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“risquei um rosto no reboco
o homem ficou bem brabo
gritou e cuspiu
era depois do almoço
meses depois, a parede ria
boca cheia de tijolos com farofa.”
(Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, poética)
“Também não compreendo o corpo, essa armadilha, nem a sangrenta lógica dos dias, nem os rostos que me olham nesta vila onde moro…”
“Convém lavarmo-nos, pelos e sombras, solidão e desgraça, também lavei Ehud no fim algumas vezes, sovacos, coxas, o escuro buraco, sexo, bolotas. Ai Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco? Escondido atrás, mas quantas vezes pensado, escondido atrás, todo espremido, humilde, mas demolidor de vaidades, impossível ao homem se pensar espirro do divino tendo esse luxo atrás…”
“Tudo entra dentro de mim, tudo sai. Não tem nada que só entra? Não. E Deus? Deus entra e sai, Ehud?” (Hilda Hilst, A Obscena Senhora D)

I
“Lego-te os dentes.
Em ouro, esmalte e marfim.
Entre sarrafos e palha.
O baço dos meus ossos.
Procura na tua balança
Minha couraça. Meu bandolim.
Escrita e torso.
Pesa-me a mim. Minhas funduras
E o gume do meu desgosto.
Procura, na minha hora,
Entre sarrafos e palha
O que restou de mim
À tua procura.” (Hilda Hilst, Da Morte. Odes Mínimas)
Costumava, quando mais jovem, datar meus livros conforme os adquiria. Não faço isso há muitos anos, mesmo porque me dei conta de que esse hábito tinha as características fundamentais do pensamento mágico: cada exemplar era único, e aquela edição específica que estava comprando ficava sendo “a” edição do livro. Passados trinta anos, essa aura dada a um fator meramente contingencial (com as exceções de praxe) é, para mim, um sintoma do compasso neurótico que orienta muitas vezes o chamado “gosto” (literário, cinematográfico, musical etc). Ao historiar minhas leituras e minhas aquisições de livros, consigo perceber a “neurose da literatura” (na definição de Sartre) perfeitamente.
Portanto, nada mais de “aura” para determinadas edições? Quem dera. Ainda persiste um ressaibo dessa disposição, só que nem de longe qualquer lançamento agora (no sentido editorial, bem entendido) me causa a comoção experimentada ao comprar em São Paulo, em 8 de março de 1983 (lá se vão três décadas!), dois exemplares (um deles, para presentear outra apaixonada por literatura: Irene Gilberto Simões) da primeira edição de A Obscena Senhora D, de Hilda Hilst (1930-2004), que saíra em fins de 1982[1].
Desde que lera a enorme matéria (página inteira) no Jornal da Tarde, assinada por Léo Gilson Ribeiro (não lembro mais se em novembro ou dezembro[2]), e visto que a autora era uma das minhas leituras mais frequentes na época (os livros Ficções e Tu não te moves de ti [3]), e como o livro nunca chegava a nenhuma livraria santista (eu não entendia nada de nada de distribuição nem imaginava que a Massao Ohno/Roswitha Kempf só imprimira mil exemplares), estava num siricutico danado para tê-lo em mãos.
Por esse motivo, minha homenagem aos 30 anos de publicação de uma das obras-primas da nossa literatura vem atrelada não à data de seu lançamento original propriamente dito mas à da compra do exemplar. É um aceno que eu dou também à mocidade, “tarefa para mais tarde se desmentir”, como dizia Riobaldo.


II
“Ter sido. E não poder esquecer. Ter sido. E não mais lembrar. Ser. E perder-se…”
Hilda dedica A Obscena Senhora D à memória de Ernest Becker, “por quem sinto incontida veemente apaixonada admiração”.
Em A Negação da Morte, Becker mostra que o caráter individual é uma construção mentirosa destinada a fazer esquecer um terror (o terror da nossa mortalidade, que poderia nos enlouquecer). É uma perspectiva kierkegardiana, na qual se opõem possibilidade (ou seja, a aceitação de um universo basicamente apavorante e esmagador) e necessidade (a edificação de um mundo à nossa volta como um tapume, mentiroso e trivial). A vida “normal” seria o filistinismo, a acomodação. Becker: “Kierkegaard teve um vislumbre da liberdade para o homem. Não tinha uma idéia fácil do que a ‘saúde’ é. Mas sabia o que ela não era: não era um ajustamento normal. Ser um indivíduo normal é, para Kierkegaard, ser doente. A saúde mental é algo muito além do homem, algo a ser atingido e pelo qual se deve lutar, algo que leva o homem para além de si mesmo.”
