e a música espalhou-se por todo o navio escuro, como uma injução do céu, vinda não se sabia de onde, como uma ordem de Deus de teor ignorado. E a jovem levantou-se como se fosse também se matar, jogar-se por sua vez ao mar, e depois ela chorou porque se lembrou daquele homem de Cholen e subitamente não tinha certeza de não tê-lo amado com um amor que não havia percebido porque se perdera na história como a água na areia e que só agora encontrava, no momento em que a música era lançada através do mar.” Ou só agora, quando o relato está sendo escrito, criando aquela música no mar que ressignifica todo o amor. Pois já não lêramos antes: “Durante a viagem, na travessia desse oceano (portanto, temos duas travessias iniciáticas pelas águas), tarde da noite, alguém morreu. Ela não sabe muito bem se foi essa viagem ou em outra qualquer. Algumas pessoas jogavam cartas no bar da primeira clsse, entre os jogadores estava um jovem e, num dado momento, esse jovem, sem uma palavra, colocou as cartas na mesa, saiu do bar, atravessou correndo o convés e jogou-se ao mar (…) Não, agora escrevendo, ela não vê o navio mas outro lugar, onde ouviu essa história. Foi em Sadec. O filho do administrador de Sadec. Ela o conhecia, ele estudava também no liceu de Saigon. Ela se lembra,muito alto, rosto suave, moreno, óculos com aros de tartaruga. Nada foi encontrado na cabine, nem uma carta. A idade ficou na memória, apavorante, a mesma, dezessete anos. O navio tinha partido afinal ao nascer do sol. Isso era o mais terrível. O nascer do sol, o mar vazio,e a decisão de abandonar a busca…”


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