MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

03/10/2013

A VASTIDÃO GÜNTER GRASS

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GÜNTER GRASS, AUTOR DE GRANDES ROMANCES

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 05 de outubro de 1999)

Com certo atraso o Nobel foi concedido a Günter Grass, o que já deveria ter acontecido na década de 1970. É só lembrar que, em 1972, o premiado foi Heinrich Böll, um ótimo autor (Casa sem dono, por exemplo), mas que está para Grass como o rio Tietê para o Amazonas.

Grass é um criador de vastidões. Nos seus grandes romances convergem fábula, alegoria, farsa, poesia, um extremado senso do cômico que há na vida, tudo para tornar o texto de ficção mais maleável e abrangente como meio de desvendar os tormentos e dilemas de nossa época. De fato, se há uma ficção abrangente na nossa época é a do extraordinário autor alemão. Ficção crítica, demolidora, ferozmente anti-establishment.

O sucesso do seu primeiro romance (para muitos, ainda o melhor), O tambor (titulo nacional para O tambor de lata) surpreendeu-o: “Eu não tinha contado com o fato de que alguém no centro-oeste dos EUA ou no sul da França ou na Escandinávia pudesse interessar-se pelo ranço pequeno-burguês no período de transição da república de Weimar para o nazismo”.

Infelizmente, num curto espaço, é impossível comentar pormenorizadamente os próprios textos, uma vez que Grass escreve livros caudalosos, com geralmente 700 páginas.

O tambor de lata integra uma trilogia, cuja referência fundamental é a cidade de Dantzig—que atualmente chama-se Gdansk (Grass nasceu lá, em 1927). Os outros títulos da trilogia são Gato e rato (publicado em 1961 e que, para os padrões guntergrassianos, é um livro minúsculo: pouco mais de cem páginas de implacável densidade) e Anos de cão (1963), provavelmente sua obra-prima suprema, pelo menos entre os livros que chegaram a ser publicados no Brasil; segundo George Steiner, é uma fábula “que gira em torno da irmandade de sangue e amor-ódio do nazista e do judeu”. Para o autor de Linguagem e silêncio, “Grass entendeu que nenhum escritor alemão depois do Holocausto poderia aceitar a língua pelo seu valor nominal. O nazismo fora o discurso do inferno. Então ele se pôs a rasgar e derreter; despejou palavras, dialetos, frases, lugares-comuns, slogans, trocadilhos e citações no cadinho. Saíram como lava ardente. A prosa de Grass tem uma energia torrencial e viscosa; está cheia de escombros e fragmentos acres. Marca e machuca a paisagem deixando bizarras e eloquentes formas (…) Isso acontece porque Grass é decididamente um ´não-literário´, porque lida com convenções literárias com a despreocupada ingenuidade de um artesão. Ele chegou à linguagem verbal vindo da pintura e da escultura. É indiferente aos argumentos e expectativas bem tecidas da moderna teoria literária”.

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Grass recusa a herança literária deixada por um Thomas Mann ou um Hermann Hesse e valoriza sobretudo, entre os grandes autores alemães da primeira metade do século, Alfred Döblin (Berlim Alexanderplatz). Sua obra continua uma prática de ferocidade literária que pode ser encontrada não só em Döblin como também em Céline. Seus livros são sempre “viagens ao fim da noite”.

Um risco que ele correu, na década de 1970, foi o de ficar datado, de ficar emparedado na vanguarda da reconstrução da Alemanha marcad a pela Guerra Fria. Em 1977, ele provou que tinha fôlego e vitalidade para várias épocas. Publicou O linguado, um dos romances que o autor deste artigo mais ama. Tanto que, ao propor nesta coluna semanal uma lista de 100 maiores romances do século XX, colocou-o como representante da obra de Grass, caracterizando-o da seguinte forma: os apetites básicos da humanidade (comida, sexo) transformados numa mistura maravilhosa de fábula, conto de fada e alegria, que conduz uma instigante reflexão sobre o poder subterrâneo das mulheres ao longo da história.

A própria estrutura de O linguado homenageia as mulheres, pois acompanha os nove meses de uma gestação.

Depois de O linguado, por duas vezes Grass sacudiu fortemente a sociedade alemã com romances poderosos e polêmicos: em 1986, com A ratazana, que utiliza uma imagem de sobrevivência asquerosa e que pressagia catástrofes (os ratos) para julgar a Alemanha que se consolidara novamente como potência europeia e mundial (a certa altura, a ratazana-narradora afirma: “Nós, apertadas notas de rodapé do homem, seu comentário exuberante! Nós, indestrutíveis”); e, em 1995, com o sensacional Um campo vasto (publicado aqui no ano passado), o qual, juntamente com O teatro de Sabbath, de Philip Roth, parece ser o romance mais importante dos derradeiros anos do século. Nele, satiriza-se a unificação das duas Alemanhas, a partir da queda do muro de Berlim.