O homem é o animal paradoxal, consciente de si mesmo, ridiculamente emparedado na condição de criatura mesmo possuindo uma vida simbólica: “Este é o horror: ter surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos e apesar de tudo isso, morrer. Parece uma mistificação. Que tipo de divindade iria criar um alimento para vermes tão complexo e caprichoso?”
Após as rápidas pinceladas acima, que mal arranham as questões do realmente admirável A Negação da Morte (ver, no blog, https://armonte.wordpress.com/2011/01/23/a-escola-da-possibilidade/), vejamos como Hilda enfrentou todos esses problemas, equilibrando-os com sua reiterada predileção pelos estratos escatológicos da linguagem.


O texto começa assim:
“Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem porisso [sic] irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas, Derrelição Ehud me dizia, Derrelição—pela última vê Hillé, Derrelição quer dizer desamparo, abandono, e porque me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por diante te chama A Senhora D. D de Derrelição, ouviu? Desamparo, Abandono, desde sempre a alma em vaziez, busca nomes, tateava cantos, vincos, acariciava dobras, quem sabe se nos frisos, nos fios, nas torçuras, no fundo das calças, nos nós, nos visíveis cotidianos, no ínfimo absurdo, nos mínimos, um dia a luz, o entender de nós todos o destino, um dia vou compreender, Ehud…”
Como se pode perceber de imediato, trata-se de um dos inícios mais avassaladoramente concentrados e intensos já escritos. O incrível é como ela consegue manter essa tensão de linguagem até o fim; irregularmente, sim, mas sempre em alta tensão, em riste (em Hilst).
Os nomes dos dois personagens centrais, Hillé e Ehud, como amiúde acontecia no universo hilsteano, evocam Beckett.
Ehud, desde a mocidade, tentou manter Hillé fincada na terra, sempre tentando evitar que ela se deixasse levar por suas inquietações metafísicas (incorrendo assim na loucura do pai). Inutilmente. Chega um momento em que ela decide viver no vão da escada, uma espécie de canto-aleph no universo. Com Ehud de guarda, por assim dizer, ela ainda permanece protegida na sua fragilidade de ser em carne viva. No entanto, ele morre, e o vão da escada é apenas o ingrediente folclórico de uma situação-limite.
Ela assusta a vizinhança usando máscaras horríveis, grita obscenidades, impreca, desvaria, recebe mal as tentativas de aproximação (caridosas, condescendentes, tudo em nome da decência, da moral, da civilidade, da religião, dos bons costumes: “Casa da Porca, assim chamam agora a minha casa”). Como espaço-aleph que é, o vão da escada congrega prismaticamente tempos diversos, várias Hillés e seus colóquios com o Divino, que muitas vezes é representado como um Porco-Menino (Jesus?), que se espoja em meio à humanidade. E a humanidade em volta de Hillé (que muitas vezes evoca um ambiente quase de favela, ou de vila bem pobre) também solta o verbo, numa série de flashes de falas populares, chulas, truculentas ou meramente cotidianas,onde pessoas “simples” não conseguem entender o “luxo” de uma atitude entre mística e agônica, misturada à viuvez e ao envelhecimento, ou seja, à consciência aguda da mortalidade.
E, neste passo, aproveito para justificar o título deste meu texto. A Obscena Senhora D é o réquiem para o sonho de Hillé. Sim, não deixa de ser uma referência brincalhona ao belo e doloroso filme de Darren Aronofsky, mas também é uma alusão a toda a gama de significados da palavra sonho. Pois o sonho pode ser uma aspiração, e toda a vida de Hillé é esse anelo pelo divino, pelo transcendente, pelo que ultrapassa esses “nadas do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de nós”; o sonho pode ser uma ilusão, individual e coletiva, e nessa toada todos os envolvidos no relato (Hillé e os Outros; e também este aqui escreve, em sua renitente “neurose da literatura”), são sonhadores, afinal “a vida é sonho”; e o sonho é uma reelaboração onírica dos “vestígios do dia”, do material da realidade, e o vão da escada de Hillé é o umbral dessa operação alquímica:
“Antes havia ilusões não havia? Morávamos nas ilusões. Ehud, e se eu costurasse máscaras de seda, ajustadas, elegantes, por exemplo, se eu estivesse serena sairia com a máscara da serenidade, leve, pequenas pinceladas, um meio sorriso, todos os que estivessem serenos usariam a mesma máscara, máscaras de ódio, de não disponibilidade, máscaras de luto, máscaras do não pacto, não seria preciso perguntar vai bem como vai etc, tudo estaria na cara…”
III
“nomeias as ilusões, afasta-te da vertigem”
No conjunto da obra de Hilda Hilst, A Obscena Senhora D ocupa um papel estratégico. Não dá para falar de limpidez, palavra estranha ao seu universo em tumulto, em esgar (“os ganidos da infância… o que é pensar, o que é nítido, sonoro, o que é som trinado, urro, grito, o que é asa hen? Lixo as unhas no escuro, escuto, estou encostada à parede no vão da escada, escuto-me a mim mesma, há uns vivos lá dentro além da palavra, expressam-se mas não compreendo, pulsam, respiram…”).
