MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

31/07/2018

HOMENAGEM A HILDA HILST

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 31 de julho de 2018)

Um dos privilégios da minha vida foi ter conhecido Hilda Hilst (a grande homenageada da FLIP 2018). Aos 20 anos, visitei a Casa do Sol, o sítio onde vivia. Era apaixonado por sua obra, que estava no auge, com a publicação da novela “A Obscena Senhora D” e os poemas de “Odes Mínimas” e “Cantares de Perda e Predileção”. O clímax inesquecível da visita foi a leitura em voz alta do ainda inédito “COM OS MEUS OLHOS DE CÃO”, publicado no ano seguinte (1986).

“COM OS MEUS OLHOS DE CÃO” trata-se de outro ponto alto da sua produção, cujo protagonista, Amós Keres, foi uma criança que fazia sempre perguntas incômodas, impressionado com a morte e a presença do sofrimento no mundo. Fortemente reprimido pelo pai autoritário, ele aos poucos calou em si essas perguntas, mergulhando no estudo da matemática, constituindo família, tornando-se professor universitário. Um dia, no alto de uma colina, ele tem uma visão epifânica e a partir daí ficarão esgarçadas todas as suas relações com um mundo mentiroso, sentimentalizado e complacente. Ele fica “alheio” nas aulas (os alunos se retiram e deixam recados jocosos na lousa), passa a sentir repulsa pela mulher e o filho, parece estar sempre com um sorriso desdenhoso (o que o mete em confusões) e a cabeça inclinada e seu único interlocutor é um amigo, Isaiah, que vive maritalmente com uma porca. Ao cabo, Amós decide voltar à casa da infância, com muito de rural ainda, e viver nos fundos do quintal, como um bicho, um ser desnudado, descobrindo também que o pai tinha os mesmos assomos de descortinamento do coração selvagem da vida: “que esforço para tentar não compreender, só assim se fica vivo, tentando não compreender”.

Não se pense que o texto é assim coeso, unívoco. Como sempre em Hilda Hilst, tudo vem numa forma agônica, emaranhada e intrincada, na qual todos os gêneros são misturados e a escatologia permeia todas as instâncias da condição humana (para se ter uma ideia, Amós Keres gostava de estudar matemática num puteiro), com a influência de Otto Rank & Ernest Becker de que vivemos sob o terror da morte e da nossa analidade “… Amós Keres. Inocente como um pequeno animal-criança olhando o Alto. Mas dizem que o Alto é o nada e é preciso olhar os pés. E o cu também. Com um espelho. Estou olhando. Impossível esquecer grotesco e condição”.

Plínio Marcos com Samuel Beckett. O leitor que se prepare, pois tem de estar disposto. Com essa obscena Senhora H, é tudo ou nada.

“Daqui onde estou posso ouvi-lo pensando da lucidez de um instante à opacidade de infinitos dias, posso ouvi-lo pensando nas diversas formas de loucura e suicídio. A loucura da busca, essa feita de círculos concêntricos e nunca chegando ao centro, a ilusão encarnada ofuscante de encontrar e compreender. A loucura da recusa, de um dizer tudo bem, estamos aqui e isto nos basta, recusamo-nos a compreender. A loucura da paixão, o desordenado aparentando ser luz na carne, o caos sabendo à delícia, a idiotia simulando afinidades. A loucura do trabalho e do possuir. A loucura do aprofundar-se depois olhar à volta e ver o mundo mergulhado em matança e vaidade, estar absolutamente sozinho no mais profundo. Amós está? Daqui onde estou posso ouvi-lo pensando como devo matar-me? Ou como devo matar em mim as diversas formas de loucura e ser ao mesmo tempo compassivo e lúcido, criativo e paciente, e sobreviver? ”.

 

08/03/2013

Réquiem para um sonho: “A Obscena Senhora D”, de Hilda Hilst

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VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2011/02/06/o-alto-os-pes-o-cu-e-o-espelho-com-os-meus-olhos-de-cao-25-anos

“risquei um rosto no reboco

o homem ficou bem brabo

gritou e cuspiu

era depois do almoço

 

meses depois, a parede ria

boca cheia de tijolos com farofa.”

(Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, poética)

“Também não compreendo o corpo, essa armadilha, nem a sangrenta lógica dos dias, nem os rostos que me olham nesta vila onde moro…”

“Convém lavarmo-nos, pelos e sombras, solidão e desgraça, também lavei Ehud no fim algumas vezes, sovacos, coxas, o escuro buraco, sexo, bolotas. Ai Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco? Escondido atrás, mas quantas vezes pensado, escondido atrás, todo espremido, humilde, mas demolidor de vaidades, impossível ao homem se pensar espirro do divino tendo esse luxo atrás…”

“Tudo entra dentro de mim, tudo sai. Não tem nada que só entra? Não. E Deus? Deus entra e sai, Ehud?” (Hilda Hilst, A Obscena Senhora D)

edição original

I

“Lego-te os dentes.

Em ouro, esmalte e marfim.

 

Entre sarrafos e palha.

O baço dos meus ossos.

 

Procura na tua balança

Minha couraça. Meu bandolim.

Escrita e torso.

 

Pesa-me a mim. Minhas funduras

E o gume do meu desgosto.

 

Procura, na minha hora,

Entre sarrafos e palha

 

O que restou de mim

À tua procura.”  (Hilda Hilst, Da Morte. Odes Mínimas)

Costumava, quando mais jovem, datar meus livros conforme os adquiria. Não faço isso há muitos anos, mesmo porque me dei conta de que esse hábito tinha as características fundamentais do pensamento mágico: cada exemplar era único, e aquela edição específica que estava comprando ficava sendo “a” edição do livro.  Passados trinta anos, essa aura dada a um fator meramente contingencial (com as exceções de praxe)  é, para mim, um sintoma do compasso neurótico que orienta muitas  vezes o chamado “gosto” (literário, cinematográfico, musical etc). Ao historiar minhas leituras e minhas aquisições de livros, consigo perceber a “neurose da literatura” (na definição de Sartre) perfeitamente.

Portanto, nada mais de “aura” para determinadas edições? Quem dera. Ainda persiste um ressaibo dessa disposição, só que nem de longe qualquer lançamento agora (no sentido editorial, bem entendido) me causa a comoção experimentada ao comprar em São Paulo, em 8 de março de 1983 (lá se vão três décadas!), dois exemplares (um deles, para presentear outra apaixonada por literatura: Irene Gilberto Simões) da primeira edição de A Obscena Senhora D, de Hilda Hilst (1930-2004), que saíra em fins de 1982[1].

Desde que lera a enorme matéria (página inteira) no Jornal da Tarde, assinada por Léo Gilson Ribeiro (não lembro mais se em novembro ou dezembro[2]), e visto que a autora era uma das minhas leituras mais frequentes na época (os livros Ficções e Tu não te moves de ti [3]), e como o livro nunca chegava a nenhuma livraria santista (eu não entendia nada de nada de distribuição nem imaginava que a Massao Ohno/Roswitha Kempf só imprimira mil exemplares),  estava num siricutico danado para tê-lo em mãos.

