GÜNTER GRASS, AUTOR DE GRANDES ROMANCES
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 05 de outubro de 1999)
Com certo atraso o Nobel foi concedido a Günter Grass, o que já deveria ter acontecido na década de 1970. É só lembrar que, em 1972, o premiado foi Heinrich Böll, um ótimo autor (Casa sem dono, por exemplo), mas que está para Grass como o rio Tietê para o Amazonas.
Grass é um criador de vastidões. Nos seus grandes romances convergem fábula, alegoria, farsa, poesia, um extremado senso do cômico que há na vida, tudo para tornar o texto de ficção mais maleável e abrangente como meio de desvendar os tormentos e dilemas de nossa época. De fato, se há uma ficção abrangente na nossa época é a do extraordinário autor alemão. Ficção crítica, demolidora, ferozmente anti-establishment.
O sucesso do seu primeiro romance (para muitos, ainda o melhor), O tambor (titulo nacional para O tambor de lata) surpreendeu-o: “Eu não tinha contado com o fato de que alguém no centro-oeste dos EUA ou no sul da França ou na Escandinávia pudesse interessar-se pelo ranço pequeno-burguês no período de transição da república de Weimar para o nazismo”.
Infelizmente, num curto espaço, é impossível comentar pormenorizadamente os próprios textos, uma vez que Grass escreve livros caudalosos, com geralmente 700 páginas.
O tambor de lata integra uma trilogia, cuja referência fundamental é a cidade de Dantzig—que atualmente chama-se Gdansk (Grass nasceu lá, em 1927). Os outros títulos da trilogia são Gato e rato (publicado em 1961 e que, para os padrões guntergrassianos, é um livro minúsculo: pouco mais de cem páginas de implacável densidade) e Anos de cão (1963), provavelmente sua obra-prima suprema, pelo menos entre os livros que chegaram a ser publicados no Brasil; segundo George Steiner, é uma fábula “que gira em torno da irmandade de sangue e amor-ódio do nazista e do judeu”. Para o autor de Linguagem e silêncio, “Grass entendeu que nenhum escritor alemão depois do Holocausto poderia aceitar a língua pelo seu valor nominal. O nazismo fora o discurso do inferno. Então ele se pôs a rasgar e derreter; despejou palavras, dialetos, frases, lugares-comuns, slogans, trocadilhos e citações no cadinho. Saíram como lava ardente. A prosa de Grass tem uma energia torrencial e viscosa; está cheia de escombros e fragmentos acres. Marca e machuca a paisagem deixando bizarras e eloquentes formas (…) Isso acontece porque Grass é decididamente um ´não-literário´, porque lida com convenções literárias com a despreocupada ingenuidade de um artesão. Ele chegou à linguagem verbal vindo da pintura e da escultura. É indiferente aos argumentos e expectativas bem tecidas da moderna teoria literária”.
Grass recusa a herança literária deixada por um Thomas Mann ou um Hermann Hesse e valoriza sobretudo, entre os grandes autores alemães da primeira metade do século, Alfred Döblin (Berlim Alexanderplatz). Sua obra continua uma prática de ferocidade literária que pode ser encontrada não só em Döblin como também em Céline. Seus livros são sempre “viagens ao fim da noite”.
Um risco que ele correu, na década de 1970, foi o de ficar datado, de ficar emparedado na vanguarda da reconstrução da Alemanha marcad a pela Guerra Fria. Em 1977, ele provou que tinha fôlego e vitalidade para várias épocas. Publicou O linguado, um dos romances que o autor deste artigo mais ama. Tanto que, ao propor nesta coluna semanal uma lista de 100 maiores romances do século XX, colocou-o como representante da obra de Grass, caracterizando-o da seguinte forma: os apetites básicos da humanidade (comida, sexo) transformados numa mistura maravilhosa de fábula, conto de fada e alegria, que conduz uma instigante reflexão sobre o poder subterrâneo das mulheres ao longo da história.
A própria estrutura de O linguado homenageia as mulheres, pois acompanha os nove meses de uma gestação.
Depois de O linguado, por duas vezes Grass sacudiu fortemente a sociedade alemã com romances poderosos e polêmicos: em 1986, com A ratazana, que utiliza uma imagem de sobrevivência asquerosa e que pressagia catástrofes (os ratos) para julgar a Alemanha que se consolidara novamente como potência europeia e mundial (a certa altura, a ratazana-narradora afirma: “Nós, apertadas notas de rodapé do homem, seu comentário exuberante! Nós, indestrutíveis”); e, em 1995, com o sensacional Um campo vasto (publicado aqui no ano passado), o qual, juntamente com O teatro de Sabbath, de Philip Roth, parece ser o romance mais importante dos derradeiros anos do século. Nele, satiriza-se a unificação das duas Alemanhas, a partir da queda do muro de Berlim.
Salvo engano, além dos já citados, O tambor de lata, O linguado, A ratazana (Nova Fronteira), Gato e rato (Labor), Anos de cão (Rocco) e Um campo vasto (Record), apenas mais dois livros do Nobel de 1999 foram publicados no Brasil: há uma edição mais antiga e fora de circulação de Anestesia local (Globo); e uma, bem mais recente, de Maus presságios, que foi traduzido para a Siciliano a partir de uma versão em espanhol!!!???
A premiação de Grass vem coincidir também com o lançamento de Romance de formação em perspectiva: O tambor de lata de Günter Grass, de Marcos Vinicius Mazzini (Ateliê Cultural), um estudo daquele que permanece a sua obra paradigmática, que graças ao Nobel deverá entrar em circulação novamente (espera-se). O que é muito bom. Mais gente conhecendo seu livro, o genial autor alemão ficará livre da sombra da medíocre versão cinematográfica que extraíram (ou extorquiram) dele.
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