Ainda assim, podemos notar uma marcante diferença com relação à sua “ficção” anterior, o radicalismo—hermético para alguns—dos textos de Fluxofloema (1970) e ainda mais de Qadós (1973). Penso que nesses dois livros está o lado mais genial e assombroso de Hilda, e o texto-título de Qadós é, a meu ver, sua grande realização na prosa; contudo, sutilmente, a partir de Pequenos discursos. E um grande, que era a parte inédita de Ficções (1977), e depois nas três narrativas de Tu não te noves de ti (1980), aconteceu um lento fenômeno similar (embora elas sejam tão diferentes!) ao registrado na obra de Clarice Lispector: esta também tem sua fase mais “difícil” e esfíngica (A maçã no escuro é seu Qadós) e depois uma maior legibilidade (exemplo enganoso: A hora da estrela).
Concessão? Não acredito. O fato é que a autora ficou mais conhecida (era uma figura carismática), mais cultuada, e seus textos começaram a acusar um certo traquejo de performance, enfatizando o que as situações tinham de potencialmente dramático (por isso, acho que Senhora D foi tão bem no palco). Tanto Hillé quanto Amós Keres, de Com os meus olhos de cão, outro texto maravilhoso desta fase (que também inclui os lindos poemas de Odes mínimas & Cantares de perda e predileção) fazem com que o leitor descortine algo de pedagógico em suas experiências-limite. Ou seja, no fundo Hilda quer ilustrar as lições de Becker. Becker com Beckett, num belo jogo literário, pois nada ficou explicativo, fechado, “coeso”. Tudo ainda permanece em riste, só que a comunicação com o leitor parece mais fluida e harmônica. Mais tarde, ela exercitará a “grossura”, a falta de sutileza, ficará mais “clara” e mais rupestre, por assim dizer. Aí a consciência de estar no palco e fazendo um jogo de máscaras, teatral, atinge seu auge. A Senhora D vira Lory Lamby, os contos do grotesco e do arabesco viram de escárnio mesmo. O nevoeiro do “folclórico”.


IV
“…iremos juntos num todo lacunoso se o teu silêncio se fizer o meu, porisso falo falo, para te exorcizar, porisso trabalho com as palavras, também para me exorcizar a mim, quebram-se os duros dos abismos, um nascível irrompe nessa molhadura de fnemas, sílabas, um nascível de luz, ausente de angústia…”
Mas em 1982, Hilda é uma escritora considerada “obscura”, com seus “happy few”, publicada por editoras pequenas, e Becker e Beckett equacionados no vão da escada. Lá está a viúva Senhora D, o terror da vizinhança: “… abro a janela nuns urros compassados, espalho roucos palavrões, giro as órbitas atrás da máscara, não lhes falei que recorto uns ovais feito de estopa, ajusto-os na cara e desenho sobrancelhas negras, olhos, bocas brancas abertas? Há máscaras de focinhez e espinhos amarelos (canudos de papelão, pintados pregos), há uma máscara de ferrugem e esterco, a boca cheia de dentes, há uma desastrada lembrança de mim mesma, alguém-mulher querendo compreender a penumbra, a crueldade—quadrados negros pontilhados de negro—alguém-mulher caminhando levíssima entre as gentes, olhando fixamente as caras, detendo-se no aquoso das córneas, no maldito brilho…”
Siderada pela mortalidade, pelo nada, Hillé coloca no aquário peixes de papel pardo para substituir os que morreram junto com Ehud, o que dá azo a uma das passagens mais pungentes: “não quero mais ver coisa muito viva, peixes lustrosos não, nem gerânios maçãs romãs, nem sumos, suculências, nem laranjas…”