Por esse motivo, minha homenagem aos 30 anos de publicação de uma das obras-primas da nossa literatura vem atrelada não à data de seu lançamento original propriamente dito mas à da compra do exemplar. É um aceno que eu dou também à mocidade, “tarefa para mais tarde se desmentir”, como dizia Riobaldo.

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II

Ter sido. E não poder esquecer. Ter sido. E não mais lembrar. Ser. E perder-se…”

Hilda dedica A Obscena Senhora D à memória de Ernest Becker, “por quem sinto incontida veemente apaixonada admiração”.

Em A  Negação da Morte,  Becker mostra que o caráter individual é uma construção mentirosa destinada a fazer esquecer um terror (o terror da nossa mortalidade, que poderia nos enlouquecer). É uma perspectiva kierkegardiana, na qual se opõem possibilidade (ou seja, a aceitação de um universo basicamente apavorante e esmagador) e necessidade (a edificação de um mundo à nossa volta como um tapume, mentiroso e trivial). A vida “normal” seria o filistinismo, a acomodação. Becker: “Kierkegaard teve um vislumbre da liberdade para o homem. Não tinha uma idéia fácil do que a ‘saúde’ é. Mas sabia o que ela não era: não era um ajustamento normal. Ser um indivíduo normal é, para Kierkegaard, ser doente. A saúde mental é algo muito além do homem, algo a ser atingido e pelo qual se deve lutar, algo que leva o homem para além de si mesmo.”

O homem é o animal paradoxal, consciente de si mesmo, ridiculamente emparedado na condição de criatura mesmo possuindo uma vida simbólica: “Este é o horror: ter surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos e apesar de tudo isso, morrer. Parece uma mistificação. Que tipo de divindade iria criar um alimento para vermes tão complexo e caprichoso?”

   Após as rápidas pinceladas acima, que mal arranham as questões do realmente admirável A Negação da Morte  (ver, no blog, https://armonte.wordpress.com/2011/01/23/a-escola-da-possibilidade/), vejamos como Hilda enfrentou todos esses problemas, equilibrando-os com sua reiterada predileção pelos estratos escatológicos da linguagem.

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   O texto começa assim:

“Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem porisso [sic] irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas, Derrelição Ehud me dizia, Derrelição—pela última vê Hillé, Derrelição quer dizer desamparo, abandono, e porque me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por diante te chama A Senhora D. D de Derrelição, ouviu? Desamparo, Abandono, desde sempre a alma em vaziez, busca nomes, tateava cantos, vincos, acariciava dobras, quem sabe se nos frisos, nos fios, nas torçuras, no fundo das calças, nos nós, nos visíveis cotidianos, no ínfimo absurdo, nos mínimos, um dia a luz, o entender de nós todos o destino, um dia vou compreender, Ehud…”

   Como se pode perceber de imediato, trata-se de um dos inícios mais avassaladoramente concentrados e intensos já escritos. O incrível é como ela consegue manter essa tensão de linguagem até o fim; irregularmente, sim, mas sempre em alta tensão, em riste (em Hilst).

Os nomes dos dois personagens centrais, Hillé e Ehud, como amiúde acontecia no universo hilsteano, evocam Beckett.

Ehud, desde a mocidade, tentou manter Hillé fincada na terra, sempre tentando evitar que ela se deixasse levar por suas inquietações metafísicas (incorrendo assim na loucura do pai). Inutilmente. Chega um momento em que ela decide viver no vão da escada, uma espécie de canto-aleph no universo. Com Ehud de guarda, por assim dizer, ela ainda permanece protegida na sua fragilidade de ser em carne viva. No entanto, ele morre, e o vão da escada é apenas o ingrediente folclórico de uma situação-limite.

    Ela assusta a vizinhança usando máscaras horríveis, grita obscenidades, impreca, desvaria, recebe mal as tentativas de aproximação (caridosas, condescendentes, tudo em nome da decência, da moral, da civilidade, da religião, dos bons costumes: “Casa da Porca, assim chamam agora a minha casa”). Como espaço-aleph que é, o vão da escada congrega prismaticamente tempos diversos, várias Hillés e seus colóquios com o Divino, que muitas vezes é representado como um Porco-Menino (Jesus?), que se espoja em meio à humanidade. E a humanidade em volta de Hillé (que muitas vezes evoca um ambiente quase de favela, ou de vila bem pobre) também solta o verbo, numa série de flashes de falas populares, chulas, truculentas ou meramente cotidianas,onde pessoas “simples” não conseguem entender o “luxo” de uma atitude entre mística e agônica, misturada à viuvez e ao envelhecimento, ou seja, à consciência aguda da mortalidade.

E, neste passo, aproveito para justificar o título deste meu texto. A Obscena Senhora D é o réquiem para o sonho de Hillé. Sim, não deixa de ser uma referência brincalhona ao belo e doloroso filme de Darren Aronofsky, mas também é uma alusão a toda a gama de significados da palavra sonho. Pois o sonho pode ser uma aspiração, e toda a vida de Hillé é esse anelo pelo divino, pelo transcendente, pelo que ultrapassa esses “nadas do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de nós”; o sonho pode ser uma ilusão, individual e coletiva, e nessa toada todos os envolvidos no relato (Hillé e os Outros; e também este aqui escreve, em sua renitente “neurose da literatura”), são sonhadores, afinal “a vida é sonho”; e o sonho é uma reelaboração onírica dos “vestígios do dia”, do material da realidade, e o vão da escada de Hillé é o umbral dessa operação alquímica:

“Antes havia ilusões não havia? Morávamos nas ilusões. Ehud, e se eu costurasse máscaras de seda, ajustadas, elegantes, por exemplo, se eu estivesse serena sairia com a máscara da serenidade, leve, pequenas pinceladas, um meio sorriso, todos os que estivessem serenos usariam a mesma máscara, máscaras de ódio, de não disponibilidade, máscaras de luto, máscaras do não pacto, não seria preciso perguntar vai bem como vai etc, tudo estaria na cara…”

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III

“nomeias as ilusões, afasta-te da vertigem”

No conjunto da obra de Hilda Hilst, A Obscena Senhora D ocupa um papel estratégico. Não dá para falar de limpidez, palavra estranha ao seu universo em tumulto,     em esgar (“os ganidos da infância… o que é pensar, o que é nítido, sonoro, o que é som trinado, urro, grito, o que é asa hen? Lixo as unhas no escuro, escuto, estou encostada à parede no vão da escada, escuto-me a mim mesma, há uns vivos lá dentro além da palavra, expressam-se mas não compreendo, pulsam, respiram…”).