Salvo engano, além dos já citados, O tambor de lata, O linguado, A ratazana (Nova Fronteira), Gato e rato (Labor), Anos de cão (Rocco) e Um campo vasto (Record), apenas mais dois livros do Nobel de 1999 foram publicados no Brasil: há uma edição mais antiga e fora de circulação de Anestesia local (Globo); e uma, bem mais recente, de Maus presságios, que foi traduzido para a Siciliano a partir de uma versão em espanhol!!!???

A premiação de Grass vem coincidir também com o lançamento de Romance de formação em perspectiva: O tambor de lata de Günter Grass, de Marcos Vinicius Mazzini (Ateliê Cultural), um estudo daquele que permanece a sua obra paradigmática, que graças ao Nobel deverá entrar em circulação novamente (espera-se). O que é muito bom. Mais gente conhecendo seu livro, o genial autor alemão ficará livre da sombra da medíocre versão cinematográfica que extraíram (ou extorquiram) dele.

VER TAMBÉM NO BLOG

https://armonte.wordpress.com/2013/10/03/um-campo-vasto-a-implacavel-visao-de-gunter-grass-da-unificacao-das-alemanhas

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UM CAMPO VASTO: a implacável visão de Günter Grass da unificação das Alemanhas

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GÜNTER GRASS MERECE O NOBEL

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 de outubro de 1998)

É lamentável que Günter Grass seja ainda mais conhecido no Brasil pela adaptação medíocre que Völker Schlondorff (um contumaz assassino de obras literárias no cinema) fez de seu primeiro romance, O tambor (na verdade, O tambor de lata). O descaso é tão grande que um de seus últimos livros, Maus presságios, foi traduzido a partir de uma versão espanhola !!!??

Espera-se que UM CAMPO VASTO (Ein Weites Feld, Alemanha-1995, em tradução de Lya Luft) modifique essa situação, o que nem a publicação de obras-primas como O linguado e Anos de cão conseguiu. Trata-se, porém, de um romance difícil, que satiriza a unificação das Alemanhas. Para isso, Grass utiliza um recurso que dificultará a vida do leitor brasileiro: sobrepõe ao seu personagem principal, Théo Wutke a figura do escritor (do século passado) Theodor Fontane, totalmente desconhecido por aqui (inclusive pelo autor deste artigo). Wutke tem a mania de citar o “Imortal” (Fontane) e muitas vezes confunde as duas vidas de forma que uma parece ser a modernização dos eventos da outra.

Por que a escolha de Fontane? Porque ele escreveu, entre outras coisas, vários livros sobre as guerras que “unificaram” a Alemanha nos oitocentos e possibilitaram a criação dos “Reichs” que levaram a Europa às guerras mundiais.

A narrativa, feita por arquivistas do Instituto Fontane, começa a partir da queda do muro de Berlim (e também da comemoração dos 70 anos de Wutke), prosseguindo por dois anos, nos quais os ocidentais vão sucateando a Alemanha Oriental, dentro da lógica nefasta do processo neoliberal e globalizante. Por outro lado, através dos embates de Wutke e de Hoftaller—uma espécie de eterno conspirador, sempre ligado ao poder (e que possui informações comprometedoras sobre Wutke & família—relembram-se os anos em que as Alemanhas existiram separadas pelo muro (mas será que a Alemanha não esteve sempre separada por coisas menos concretas e entretanto igualmente coercitivas?).

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É um painel esplêndido, complexo, saboroso, mesmo para quem nunca leu uma linha de Fontane na vida (a edição brasileira poderia ter ajudado, com um trabalho mais sério de notas de rodapé). Um romance de ideias maravilhoso, no qual o passado e o presente se interpenetram de forma sempre notável (e, para observar esse processo, não é preciso ter lido Fontane, basta apenas ter lido outras obras de Grass onde o tempo é tratado de forma especialíssima, basta lembrar de O linguado e A ratazana).