Uma vizinha “simpática” traz pãezinhos para a reclusa, exortando-a a não viver trancada e a não assustar as pessoas, especialmente as crianças: “ai, ai, senhora D não faz assim agora, isso é coisa de mulher desavergonhada, ai que é isso madona, ta mostrando as vergonhas pra mim… credo nossa senhora, é caso de polícia essa mulher…”[4]
Depois é a vez de um padre, a quem ela confunde com perguntas sobre o Mal e a alma até que ele é obrigado a se defender:
“sou um homem como outro qualquer, Senhora D
então rua rua, fora, despacha-te homem como outro qualquer”
Depois, uma vizinha traz um benzedor: “…o homem ta dizendo umas coisas, presta atenção senhora D, quem? ah sim, o homem tá dizendo que Asmodeu, Asmodeu a senhora conhece né? ele diz que sim que a senhora conhece… quem mais, moço? tem mais um aí senhora D, péra um pouco que o nome desse é mais difícil, ah sim, Astaroth, é isso, credo Astaroth, é isso, esses dois tão aí, é o homem que diz, ele também ta dizendo que esses é que fazem a senhora assim, viu senhora D? senhora D?…”
Perto do final, já não há mais tentativas de “comunicação”. A não ser um gesto de Hillé, totalmente incompreendido:
“sabe que o mocinho verdureiro passou hoje pela janela dela e a porca quis tocar a cabeça do boneco? porque ele é bem bonitinho o boneco verdureiro
quem que cê disse?
o Zico, tô te dizendo, a bruxa quis afagar a cabecinha dele, hoje ela tava sem máscara, com a cara dela mesma, toda amarfanhada, e aquela blusa cor de bosta toda trançada, o mocinho olhou com o zóio assim ó, parou, e cuspiu na mão dela
credo, que gente ruim também
tu defende a porca?
é caridade, né gente, a mulher ta sozinha, escurecendo
ela ficou olhando o cuspe, fechô a mão, fechô a janela bem devagar
pro cuspe não cair…”
Até que chega o momento da agonia de Hillé, com a vizinhança em expectativa:
“… ela resiste até quando?
até amanhã, disseram
estranho, os cães ficam todos ao redor, eles sabem…”
E em meio ao zé-povinho, o Porco-Menino.
Esse é, em suma, o estrato do texto que nos mostra por que a Senhora D é “obscena”. Porque é obsceno ver a condição humana posta a nu. De permeio aos episódios burlescos citados, acompanhamos o enovelamento da longa relação de Hillé com Ehud, uma relação, aliás, que sempre me emociona, em todas as leituras que fiz ao longo destes 30 anos, principalmente porque Ehud, mesmo espicaçando, provocando Hillé (“Senhora D, é definitivo isso de morar no vão da escada? você está me ouvindo Hillé? olhe, não quero te aborrecer, mas a resposta não está aí, ouviu? nem no vão da escada, nem no primeiro degrau aqui de cima, será que você não entende que não há resposta?”) e seus “luxos de pensamento”, também é um ser faminto de significado, como se pode inferir do trecho a seguir: falando sozinha senhora D? sabe, Hillé, você deve ver as pessoas, você deve foder comigo, deve se arrumar comigo, outro dia vi uma saia longa dessas que você usa mas tão linda, uns frisos escarlates, o tecido amanteigado púrpura, entrei na loja e pensei comprá-la, a mocinha disse ficará lindo na sua senhora, ela é alta? magra? eu disse bem, nem muito alta nem muito magra, é loira, tem sardas, não podia falar dos teus peitos duros, mas falei tem um lindo busto, ah isso falei, aliás observação inútil em relação à saia, mas falei, então se é loira, senhor, vai ficar adorável nesses tons, ia comprar mas aí vi pequenos esgarçados, tocando tecido dava a impressão de que estava tostado do sol das vitrines, parecia velho de perto, coisa usada, então não quis, mas deve haver outras, hen, não gostarias?” Morrendo, ele a aconselha, de forma comovente, a arranjar um amante, um jovem, para suportar a existência.