Ainda assim, podemos notar uma marcante diferença com relação à sua “ficção” anterior, o radicalismo—hermético para alguns—dos textos de Fluxofloema (1970) e ainda mais de Qadós (1973).  Penso que nesses dois livros está o lado mais genial e assombroso de Hilda, e o texto-título de Qadós é, a meu ver, sua grande realização na prosa; contudo, sutilmente, a partir de Pequenos discursos. E um grande, que era a parte inédita de Ficções (1977), e depois nas três narrativas de Tu não te noves de ti (1980),  aconteceu um lento fenômeno similar (embora elas sejam tão diferentes!) ao registrado na obra de Clarice Lispector: esta também tem sua fase mais “difícil” e esfíngica (A maçã no escuro é seu Qadós) e depois uma maior legibilidade (exemplo enganoso: A hora da estrela).

Concessão? Não acredito. O fato é que a autora ficou mais conhecida (era uma figura carismática), mais cultuada, e seus textos começaram a acusar um certo traquejo de performance, enfatizando o que as situações tinham de potencialmente dramático (por isso, acho que Senhora D foi tão bem no palco). Tanto Hillé quanto Amós Keres, de Com os meus olhos de cão, outro texto maravilhoso desta fase (que também inclui os lindos poemas de Odes mínimas & Cantares de perda e predileção) fazem com que o leitor descortine algo de pedagógico em suas experiências-limite. Ou seja, no fundo Hilda quer ilustrar as lições de Becker. Becker com Beckett, num belo jogo literário, pois nada ficou explicativo, fechado, “coeso”. Tudo ainda permanece em riste, só que a comunicação com o leitor parece mais fluida e harmônica. Mais tarde, ela exercitará a “grossura”, a falta de sutileza, ficará mais “clara” e mais rupestre, por assim dizer. Aí a consciência de estar no palco e fazendo um jogo de máscaras, teatral, atinge seu auge. A Senhora D vira Lory Lamby, os contos do grotesco e do arabesco viram de escárnio mesmo. O nevoeiro do “folclórico”.

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IV

“…iremos juntos num todo lacunoso se o teu silêncio se fizer o meu, porisso falo falo, para te exorcizar, porisso trabalho com as palavras, também para me exorcizar a mim, quebram-se os duros dos abismos, um nascível irrompe nessa molhadura de fnemas, sílabas, um nascível de luz, ausente de angústia…”

Mas em 1982, Hilda é uma escritora considerada “obscura”, com seus “happy few”, publicada por editoras pequenas, e Becker e Beckett equacionados no vão da escada. Lá está a viúva Senhora D, o terror da vizinhança: “… abro a janela nuns urros compassados, espalho roucos palavrões, giro as órbitas atrás da máscara, não lhes falei que recorto uns ovais feito de estopa, ajusto-os na cara e desenho sobrancelhas negras, olhos, bocas brancas abertas? Há máscaras de focinhez e espinhos amarelos (canudos de papelão, pintados pregos), há uma máscara de ferrugem e esterco, a boca cheia de dentes, há uma desastrada lembrança de mim mesma, alguém-mulher querendo compreender a penumbra, a crueldade—quadrados negros pontilhados de negro—alguém-mulher caminhando levíssima entre as gentes, olhando fixamente as caras, detendo-se no aquoso das córneas, no maldito brilho…”

Siderada pela mortalidade, pelo nada, Hillé coloca no aquário peixes de papel pardo para substituir os que morreram junto com Ehud, o que dá azo a uma das passagens mais pungentes: “não quero mais ver coisa muito viva, peixes lustrosos não, nem gerânios maçãs romãs, nem sumos, suculências, nem laranjas…”

   Uma vizinha “simpática” traz pãezinhos para a reclusa, exortando-a a não viver trancada e a não assustar as pessoas, especialmente as crianças: “ai, ai, senhora D não faz assim agora, isso é coisa de mulher desavergonhada, ai que é isso madona, ta mostrando as vergonhas pra mim… credo nossa senhora, é caso de polícia essa mulher…”[4]

    Depois é a vez de um padre, a quem ela confunde com perguntas sobre o Mal e a alma até que ele é obrigado a se defender:

“sou um homem como outro qualquer, Senhora D

então rua rua, fora, despacha-te homem como outro qualquer”

Depois, uma vizinha traz um benzedor: “…o homem ta dizendo umas coisas, presta atenção senhora D, quem? ah sim, o homem tá dizendo que Asmodeu, Asmodeu a senhora conhece né? ele diz que sim que a senhora conhece… quem mais, moço? tem mais um aí senhora D, péra um pouco que o nome desse é mais difícil, ah sim, Astaroth, é isso, credo Astaroth, é isso, esses dois tão aí, é o homem que diz, ele também ta dizendo que esses é que fazem a senhora assim, viu senhora D? senhora D?…”

   Perto do final, já não há mais tentativas de “comunicação”.  A não ser um gesto de Hillé, totalmente incompreendido:

“sabe que o mocinho verdureiro passou hoje pela janela dela e a porca quis tocar a cabeça do boneco? porque ele é bem bonitinho o boneco verdureiro

quem que cê disse?

o Zico, tô te dizendo, a bruxa quis afagar a cabecinha dele, hoje ela tava sem máscara, com a cara dela mesma, toda amarfanhada, e aquela blusa cor de bosta toda trançada, o mocinho olhou com o zóio assim ó, parou, e cuspiu na mão dela

credo, que gente ruim também

tu defende a porca?

é caridade, né gente, a mulher ta sozinha, escurecendo

ela ficou olhando o cuspe, fechô a mão, fechô a janela bem devagar

pro cuspe não cair…”

Até que chega o momento da agonia de Hillé, com a vizinhança em expectativa:

“… ela resiste até quando?

até amanhã, disseram

estranho, os cães ficam todos ao redor, eles sabem…”

E em meio ao zé-povinho, o Porco-Menino.

Esse é, em suma, o estrato do texto que nos mostra por que a Senhora D é “obscena”. Porque é obsceno ver a condição humana posta a nu. De permeio aos episódios burlescos citados, acompanhamos o enovelamento da longa relação de Hillé com Ehud, uma relação, aliás, que sempre me emociona, em todas as leituras que fiz ao longo destes 30 anos, principalmente porque Ehud, mesmo espicaçando, provocando Hillé (“Senhora D, é definitivo isso de morar no vão da escada? você está me ouvindo Hillé? olhe, não quero te aborrecer, mas a resposta não está aí, ouviu? nem no vão da escada, nem no primeiro degrau aqui de cima, será que você não entende que não há resposta?”)  e seus “luxos de pensamento”, também é um ser faminto de significado, como se pode inferir do trecho a seguir: falando sozinha senhora D? sabe, Hillé, você deve ver as pessoas, você deve foder comigo, deve se arrumar comigo, outro dia vi uma saia longa dessas que você usa mas tão linda, uns frisos escarlates, o tecido amanteigado púrpura, entrei na loja e pensei comprá-la, a mocinha disse ficará lindo na sua senhora, ela é alta? magra? eu disse bem, nem muito alta nem muito magra, é loira, tem sardas, não podia falar dos teus peitos duros, mas falei tem um lindo busto, ah isso falei, aliás observação inútil em relação à saia, mas falei, então se é loira, senhor, vai ficar adorável nesses tons, ia comprar mas aí vi pequenos esgarçados, tocando tecido dava a impressão de que estava tostado do sol das vitrines, parecia velho de perto, coisa usada, então não quis, mas deve haver outras, hen, não gostarias?” Morrendo, ele a aconselha, de forma comovente, a arranjar um amante, um jovem, para suportar a existência.