Para quem achar que a situação tratada em UM CAMPO VASTO é muito particularizada para nos interessar, é bom lembrar que a Alemanha teve um papel preponderante nos rumos do mundo no último século e tudo que acontece ali nos diz respeito, portanto. Além disso, a relação Wutke-Hoftaller lembra, em diversas ocasiões, a clássica relação Quixote-Sancho Pança, o idealismo debatendo com o pragmatismo (aliás, Wutke lembra às vezes o nosso Policarpo Quaresma, da obra-prima de Lima Barreto). E, como diz o próprio Wutke à sua neta francesa, “os alemães têm tendência e até talento para a obra de arte total”.

E, claro, em toda “obra de arte total” há sempre os momentos marcantes, que ficarão para sempre na memória. Um deles, em UM CAMPO VASTO, é patético, e também mordaz: Wutke e Hoftaller visitam uma famosa ponte havia troca de “espiões” e “reféns” de ambos os lados, e ali ficam “brincando de troca”: “Ora Fonty [Wutke] era o objeto oriental trocado por algum refém ocidental, depois Hoftaller vinha a passo do lado oriental, enquanto Fonty deixava atrás de si o Ocidente, até ambos estarem na mesma altura, por um segundo congelados num instantâneo, sem olhar, sem falar, para logo depois, a passo, voltar a se aproximar do outro sistema, da potência mundial, do inimigo mortal e da garantia de segurança, do inimigo da classe ou do perigo vermelho, entregando-se ao seu próprio lado. Um jogo com poucas variações. Fonty por Hoftaller. Hoftaller por Fonty. Ambos se equivaliam. Um não existia sem o outro. Jogava-se com a mesma aposta, para ambos a ponte Glienecke era longa como um pesadelo. Como ocorre depois de um exercício muito prolongado, a tensão caía, e afinal ocorreram-lhe algumas variantes: Fonty, o que vinha do frio, piscava o olho direito assim que estavam lado a lado, e Hoftaller, que estava sendo entregue pelo inimigo da classe, piscava o olho esquerdo. Por fim, na hora da troca os dois agentes até diziam uma palavrinha…”

Depois desse extraordinário e vasto campo onde jogou o leitor do final do século, só se pode esperar que a justiça seja feita e que Günter Grass seja o próximo Nobel de literatura.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/10/03/a-vastidao-gunter-grass/

https://armonte.wordpress.com/2013/09/12/contrariando-os-atestados-de-obito-do-romance-a-casa-de-puchkin/

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27/12/2009

Em relação ao século XX: 100, 75, 50, 25 anos de obras e autores

[Juan Carlos Onetti]

{Eugene Ionesco}

[Norberto Bobbio]

[Selma Lagerlöf]

100 anos- Em 2009, a escritora alemã Herta Müller ganhou o Nobel. Exatamente cem anos atrás, a sueca Selma Lagerlöf (1858-1940) tornava-se a primeira mulher a receber o prêmio. Não conheço muito bem sua obra,  só li algumas histórias de De saga em saga, uma coletânea que aparece numa coleção dos premiados com o Nobel, porém há um ensaio excelente de Marguerite Yourcenar sobre ela em Notas à margem do tempo, e que nos faz vislumbrar um universo fascinante.

    No mesmo ano em que a autora de A saga de Gösta Berlings (seu livro mais conhecido) se tornava a pioneira de uma lista ainda muito pequena, nascia na Romênia natal de Herta Müller um dramaturgo originalíssimo, que faria parte do chamado “teatro do absurdo”: Eugene Ionesco, de A cantora careca, Os rinocerontes; A lição; e, no Uruguai, um dos prosadores que mais mereceriam o Nobel no século XX: Juan Carlos Onetti, com obras do calibre de A vida breve, O estaleiro & Junta-Cadáveres, e que forma, com o argentino Jorge Luis Borges e o mexicano Juan Rulfo a santíssima trindade da ficção hispano-americana.

      Também em 1909, nascia o grande pensador italiano Norberto Bobbio, autor dos ensaios maravilhosos reunidos em Nem com Marx, nem contra Marx. E na Letônia nascia o luminoso Isaiah Berlin (que faria carreira na Inglaterra), o autor de Pensadores russos, um pensador que gostava mais de escrever ensaios do que preparar “livros”.  E naquele ano, Lima Barreto lançava seu libelo anti-racista que também, e principalmente, é um poderoso romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha.