V
Hillé diz para nós: “Revisito, repasseio, passeio novamente em nova visita paisagens e corpos” porque em nossas mãos também temos uma espécie de “livro das metamorfoses”, onde há uma relação empática muito forte com os animais (recorrência nos textos de Hilda).
Um episódio que ela rememora e que me parece crucial (porque tem a ver com o seu próprio fim, e a “mistura das coisas” no mundo, essa escatologia que é interface da transcendência) é a da mulher agonizando, enquanto o marido fornica com uma criada. A mulher ouve ruídos e Hillé faz as vezes do marido:
“Agonizava essa e eu encostava o ouvido à sua boca, ouvia: querido, perdoa incompreensão, recusa, indiferença de muitos dias, perdoa solidões, os contatos com o nada, a palha colada à alma, perdoa se não te dei claridade, emoção, se quanto tu me querias os olhos se banhavam de umas águas do passado
Eu Hillé respondia esquece esquece, está tudo bem agora. Mentia.
é preciso que eu fale, é a hora da morte, não é? avançam os guardados da alma, alguns toscos pesados, brilhos, me escuta por favor, tudo se esvai, escuta
Eu Hillé respondia sim estou perto escuto
sabe, às vezes queremos tanto cristalizar na palavra o instante, traduzir em lúcidos parâmetros centelha e nojo, não queremos?
sim
então, eu queria também, queria sim tocar teu medo teu amor tua vaidade de homem, existir no teu sonho, me ouves?
sim
espera, que gritos são esses agora?
hen?
Como se alguém estivesse morrendo antes de mim, se muere alguién?
não, eu não escuto nada. Mentia.
ouve, sim, sim, alguém agoniza antes de mim…”
Esse tema do indivíduo moribundo, em agonia, se mistura ao tema do pai (uma sombra pesada na vida de Hilda Hilst, a forte figura paterna e sua insanidade), cuja Presença (e por isso utilizo a maiúscula melodramática) como que se confunde com aquele deus, pai do Porco-Menino, tão esquivo, “La Oscura Cara” (e que às vezes se funde com a figura de Ehud); ademais, essa evocação do pai (e de Hillé e Ehud mais jovens) projeta a narrativa “urbana” para uma moldura mais rural, mais arcaica e recôndita (um fenômeno que também acontecerá em Com os meus olhos de cão):
“e então, pai?
então fui cortado em delicadíssimos pedaços
como cortamos a salada de acelga
sim, Hillé, é isso, um montículo de palha e terra, minúcias, salada de acelga, é bem isso, e o que foi a vida? uma aventura obscena, de tão lúcida.
Me deitei ao teu lado na tua agonia, escutei verdades e vazios…”
(…)
teu pé é bonito, Hillé, caminhou pouco mas sabe quase tudo
Os pés do pai, magros, brancos, algumas veias explodindo em azul. Alguns loucos ficam de pé, parados, horas e horas.
não ta cansado não?
A resposta não vem, o olhar um cinza esticado, longo, de repente um metal de ponta, seco, furante, um raivoso de garra, um nojo, duas aves se batendo, sangue no peito, nas unhas
é que os teus pés estão roxos, pai
puta, Hillé, igualzinha à mãe, esses tons afáveis escondem a bola negra da mentira, ah como parece delicada a avezinha, que pios, que penugem, que redondinho claro esse olho dourado, mas lá dentro o fundo garreia o teu coração, exige o teu coração
por que ele diz isso, Ehud?
quem é que sabe o que vê
em mim?
nele, Hillé, nele
em mim, Ehud, na minha cara um estupor, um nunca compreender, um enrugado mole, olha como é a minha cara sem o teatro para o outro…”
Bem, caro leitor, acho que já lancei alguma luz sobre o sombrio vão de escada onde Hillé vive sua Derrelição. Agora é a sua vez de explorá-lo. Certamente encontrará uma parte de mim vivendo ali há 30 anos.
(escrito especialmente para o blog)

ANEXO
Em 1983, Hilda Hilst publicou Cantares de perda e predileção (Massao Ohno- M. Lydia Pires e Albuquerque Editores), uma de suas melhores obras.
Transcrevo o primeiro poema:
“Vida da minha alma
Recaminhei casas e paisagens
Buscando a mim, minha tua cara.
Recaminhei os escombros da tarde
Folhas enegrecidas, gomos, cascas
Papéis de terra e tinta sob as árvores
Nichos onde nos confessamos, praças.
Revi os cães. Não os mesmos. Outros
De igual destino, loucos, tristes.