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                                              V

    Hillé diz para nós: “Revisito, repasseio, passeio novamente em nova visita paisagens e corpos” porque em nossas mãos também temos uma espécie de “livro das metamorfoses”, onde há uma relação empática muito forte com os animais (recorrência nos textos de Hilda).

Um episódio que ela rememora e que me parece crucial (porque tem a ver com o seu próprio fim, e a “mistura das coisas” no mundo, essa escatologia que é interface da transcendência) é a da mulher agonizando, enquanto o marido fornica com uma criada. A mulher ouve ruídos e Hillé faz as vezes do marido:

“Agonizava essa e eu encostava o ouvido à sua boca, ouvia: querido, perdoa incompreensão, recusa, indiferença de muitos dias, perdoa solidões, os contatos com o nada, a palha colada à alma, perdoa se não te dei claridade, emoção, se quanto tu me querias os olhos se banhavam de umas águas do passado

Eu Hillé respondia esquece esquece, está tudo bem agora. Mentia.

é preciso que eu fale, é a hora da morte, não é? avançam os guardados da alma, alguns toscos pesados, brilhos, me escuta por favor, tudo se esvai, escuta

Eu Hillé respondia sim estou perto escuto

sabe, às vezes queremos tanto cristalizar na palavra o instante, traduzir em lúcidos parâmetros centelha e nojo, não queremos?

sim

então, eu queria também, queria sim tocar teu medo teu amor tua vaidade de homem, existir no teu sonho, me ouves?

sim

espera, que gritos são esses agora?

hen?

Como se alguém estivesse morrendo antes de mim, se muere alguién?

não, eu não escuto nada. Mentia.

ouve, sim, sim, alguém agoniza antes de mim…”

Esse tema do indivíduo moribundo, em agonia, se mistura ao tema do pai (uma sombra pesada na vida de Hilda Hilst, a forte figura paterna e sua insanidade), cuja Presença (e por isso utilizo a maiúscula melodramática) como que se confunde com aquele deus, pai do Porco-Menino, tão esquivo, “La Oscura Cara” (e que às vezes se funde com a figura de Ehud); ademais, essa evocação do pai (e de Hillé e Ehud mais jovens) projeta a narrativa “urbana” para uma moldura mais rural, mais arcaica e recôndita (um fenômeno que também acontecerá em Com os meus olhos de cão):

“e então, pai?

então fui cortado em delicadíssimos pedaços

como cortamos a salada de acelga

sim, Hillé, é isso, um montículo de palha e terra, minúcias, salada de acelga, é bem isso, e o que foi a vida? uma aventura obscena, de tão lúcida.

Me deitei ao teu lado na tua agonia, escutei verdades e vazios…”

(…)

teu pé é bonito, Hillé, caminhou pouco mas sabe quase tudo

Os pés do pai, magros, brancos, algumas veias explodindo em azul. Alguns loucos ficam de pé, parados, horas e horas.

não ta cansado não?

A resposta não vem, o olhar um cinza esticado, longo, de repente um metal de ponta, seco, furante, um raivoso de garra, um nojo, duas aves se batendo, sangue no peito, nas unhas

é que os teus pés estão roxos, pai

puta, Hillé, igualzinha à mãe, esses tons afáveis escondem a bola negra da mentira, ah como parece delicada a avezinha, que pios, que penugem, que redondinho claro  esse olho dourado, mas lá dentro o fundo garreia o teu coração, exige o teu coração

por que ele diz isso, Ehud?

quem é que sabe o que vê

em mim?

nele, Hillé, nele

em mim, Ehud, na minha cara um estupor, um nunca compreender, um enrugado mole, olha como é a minha cara sem o teatro para o outro…”

   Bem, caro leitor, acho que já lancei alguma luz sobre o sombrio vão de escada onde Hillé vive sua Derrelição. Agora é a sua vez de explorá-lo. Certamente encontrará uma parte de mim vivendo ali há 30 anos.

(escrito especialmente para o blog)

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ANEXO

Em 1983, Hilda Hilst publicou Cantares de perda e predileção (Massao Ohno- M. Lydia Pires e Albuquerque Editores), uma de suas melhores obras.

Transcrevo  o primeiro poema:

“Vida da minha alma

Recaminhei casas e paisagens

Buscando a mim, minha tua cara.

Recaminhei os escombros da tarde

Folhas enegrecidas, gomos, cascas

Papéis de terra e tinta sob as árvores

Nichos onde nos confessamos, praças.

 

Revi os cães. Não os mesmos. Outros

De igual destino, loucos, tristes.

Nós dois, meu amor-ódio, atravessando

Cinzas e paredões, o percurso da vida.

 

Busquei a luz e o amor. Humana, atenta

Como quem busca a boca nos confins da sede.

Recaminhei as nossas construções, tijolos

Pás, a areia dos dias.

 

E tudo o que encontrei te digo agora:

Um outro alguém sem cara. Tosco. Cego.

O arquiteto dessas armadilhas.”

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E este outro:

“Faremos deste modo

Para que as mãos não cometam

Os atos derradeiros:

 

Envolveremos as facas e os espelhos

Nas lãs dobradas, grossas.

E de alongadas nódoas, o ressentimento.

 

Pintadas as caras num matiz de gesso

Recobriremos corpo, carne

Na tentativa cálida, multiforme

Na rubra pastosidade

 

De um toque sem sofrimento.

 

E afinal

Cara a cara (espelho e faca)

De nossa duplas fomes

Não diremos.”

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[1] A história editorial de A Obscena Senhora D é a seguinte: em 1982, saiu na aurática edição da Massao Ohno/Roswitha Kempf, com a capa vermelho-dourada de  Mora Fuentes (autor do texto na 4ª. capa) e com uma orelha de Caio Fernando Abreu. Uma das curiosidades dessa edição é que não há paginação.

Em 1986, ao lançar Com os meus olhos de cão pela Brasiliense (sua primeira editora mais “comercial”, por assim dizer),  para fazer um volume alentado, Hilda o juntou a outras “novelas” (que era o termo que resolveu utilizar então, após “ficções’, que eu acho mais acertado), entre elas Senhora D (e mais as três que compõem Tu não te moves de ti; Qadós; Floema).

Em 1993, ao publicar Rútilo nada pela editora Pontes, ela o juntou à Senhora D e Qadós (cheguei a comentar este lançamento em A TRIBUNA de Santos).

Em 2001, a Globo, ao assumir a publicação da obra de Hilda, publicou Senhora D tal como originalmente, em volume único.

[2] De todo modo, um dos textos mais bonitos escritos por Ribeiro (que faleceu em 2007). Quando será que organizarão uma antologia de suas matérias, pelo menos as da fase JT, as quais considero de grande valor?

