(aproveitando o lançamento de uma edição comemorativa dos 75 anos de Angústia, reproduzo abaixo uma resenha-homenagem publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 18 de março de 2003)
Dos cinco maiores autores brasileiros de ficção (Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Graciliano Ramos e Lima Barreto), o único que nunca tinha sido comentado nesta coluna era o criador de Vidas Secas. O cinqüentenário da sua morte (ocorrida em 20 de março de 1953) é propício para reparar essa falta.
Graciliano demorou a publicar. Apesar de trabalhar desde meados da década de 20 em Caetés, só deixou que o lançassem em 1933, já quarentão. Esse primeiro romance está longe de ser desinteressante (e ainda aguarda uma revisão), mas é aquele tipo de livro que aqui sempre chamo de “mal amado”, que geralmente só é lido e estudado em função do conjunto da obra.
Tudo muda (e como muda!) com São Bernardo, publicado no ano seguinte. Talvez seja o seu melhor livro (pelo menos, para mim, é o meu favorito) e já mostra que ele seria um dos grandes experimentadores da técnica narrativa (o que nada tem a ver com mero formalismo) no Brasil. Fôssemos menos periféricos, teria o mesma influência e impacto da obra de um Faulkner, por exemplo.
Narrado em primeira pessoa, é um exercício em que o vivido e o narrado se amalgamam e se contradizem de uma forma que só comporta comparação com Dom Casmurro, com o qual compartilha o tema do ciúme: o impulso açambarcador do protagonista, Paulo Honório, que o faz apossar-se da propriedade que dá titulo ao romance, arrefece diante da resistência (para ele, enigmática) de sua esposa, Madalena, cujo suicídio o arrasta para a inércia e o desamparo existencial, que fazem o latifundiário, ao se tornar narrador, tentar atar os fios da sua vida.
Apesar de, em aparência, perseverar no uso da primeira pessoa em seu romance seguinte, Angústia (1936), o gênio de Graciliano se radicaliza e faz uma experiência assombrosa com o fluxo de consciência através do protagonista, Luís da Silva, o qual assassina co uma corda o sujeito que engravidara sua vizinha (e por um tempo noiva), Marina. É um livro difícil, pois no discurso do narrador passado, presente, percepção da realidade (uma realidade muito sombria, a do Estado Novo) e alucinação expressionista se misturam. Poucas vezes se usou o chamado tempo psicológico (para diferenciar do tempo cronológico) de forma tão incrível e espessa.
Há em Angústia uma visão mutilada do ser humano: os personagens sempre aparecem com um aspecto físico hipertrofiado, como se fossem constituídos de fragmentos enormes e ameaçadores, como a mulher grávida que Luís da Silva encontra na rua e cujo ventre parece metamorfosear-se num monstro que engole toda a cidade de Maceió.
Nós encontraremos as raízes dessa visão no relato autobiográfico Infância (1945), uma obra-prima e que, em seu gênero, só encontra similar em As palavras (1964), de Jean-Paul Sartre. Trata-se de um texto terrível, e suas conseqüências mais óbvias aparecem na história de Luís da Silva, que aproveita vários episódios e figuras da infância real de Graciliano.
Depois de São Bernardo e Angústia, e antes de Infância (o resto da obra do extraordinário escritor alagoano não chega a esse nível de realização literária, mesmo o pungente e severo relato da sua prisão, Memórias do cárcere, que o autor deste artigo confessa nunca ter chegado a ler inteiro), mais uma obra-prima, provavelmente a mais perfeita entre as escritas no Brasil: Vidas Secas (1938).
O grande feito de Graciliano nesse romance “desmontável” (ou seja, os capítulos podem ser lidos como contos independentes) é o uso que faz do discurso indireto livre: ao abordar, numa narração em terceira pessoa, a introspecção de gente que, além de miserável, se debate num vácuo de linguagem, ele consegue uma convincente, exata e ainda insuperada interseção entre a narrativa culta e seus personagens rústicos. Além disso, e qualquer pessoa que leu o texto concordará, não há personagem animal mais inesquecível do que a cadelinha Baleia. O capítulo em que seu dono resigna-se a matá-la é uma das poucas coisas que legitimamente arrancam lágrimas de um verdadeiro leitor. A sua releitura sempre me nos ensina o que significa de fato a palavra comovente.
A respeito disso, Antônio Cândido resumiu de forma definitiva (para variar): [Graciliano é] “um dos raros cuja alta qualidade parece crescer à medida que o relemos. E como costumava dizer Alfredo Mesquita, a releitura é quase sempre fatal para a maioria absoluta da narrativa ficcional brasileira”.