Nós dois, meu amor-ódio, atravessando
Cinzas e paredões, o percurso da vida.
Busquei a luz e o amor. Humana, atenta
Como quem busca a boca nos confins da sede.
Recaminhei as nossas construções, tijolos
Pás, a areia dos dias.
E tudo o que encontrei te digo agora:
Um outro alguém sem cara. Tosco. Cego.
O arquiteto dessas armadilhas.”

E este outro:
“Faremos deste modo
Para que as mãos não cometam
Os atos derradeiros:
Envolveremos as facas e os espelhos
Nas lãs dobradas, grossas.
E de alongadas nódoas, o ressentimento.
Pintadas as caras num matiz de gesso
Recobriremos corpo, carne
Na tentativa cálida, multiforme
Na rubra pastosidade
De um toque sem sofrimento.
E afinal
Cara a cara (espelho e faca)
De nossa duplas fomes
Não diremos.”

[1] A história editorial de A Obscena Senhora D é a seguinte: em 1982, saiu na aurática edição da Massao Ohno/Roswitha Kempf, com a capa vermelho-dourada de Mora Fuentes (autor do texto na 4ª. capa) e com uma orelha de Caio Fernando Abreu. Uma das curiosidades dessa edição é que não há paginação.
Em 1986, ao lançar Com os meus olhos de cão pela Brasiliense (sua primeira editora mais “comercial”, por assim dizer), para fazer um volume alentado, Hilda o juntou a outras “novelas” (que era o termo que resolveu utilizar então, após “ficções’, que eu acho mais acertado), entre elas Senhora D (e mais as três que compõem Tu não te moves de ti; Qadós; Floema).
Em 1993, ao publicar Rútilo nada pela editora Pontes, ela o juntou à Senhora D e Qadós (cheguei a comentar este lançamento em A TRIBUNA de Santos).
Em 2001, a Globo, ao assumir a publicação da obra de Hilda, publicou Senhora D tal como originalmente, em volume único.
[2] De todo modo, um dos textos mais bonitos escritos por Ribeiro (que faleceu em 2007). Quando será que organizarão uma antologia de suas matérias, pelo menos as da fase JT, as quais considero de grande valor?
[3] Tu não te moves de ti (Livraria Cultura Editora, 1980) foi o primeiro livro que comprei de Hilda Hilst, em 05 de junho de 1982. Depois que comecei a ler, corri para a mesma livraria e comprei Ficções (Quíron, 1977; até hoje minha edição favorita dela) no dia seguinte, 06 de junho. Em1983, eu já teria uma primeira (mas não suficiente) lição sobre a falta de aura das edições, uma vez que descobri em São Paulo um lugar onde livros eram vendidos a quilo, e onde comprei vários exemplares de Ficções, do volume reunindo a Poesia de Hilda, e outras edições da Quíron, além de A Negação da Morte, de Ernest Becker, livro inspirador de A Obscena Senhora D, exemplares esses que foram desaparecendo ao longo dos anos: dados, emprestados e não devolvidos, e até surrupiados. Ainda bem que fiquei com um de cada (só não sobrou nenhum da edição da Nova Fronteira do livro de Becker).
[4] Essa visita se amplifica numa visão da vizinhança de Hillé e do falatório, que geralmente enfatiza o lado bufo da condição humana (ainda que, no discurso, todos exaltem “valores humanos”):
“… e as caretonas que exibe na janela, alguém tem o direito de assustar osotro assim?
he he Luzia, teu traseiro também assusta muita gente
teu cu também, tua faccia
tua boca repelente sem dente também
credo a vizinhança endoidou
olha a freira passando
olha o doutor com a madama dele
olha o cuzaço da madama do doutor…”
Em outro trecho:
“É uma sapa velha. Viu a pele pintada? É sarda. Ainda tem umas boas tetas. Credo, teta de sapa. Podemos botar fogo na casa durante a lua nova. Com as casas quase coladas? Dá-se um jeito, fogaréu que vai dar gosto. O Nonô metido a demo, a polícia, tu sabe que vive enfiando prego no cu do gato, pois é, pois o Nonô se mijô quando viu a caretona dela na janela. Casa da porca…”
Mais adiante, há um trecho em que a vizinhança comenta “pirações” alheias, e cuja conclusão vale como um dito popular definitivo: “passarinho que come pedra sabe o cú [sic] que tem”.