[3]  Tu não te moves de ti  (Livraria Cultura Editora, 1980) foi o primeiro livro que comprei de Hilda Hilst, em 05 de junho de 1982. Depois que comecei a ler, corri para a mesma livraria e comprei Ficções (Quíron, 1977; até hoje minha edição  favorita dela) no dia seguinte, 06 de junho. Em1983, eu já teria uma primeira (mas não suficiente) lição sobre a falta de aura das edições, uma vez que descobri em São Paulo um lugar onde livros eram vendidos a quilo, e onde comprei vários exemplares de Ficções, do volume reunindo a Poesia de Hilda, e outras edições da Quíron, além de A Negação da Morte, de Ernest Becker, livro inspirador de A Obscena Senhora D, exemplares esses que foram desaparecendo ao longo dos anos: dados, emprestados e não devolvidos, e até surrupiados. Ainda bem que fiquei com um de cada (só não sobrou nenhum da edição da Nova Fronteira do livro de Becker).

[4] Essa visita se amplifica numa visão da vizinhança de Hillé e do falatório, que geralmente enfatiza o lado bufo da condição humana (ainda que, no discurso, todos exaltem “valores humanos”):

“… e as caretonas que exibe na janela, alguém tem o direito de assustar osotro assim?

he he Luzia, teu traseiro também assusta muita gente

teu cu também, tua faccia

tua boca repelente sem dente também

credo a vizinhança endoidou

olha a freira passando

olha o doutor com a madama dele

olha o cuzaço da madama do doutor…”

   Em outro trecho:

“É uma sapa velha. Viu a pele pintada? É sarda. Ainda tem umas boas tetas. Credo, teta de sapa. Podemos botar fogo na casa durante a lua nova. Com as casas quase coladas? Dá-se um jeito, fogaréu que vai dar gosto. O Nonô metido a demo, a polícia, tu sabe que vive enfiando prego no cu do gato, pois é, pois o Nonô se mijô quando viu a caretona dela na janela. Casa da porca…”

   Mais adiante, há um trecho em que a vizinhança comenta “pirações” alheias, e cuja conclusão vale como um dito popular definitivo: “passarinho que come pedra sabe o cú [sic] que tem”.

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17/04/2011

POEMAS: Rilke, Borges, Vicente de Carvalho, Bilac, Seferis, Jorge de Lima, Drummond, Carlos Nejar, Hilda Hilst…

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RAINER MARIA RILKE
Fragmentos  das ELEGIAS DE DUÍNO
O sentir em nós, ai, é o dissipar-se.
Exalamos nosso ser; e de uma a outra ardência
Nos desvanecemos. Alguma vez nos dizem:
Circulas no meu sangue, este quarto, a primavera
Estão cheios de ti. Inutilmente procuram nos reter
Evolamos. E aqueles que são belos, oh, quem os
Deteria? A aparência transita sem descanso em seu rosto
E se dissipa. Tal o orvalho da manhã
E o calor do alimento, o que é nosso
Flutua e desaparece. Ó sorrisos, para onde?
E tu, olhar erguido, fugitiva onda ardente e nova
Do coração? Ai de nós, assim somos.
Estará o mundo impregnado de nós, pois que
Nele nos perdemos? E os Anjos
Retomarão apenas o que deles emanou?
Talvez um pouco de humano se encontre às vezes
Em seus traços, como o vago no rosto das mulheres
grávidas? Eles porém nada percebem
No turbilhão da volta a si mesmos.”

“E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia
valer? Nem anjos nem homens.
E o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo
neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,
a árvore de alguma colina que podemos rever
cada dia; resta-nos a rua de ontem
e o apego cotidiano de algum hábito
que se afeiçoou a nós e permaneceu.
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços
do mundo desgasta-nos a face—a quem se furtaria ela,
a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o
coração solitário? Será mais leve para os que se amam?
Ai, apena ocultam eles, um ao outro, seu destino.
Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços
para os espaços que respiramos –talvez os pássaros
sentirão o ar mais dilatado, num vôo mais comovido.”
borges
O outro tigre (Jorge Luis Borges, El Hacedor)

Penso num tigre. A penumbra exalta
A vasta biblioteca laboriosa
E parece afastar suas estantes;
Forte, inocente, ensangüentado e novo,
Ele irá por sua selva e sua manhã
E deixará seu rastro na lodosa
Margem de um rio cujo nome ignora
(Não há em seu mundo nomes nem passado,
E nem porvir, só um instante determinado)
E vencerá as bárbaras distâncias,
Farejará no enleado labirinto
De todos os odores o da aurora
E o olor deleitável do cervo;
Em meio às riscas do bambu decifro
Suas riscas e pressinto a ossatura
Sob a pele esplêndida que vibra.
Debalde interpõem-se os convexos
Mares e desertos do planeta;
E desta morada de um remoto porto
Da América do Sul, te sigo e sonho,
Ó tigre das beiras do Ganges.
Corre a  tarde em minha alma e conjecturo
Que o tigre vocativo do meu verso
É um tigre de símbolos e sombras,
Uma série de tropos literários tropos- lugares comuns
E de reminiscências da enciclopédia,
Não o tigre fata, a aziaga jóia
Que sob o sol ou a cambiante lua,
Vai cumprindo em Sumatra ou em Bengala
Sua rotina de ócio, amor e morte.
A esse tigre dos símbolos opus
O verdadeiro, o de sangue quente,
O que dizima a manada de búfalos
E a três de agosto de 59 (Hoje),
Estende sobre o prado uma pausada
Sombra, mas só o fato de nomeá-lo
E de conjecturar-lhe a circunstância
Da arte o faz ficção e não a criatura
Vivente, dessas que andam pela Terra.
Procuraremos um terceiro tigre.
Este, como os demais, será uma forma
De meu sonho, um sistema de palavras
Humanas, não o tigre vertebrado
Que, para além dessas mitologias,
Percorre a Terra. Bem o sei, mas algo
Me impõe esta aventura indefinida,
Insensata e antiga, e persevero
Pelo tempo da tarde na procura
Do outro tigre, o que não está no verso.