75 anos- De 1934, gostaria de destacar dois romances essenciais: o maior livro de Graciliano Ramos, São Bernardo (ser o melhor livro de um escritor como Graciliano é um fato por si só notável; para mim, aliás, os maiores romances brasileiros do século passado são Grande sertão: veredas; A maçã no escuro; São Bernardo  & Triste fim de Policarpo Quaresma); e o terrível e avassalador Morte a crédito, de Louis-Ferdinand Céline (que talvez seja até maior do que sua obra-prima anterior, Viagem ao fim da noite). Vidas secas e cheias de angústia no Nordeste e na França. A vida lembrada, cá e lá, como memórias do cárcere

[raymond chandler]

50 anos- É difícil escolher o acontecimento literário supremo de 1959, ano em que morria o grande Raymond Chandler, pois nesse ano iniciavam suas carreiras gloriosas nomes como Günter Grass, com O tambor de lata, certamente um dos maiores romances já escritos; os outros não começaram já nesse patamar: Philip Roth (Adeus, Columbus), Vargas Llosa (Os chefes) e Dalton Trevisan (Novelas nada exemplares). O único título comparável em magnitude ao de Grass talvez seja O almoço nu, que revelou o universo muito peculiar de William Burroughs, mas cuja legibilidade maior foi possível graças à notável versão cinematográfica de David Cronemberg (a versão de O tambor nada tem de notável). Mesmo assim, um romance cinquentenário pelo qual tenho um carinho especial é Um cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller Jr, merecidamente um clássico da ficção científica, mas que não se restringe a um “livro de gênero”. Na área de contos, é difícil pensar num título mais importante do que As armas secretas, de Cortázar, não só por causa da sua qualidade literária (o meu favorito é “Cartas da mamãe”, mas o mais considerado é “O perseguidor”, baseado na vida de Charlie Parker), como pela sua influência na literatura dos anos 60 e 70: basta lembrar que “As babas do diabo” foi a inspiração de Antonioni para seu Blow up (1968). Também não se pode esquecer a irreverência, a jovialidade e o trato de linguagem de Zazie no metrô, a obra-prima de Raymond Queneau.

     Em 1959, Jean-Paul Sartre dedicou-se a escrever um roteiro imenso (depois não utilizado, naquela época não existiam as produções para a tv a cabo, não existia a HBO; mesmo assim, Sartre resmungou que as pessoas tinham paciência para ver quatro horas da vida de Ben-Hur e não tinham para ver a vida do criador da psicanálise) sobre a vida de Freud para John Huston. O filme é ótimo, mas o texto de Sartre não fica atrás: Freud, além da alma; o marcante romancista português Vergílio Ferreira lançou sua obra mais famosa, o difícil porém importante Aparição; e há quem ache uma obra-prima (não é o meu caso) Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, ainda assim um livro que se deve levar em conta. Em todo caso, eu prefiro o folhetinesco Asfalto selvagem, as deliciosas desventuras em série de Engraçadinha, uma das grandes criações de Nélson Rodrigues

25 anos- Em 1984, morriam tanto Cortázar quanto outro autor genial, Truman Capote, cujo inacabado romance Súplicas atendidas foi lançado no Brasil este ano pela L&PM, e que prova o incrível trabalho feito pela sua alcoólica mãe (que tinha vergonha da homossexualidade do filho) para lhe incutir culpa e autodesprezo. Numa vertente gay oposta, de eliminação de toda essa automortificação, temos um clássico da nossa ficção recente, Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, um romance paródico, inventivo e infelizmente pouco conhecido, assim como Democracia, da norte-americana Joan Didion, e até mesmo O ano da morte de Ricardo Reis, o menos popular (e o melhor) José Saramago. Muito conhecido, pelo contrário, e igualmente notável é O amante, de Marguerite Duras.

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25 anos- Em 1984, morriam tanto Cortázar quanto outro autor genial, Truman Capote, cujo inacabado romance Súplicas atendidas foi lançado no Brasil este ano pela L&PM, e que prova o incrível trabalho feito pela sua alcoólica mãe (que tinha vergonha da homossexualidade do filho) para lhe incutir culpa e autodesprezo. Numa vertente gay oposta, de eliminação de toda essa automortificação, temos um clássico da nossa ficção recente, Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, um romance paródico, inventivo e infelizmente pouco conhecido, assim como Democracia, da norte-americana Joan Didion (sempre cito uma de suas frases, “ninguém está isento do movimento geral”, e sua heroína, Inez Christian Victor, é como se fosse uma amiga pessoal), e até mesmo O ano da morte de Ricardo Reis, o menos popular (e o melhor) José Saramago. Muito conhecido, pelo contrário, e igualmente notável é O amante, de Marguerite Duras, a qual justamente em 1959 havia escrito o mais belo dos roteiros em hiroshima, meu amor, dirigido por Alain Resnais.

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