NOITE DE SÃO JOÃO (de Fervor de Buenos Aires)
O poente implacável em esplendores
quebrou a fio de espada as distâncias.
Suave como um salgueiral está a noite.
Vermelhos faíscam
os redemoinhos das grandes fogueiras;
lenha sacrificada
que se dessangra em altas labaredas,
bandeira viva e cega travessura.
A sombra é aprazível como uma lonjura;
hoje as ruas lembram
que foram campo um dia.
Toda a santa noite a solidão rezando
seu rosário de estrelas esparramadas.
(trad. Glauco Mattoso)
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UMA IMPRESSÃO DE DON JUAN
(Vicente de Carvalho)
Gastei no amor vinte anos –os melhores,
Da minha vida pródiga: esbanjei-os
Sem remorso nem pena, nem galanteios,
Colhendo beijos, desfolhando flores.
Quentes olhares de olhos tentadores,
Suspiros de paixão, arfar de seios,
Conheci-os, buscaram-me, gozei-os…
Li, folha a folha, o livro dos amores.
Quanta lembrança de mulher amada!
Quanta ternura de alma carinhosa!
Sim, tanto amor que me passou na vida!
E nada sei do amor… Não, não sei nada,
E cada rosto de mulher formosa
Dá-me a impressão de folha inda não lida.
OlavoBilac
A VIA LÁCTEA (sétimo soneto)
Olavo Bilac
Não têm faltado bocas de serpentes
(Dessas que amam falar de todo o mundo
E a todo o mundo ferem, maldizentes)
Que digam: Mata o teu amor profundo!
Abafa-o, que teus passos imprudentes
Te vão levando a um pélago sem fundo…
Vais te perder! -E arreganhando os dentes
Movem para o teu lado o olhar imundo:
-Se ela é tão pobre, se não tem beleza
Irás deixar a glória desprezada
E os prazeres perdidos por tão pouco?
Pensa mais no futuro e na riqueza!
-E eu penso que afinal… Não penso nada:
Penso apenas que te amo como um louco!
ANTÍGONA
A terra treme. Rola o trovão. Brilha o espaço.
Chega Édipo a Colono, em andrajos, imundo,
Sombra ansiosa a fugir do próprio horror profundo,
Ruína humana a cair de miséria e cansaço.
Mas, quando o ancião vacila, órfão da luz do mundo,
Antígona lhe estende o coração e o braço,
E, filha e irmã, recolhe ao maternal regaço
O rei sem trono, o pai sem honra, moribundo.
É o ninho (a terra treme…) amparando o carvalho,
A flor sustendo o tronco! Édipo (o espaço brilha…)
Sorri, como um combusto areal bebendo o orvalho.
É o fim (rola o trovão…) da miseranda sorte:
O cego vê, fitando o céu do olhar da filha,
Na cegueira o esplendor, e a redenção na morte.
SEFERIS
Uma palavra sobre o verão
(Giorgios Seferis,  poeta grego, Nobel 1963)
Eis que voltou o outono. O verão
Como um caderno em que cansamos de escrever, lá fica
Cheio de riscos e garatujas,
De pontos de interrogação nas margens. Eis que voltou
A estação dos olhos que miram
Nos espelhos, sob as lâmpadas,
Lábios cerrados, homens estrangeiros
Nos quartos, nas ruas, sob as pimenteiras,
Enquanto os faróis dos carros matam
Milhares de máscaras macilentas.
Eis-nos de volta. Partimos para cada vez voltar
Na solidão, um punhado de terra em nossas mãos vazias.
E não obstante, amei outrora o bulevar Syngros,
A dupla curvatura da grande avenida
Que milagrosamente nos leva para o mar
Eterno a fim de que nos lavemos dos pecados.
Amei homens desconhecidos
Encontrados bruscamente ao cair do dia
Que falavam consigo mesmos como capitães de uma frota afundada,
Sinais de que o mundo é vasto.
E não obstante, amei as ruas daqui e estas colunas
Ainda que nascido na outra margem, junto
Das canas e dos juncos, das ilhas
Cuja areia guarda água para a sede
Do remador: ainda que nascido
Junto do mar que desenrolo e enrolo entre meus dedos,
Quando estou fatigado– não sei mais onde nasci.
Resta ainda a essência amarela, o verão
E tuas mãos roçando medusas na água,
Teus olhos abertos de repente, os primeiros
Olhos do mundo, e as grutas marinhas,
Pés desnudos no solo vermelho.
Resta ainda o efebo louro de pedra,o verão,
Um pouco de sal seco no oco de um rochedo,
Algumas agulhas de pinheiro após a chuva
Ruivas e dispersas como um filete em fiapos.
Não compreendo esses rostos, não os compreendo;
Imitam às vezes a morte e depois iluminam-se de novo
Com uma vida rasteira de vermes luzentes,
Com um esforço repuxado, sem esperança,
Como apertado entre duas rugas
Entre duas mesas de café gordurosas…
(…) Resta ainda o deserto amarelo, o verão,
Vagas de areia em fuga até o último círculo
Um ritmo de tambor lancinante, interminável
Olhos inflamados afundando no sol,
Mãos com ímpetos de pássaros riscando o céu
Saudando filas de mortos em duelos,
Perdidas num ponto que me ultrapassa e me governa,
Tuas mãos que tocam a onda livre.
(trad. Darcy Damasceno)
caricatura de jorge de lima
Anunciação & Encontro de Mira-Celi (quadragésimo poema)
(Jorge de Lima)
Quando sentires tua carne incendiar-se
e a labareda divina altear-se no ar,
desfralda tua bandeira neste tope*,
que logo virão dos quatro pontos cardeais
os conspiradores que precisas;
pois tua língua não pode continuar a que herdaste
nem os teus homens são os que hoje te cercam.
Antes que os tambores ensurdeçam teus ouvidos
e teu passo se cadencie num galope constante,
vê que a dor do mundo deseja redimir-se em teu canto.
É certo que te esmagarão como se esmaga uma asa.
Mas as penas que espalhares no chão
podem voar ao vento
e baixar com sua sombra mínima
sobre qualquer ovo perdido dentro dos ninhos abandonados.
Entre a noite e o mar visitarás de novo
os litorais desertos, e semearás teu pólen.
Hão de cair sobre ele as chuvas que lavam as tempestades,
e se os homens não quiserem ouvir-te,
ressurgirás para as abelhas ou para as solidões
em que Deus ouvirá as palavras do Início.
drummondclaro enigma
Relógio do Rosário (de Claro Enigma)
(Carlos Drummond de Andrade)
Era tão claro o dia, mas a treva,
do som baixando, em seu baixar me leva
pelo âmago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pânico do mundo,
que se entrelaça no meu próprio choro,
e compomos os dois um vasto coro.
Oh dor individual, afrodisíaco
selo gravado em plano dionisíaco,
a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,
dor primeira e geral, esparramada,
nutrindo-se do sal do próprio nada,
convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,
prelibando o momento bom de doer,
a invocá-lo, se custa a aparecer,
dor de tudo e de todos, dor sem nome,
ativa mesmo se a memória some,
dor do rei e da roca, dor da cousa
indistinta e universa, onde repousa
tão habitual e rica de pungência
como um fruto maduro, uma vivência,
dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
nas caudas titilantes, nos arminhos,
dor do espaço e do caos e das esferas,
do tempo que há de vir, das velhas eras!
Não é pois todo amor alvo divino,
e mais aguda seta que o destino?
Não é motor de tudo e nossa única
fonte de luz, na luz de sua túnica?
O amor elide a face… Ele murmura
algo que foge, e é brisa, e fala  impura.
O amor não nos explica. E nada basta,
nada é de natureza assim tão casta
que não macule ou perca sua essência
ao contato furioso da existência.
Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar de vida um vago indício,
a provar a nós mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.
Mas, na dourada praça do Rosário,
foi-se, no som, a sombra. O columbário
já cinza se concentra, pós de tumbas,
já se permite azul, risco de pombas.
carlosnejaro chapeu das estações
“o barulho de existir:
um cão dentro
de mim

atravesso
como a um pátio:
o barulho de existir

A CHUVA DO VELHO TESTAMENTO (trechos)
(Carlos Nejar, O chapéu das estações)
“Quis possuir a alma,
possuí-la um instante,
numa respiração
que a conjugasse
em suas potências
e fosse alma
em corpo atravessada.
Quis possuir a alma,
mas de súbito
é uma conspiração
de antigos súditos
que a obriga sucumbir.
E é luz varando luz
de inerte vinco.
Quis possuir a alma,
a rebelião mais pura
de ser Deus
no Deus que me conjura.
Quis possuir a alma
como se um arado empurrasse
na soga deste instante
o corpo amado
para o corpo amante.
Quis possuir a alma
e a vislumbrei inteira
e alheia corpo adentro
como se alguma barca
fosse somente vento”
“Fui condenado ao corpo.
Como isolar a alma,
se está morto?
Como isolar a alma
se ela é corpo
e sabe conluiar os elementos
de sua retração, seu desespero?
Mas o corpo transgride
onde fora trancado.
E é vivo o condenado,
mesmo se a alma já morreu
nos arredores.
Se o corpo não é seu,
a alma estende
a renitência a outras,
entre as formas do céu
e dos planetas.
Eu tive a rebelião
de ser um corpo.
Fui condenado a Deus,
a seu estado mais feroz,
aquele que, de amor,
as coisas tremem
e as vozes não conseguem separar.
Fui elevado ao corpo”
********************
Trecho de A árvore do mundo (do mesmo autor)
“O humano é custo,
empresa que se apresta
no deter
e detendo, cobra,.
E sobrando,
se gasta.
Mais preciso:
a parede do tempo
de estar vivo.
A parede sem nível
do possível.
Salvar? Mas estou salvo,
sou matéria.
Nenhum impedimento de subir,
exceto a condição de ser humano.
Mas esta é de romper.
Um osso, um plasma, uma epiderme,
o susto.
Quanto nos apanha, nos encerra
a popa de uma nau
que é apenas alma.”
hilda furacão hilst
HILDA HILST: Cantares de perda e predileção
“Vida da minha alma:
Recaminhei casas e paisagens
Buscando-me a mim, minha tua cara.
Recaminhei os escombros da tarde
Folhas enegrecidas, gomos, cascas
Papéis de terra e tinta sob as árvores
Nichos onde nos confessamos, praças
Revi os cães. Não os mesmos. Outros
De igual destino, loucos, tristes,
Nós dois, meu ódio-amor, atravessando
Cinzas e paredões, o percurso da vida.
Busquei a luz e o amor. Humana, atenta
Como quem busca a boca nos confins da sede.
Recaminhei as nossas construções, tijos
Pás, a areia dos dias
E tudo que encontrei te digo agora:
Um outro alguém sem cara. Tosco. Cego.
O arquiteto dessas armadilhas.”
Hilda_Hilst_01
HILDA HILST: ODES MÍNIMAS
“Perderás de mim
Todas as horas
Porque só me tomarás
A uma determinada hora
E talvez venhas
Num instante de vazio
E insipidez
Imagina-te o que perderás
Eu que vivi no vermelho
Porque poeta, e caminhei
A chama dos caminhos
Atravessei o sol
Toquei o muro de dentro
Dos amigos
A boca nos sentimentos
E fui tomada, ferisa
De malassombros, de gozo
Morte, imagina-te.”
 
 
 

06/02/2011

O ALTO, OS PÉS, O CU E O ESPELHO: “Com os meus olhos de cão”, 25 anos

Filed under: autores centrais — alfredomonte @ 14:19
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“Daqui onde estou posso ouvi-lo pensando da lucidez de um instante à opacidade de infinitos dias, posso ouvi-lo pensando nas diversas formas de loucura e suicídio. A loucura da busca, essa feita de círculos concêntricos e nunca chegando ao centro, a ilusão encarnada ofuscante de encontrar e compreender. A loucura da recusa, de um dizer tudo bem, estamos aqui e isto nos basta, recusamo-nos a compreender. A loucura da paixão, o desordenado aparentando ser luz na carne, o caos sabendo à delícia, a idiotia simulando afinidades. A loucura do trabalho e do possuir. A loucura do aprofundar-se depois olhar à volta e ver o mundo mergulhado em matança e vaidade, estar absolutamente sozinho no mais profundo. Amós está? Daqui onde estou posso ouvi-lo  pensando como devo matar-me? Ou como devo matar em mim as diversas formas de loucura e ser ao mesmo tempo compassivo e lúcido, criativo  e paciente, e sobreviver?”

(a resenha abaixo foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 08 de fevereiro de 2011)

Durante a maior parte da sua longa carreira, iniciada em 1950,  Hilda Hilst  (1930-2004) teve seus textos publicados por editoras obscuras—no sentido da distribuição e alcance comercial—e   pequenas (por exemplo, a Massao Ohno). Era uma grande escritora “invisível” para o público, apesar do seu prestígio e dos seus cultuadores.

Quando ganhava notoriedade, era sempre por aspectos folclóricos: sua chácara (a Casa do Sol) com dezenas de cachorros, suas gravações de vozes de mortos, os textos ostensivamente pornográficos que escreveu…

Em 1986, após alcançar o cume da criação literária contemporânea (nas palavras de Jorge Coli, e que eu subscreveria sem hesitação), com Odes mínimas (1980) e A obscena Senhora D (1982), Hilda teve seu primeiro lançamento por uma editora de peso comercial (à época), a Brasiliense. Era o inédito Com os meus olhos de cão,  reunido a textos mais antigos, e que no entanto passou em brancas nuvens. Nem dava para imaginar que, um quarto de século depois, haveria no mercado uma Coleção Hilda Hilst pela Globo (sob a responsabilidade de Alcir Pécora), esgotando sucessivas tiragens.

Nessa coleção, Com os meus olhos de cão ganhou um volume para si. Merecidamente. Trata-se de outro ponto alto da sua produção, cujo protagonista, Amós Keres, foi uma criança que fazia sempre perguntas incômodas, impressionado com a morte e a presença do sofrimento no mundo. Fortemente reprimido pelo pai autoritário, ele aos poucos calou em si essas perguntas, mergulhando no estudo da matemática, constituindo família, tornando-se professor universitário. Um dia, no alto de uma colina, ele tem uma visão epifânica e a partir daí ficarão esgarçadas todas as suas relações com um mundo mentiroso, sentimentalizado e complacente. Ele fica “alheio” nas aulas (os alunos se retiram e deixam recados jocosos na lousa), passa a sentir repulsa pela mulher e o filho, parece estar sempre com um sorriso desdenhoso (o que o mete em confusões) e a cabeça inclinada e seu único interlocutor é um amigo, Isaiah, que vive maritalmente com uma porca. Ao cabo, Amós decide voltar à casa da infância, com muito de rural ainda, e viver nos fundos do quintal, como um bicho, um ser desnudado, descobrindo também que o pai tinha os mesmos assomos de descortinamento do coração selvagem da vida: “que esforço para tentar não compreender, só assim se fica vivo, tentando não compreender”.

Não se pense que o texto é assim coeso, unívoco. Como sempre em Hilda Hilst, tudo vem numa forma agônica, emaranhada e intrincada, na qual todos os gêneros são misturados e a escatologia permeia todas as instâncias da condição humana (para se ter uma idéia, Amós Keres gostava de estudar matemática num puteiro), com a influência de Otto Rank & Ernest Becker de que vivemos sob o terror da morte e da nossa analidade “… Amós Keres. Inocente como um pequeno animal-criança olhando o Alto. Mas dizem que o Alto é o nada e é preciso olhar os pés. E o cu também. Com um espelho. Estou olhando. Impossível esquecer grotesco e condição”.

Plínio Marcos com Samuel Beckett. O leitor que se prepare, pois tem de estar disposto. Com essa obscena Senhora H, é tudo ou nada.

30/09/2010

Regurgitando um vulcão

 

VER TAMBÉM NO BlOG:

https://armonte.wordpress.com/2010/09/30/a-vida-sexual-bufonarizada-pelo-comentario-alheio/

https://armonte.wordpress.com/2010/09/30/cozido-narrativo-no-fim-do-mundo/

https://armonte.wordpress.com/2013/03/08/requiem-para-um-sonho-a-obscena-senhora-d-de-hilda-hilst/

   Depois que ganhou o Nobel de Literatura em 1989, o espanhol Camilo José Cela, que já tinha uma obra famosa (os romances A família de Pascual Duarte e A colméia) resolveu provar que continua em plena ebulição criativa. Tanta fúria criadora já rendeu alguns dos livros mais surpreendentes e inusitados dos últimos anos, como a coletânea de contos erótico-grotescos Saracoteios, tateios e outros meneios e o recém-lançado no Brasil (com tradução de Mário Pontes)A cruz de Santo André (La Cruz de San Andrés, 1994).

      Nele, aparentemente, Matilde Verdú (que anuncia para o leitor estar escrevendo em rolos de papel higiênico, e, por esse motivo, discorre sobre as qualidades e defeitos de várias marcas:  O melhor papel de privada, o melhor para escrever a crônica dos acontecimentos, é o La Condesita, quanto a isso não resta a menor dúvida, dá gosto ver como a história vai se debulhando com rigor e circunspeção; ou então: Aqui, nestes rolos de papel de privada marca El Gaitero Bucólico, vou narrando pelo método da regurgitação) contará a história de sua vida, ou melhor, de sua derrocada, como chama a crucificação junto ao marido, à qual se refere tantas vezes: Declaro que nem meu marido nem eu soubemos representar com um mínimo de competência, com a necessária dignidade, o difícil papel de justiçados na cruz de Santo André, às vezes caíamos na risada, pelo menos três vezes nos deu aquele frouxo de riso, e isso o bom espectador não perdoa, não levamos a sério e ensaiamos mal o nosso papel, e não conseguimos nunca memorizar e recitar as nossas falas, especialmente as longas.

      A estrutura do romance (e as citações de Shakespeare) parecem acentuar o aspecto teatral. Ele é dividido em cinco partes: Dramatis Personae, Argumento, Exposição, Nó, Desenlace. Parece tudo certinho, não? Doce ilusão, leitor. Nada mais emaranhado  e decididamente regurgitado do que A cruz de Santo André. Matilde Verdú vai se orientando, e nos desorientando.  Isso acontece porque ela, ao anunciar que está contando a história de sua vida, acaba é contando a história de conhecidos,  de parentes, de amigos, de gente da sua terra natal, La Coruña. Histórias bufas, deformantes, bizarras, escatológicas, na mesma linha do delicioso Saracoteios, tateios e outros meneios, só que com uma carga mais dramática. Dessa vez não existe só a enxurrada sexual, tudo é permeado também  pela irremediável  mistura de tragédia e miséria  da nossa existência.

      Matilde parte do individual, anunciando sua história (Matilde Verdú às vezes se sente gelada com as suas próprias recordações, algumas são muito tristes, muito angustiantes,  e de tão estranhas, não dá para esquecer coisa nenhuma delas,  é um caso em que não pode haver  desperdício,  é como o boi abatido no matadouro,  dele tudo se aproveita), passa a falar da condição das mulheres em geral (para a mulher o cabelo  é o que há de mais importante, renunciar a ele é o mesmo que se enforcar, ou tomar um vidro inteiro de soníferos ou praticar  o haraquiri), e, progressivamente, da condição humana,  num tom quase shakesperiano (em julho de 1969, o homem  chegou à Lua,  podendo assim alargar o âmbito das suas necessidades, o homem não sabe governar nem pacificar, nem alimentar a Terra, também não sabe curar nem o câncer nem a Aids, naquela época ainda não se falava de Aids, mas é capaz de acertar com o caminho da Lua, dilatando cada vez mais o vergonhoso horizonte do seu orgulho estúpido) , embora numa clave irreverente. Esse tom não é gratuito, pois não foi à toa que na Espanha do Século de Ouro se desenvolveu um grande teatro.

     O impressionante no livro, mais do que a narrativa enovelado, enrolada em si mesma, sempre às voltas com os mesmos fatos, é que o leitor nunca tem acesso ao interior das personagens, eles são sempre vistos de fora, como a opinião pública os vê, jamais têm uma chance de mostrar um lado melhorzinho, menos ridículo. Como o estilo de Cela hipertrofia essa tendência ao exagero bufo, nós temos a impressão de dar uma espiada no inferno, onde todos os que estão mergulhados na vida quotidiana ardem.

        O texto que me vinha à cabeça durante a leitura como termo de comparação para A cruz de Santo André era sempre A obscena Senhora D (1982), de Hilda Hilst, também uma mistura de verve irreverente, de escatologia e de documento de uma solidão desamparada e aterradora.

      Hillé, a Senhora D da escritora paulista, compreenderia muito bem o sentimento expresso no seguinte trecho do relato de Matilde Verdú: Eu sou apenas uma dona amargurada por tudo ter me saído mal nesta vida, e o provável é que na outra as coisas me saiam ainda piores, sou apenas uma doente que começa a envelhecer e que não aprendeu a suportar a solidão, me sinto sozinha e meio maldita, sinto o dedo de Deus apontando para mim, peço perdão por não ter mais saída,  gostaria que alguém me ajudasse a dar mais vida à minha existência vazia, mas sei que isso é o mesmo  que pedir um copo d´água a uma pêra…).

     Camilo José Cela tanto se esforça em mudar,  em ampliar seu horizonte criador, seu mundo de formas, tanto injeta nos seus textos sua energia desmedida, sua vontade de sacudir a pasmaceira do leitor, sua convicção em querer ser um grande escritor que às vezes acaba convencendo a gente de que ele é mesmo grande. Difícil saber ainda (pelo menos, a meu ver) se ele o é de fato, é como querer analisar um vulcão em plena erupção. E essa analogia com um vulcão permite pelo menos um elogio provisório: é um fenômeno digno de admiração.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em  primeiro de março de 1997)

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