MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

28/03/2013

O INCOMENSURÁVEL

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O Fausto quinhentista, o qual se lamentava por ser apenas “ainda um homem”, era tentado a pactuar com o Diabo para obter poderes mágicos: “Oh, dai-me algumas provas de magia/Que eu possa conjurar num bosque espesso/E plena posse tenha de tais bens”, podemos ler na História Trágica do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe.

240 anos depois, no ápice da lenda em sua feição literária, no quinto ato da Segunda Parte do Fausto de Goethe, o herói, pouco antes da sua conversa com a Apreensão (Sorge), num solilóquio que marca o começo do fim do seu pacto, diz: “Pudesse eu rejeitar toda a feitiçaria/Desaprender os termos de magia/ Só homem ver-me, homem só, perante a Criação/ Ser homem valeria a pena, então. // Era-o antes que as trevas explorasse/ Blasfemo, o mundo e o próprio ser amaldiçoasse/ Hoje o ar está de espíritos tão cheio/ Que não há como opor-se a seu enleio”.

Um longo percurso. Da lenda e da sua elaboração literária. Da peça de Goethe, que ele começou a elaborar na juventude e concluiu no ano da sua morte, já octogenário (a primeira parte apareceu na íntegra em 1808). Da tradução de Jenny Klabin Segall, que (numa sincronia apreciável com o lançamento da obra de Marlowe pela Hedra) reaparece agora em grande estilo, numa cuidadíssima edição bilíngüe de mil páginas, trabalho que lhe consumiu décadas, sendo terminado também só no seu derradeiro ano de vida e publicado (como o original alemão) postumamente.

E é um longo, longo percurso que se exige do leitor. Se ele conhece apenas a Primeira Parte pode esquecê-la, a Segunda pouco tem a ver com ela. Trata-se de uma daquelas obras exuberantes e idiossincráticas, cuja leitura representa um desafio cognitivo até para admiradores, como é o caso também da Tentação de Santo Antão, de Flaubert, ou do Finnegans Wake, de Joyce (e, para citar um exemplo da fusão música e texto, da Flauta Mágica, de Mozart, com seu simbolismo igualmente extravagante). Um efeito perseguido, uma vez que Goethe afirmou ao seu fiel Eckermann, pouco antes de conclui-la: “Estou persuadido de que quanto mais incomensurável e difícil de ser compreendida é uma obra, tanto melhor ela é”! Incomensurável. Nenhuma palavra caracterizaria mais precisamente o desenvolvimento da história para além do pacto (na verdade, uma aposta entre o Diabo e o Criador, na visão goethiana). Saímos da sedução que envolve e destrói Gretchen e que representa o fulcro dramático da Primeira Parte, e vemos Fausto no “grand monde”, dotado de poderes incríveis, sempre acompanhado por Mefistófeles, embora cercado de uma atmosfera de charlatanismo.

No primeiro ato, eles aparecem como cortesãos do Imperador, num ritmo de mascarada. Fausto é capaz de ir aos confins do universo para satisfazer o soberano, fazendo com que retornem ao nosso plano, como espetáculo para a Corte, os espíritos de Páris e Helena, e apaixonando-se por esta. Temos dois atos em que entidades greco-romanas se misturam à cultura judaico-cristã, e sejamos francos: já era árdua essa parte quando a li numa tradução mais prosaica de Flávio M. Quintiliano; em versos, torna-se quase uma travessia do Liso do Sussuarão (o lugar mortífero de Grande Sertão: Veredas). Não desista, leitor, há vários momentos belíssimos nesse festim peculiar e exasperante do velho Goethe. Contudo, apenas nos dois atos finais é que retornamos à Corte e ao cerne da tragédia, a luta de Deus e o Diabo pela alma do pactário.


(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 26 de maio de 2007)

goethe

17/11/2012

A MAIOR PERSONAGEM FEMININA DE THOMAS MANN

Venho comentando sistematicamente nesta minha coluna de A TRIBUNA o relançamento das obras de Thomas Mann pela Nova Fronteira. Já quase no final do percurso, a avaliação do empreendimento acaba sendo negativa. A princípio, as edições pareciam boas e bonitas. Não resistem, porém, a um olhar mais cuidadoso: não há unidade nas capas, umas são de muito bom gosto, outras surpreendem pela breguice; no caso dos livros mais volumosos, elas vão se descolando e o exemplar fica todo deformado. Cobrando tão caro,  a editora poderia pelo menos ter utilizado um papel melhor porque, somando tudo, sua coleção Thomas Mann ficou com um ar bem ordinário.

As deficiências da apresentação gráfica não são nada comparadas às encontradas nos textos. A Nova Fronteira prometeu “traduções revistas”. Ora, ora. Pegue-se CARLOTA EM WEIMAR. A não ser em alguns casos demasiadamente gritantes, a nova edição mantém quase todos os erros da anterior (lançada em 1984). Por exemplo, Goethe era indulgente com os horários de seu secretário Riemer, mas tanto em 1984 quanto agora o leitor brasileiro lerá que ele era indulgente com os honorários. O mesmo Goethe afirmava ter mão de artesão, apesar do seu refinamento aristocrático, só que o infortunado leitor daqui encontrará, em 1984 e agora, um absurdo não de artista. Etc etc etc. As traduções devem ter sido revistas por Stevie Wonder.

É uma pena, uma vez que LOTTE IN WEIMAR  é notável e não apenas por trazer a melhor personagem feminina criada por Mann: o famoso sétimo capítulo penetra diretamente na mente de Goethe, num enorme e complexo monólogo interior, com jogos de palavras e alusões que necessitavam de um tratamente editorial decente para não trazer mais dificuldades ao leitor. Esse capítulo e a parte inicial de José e seus irmãos são os maiores tours-de-force de Mann em termos técnicos, seus maiores feitos virtuosísticos.

Antes desse momento genial, a Senhora Conselheira Carlota Kestner chega a Weimar em 1816 (com 68 anos). Ela foi, na juventude, a inspiradora de Lotte, amada de Werther na obra-prima de Goethe, fato que sombreou toda a sua existência burguesa respeitável como mãe de 11 filhos.Apesar do pretexto da viagem (visitar a irmã e o marido desta), Carlota tem como objetivo confrontar-se com Goethe, o qual pontifica em Weimar como o supremo homem da nação alemã. Como ela mesma (um personagem pelo qual o leitor se apaixona) afirma, a certa altura: “existe uma velha conta entre a montanha e eu, uma conta que não foi saldada”. Mais tarde, num diálogo fantasmagóricona carruagem do próprio Goethe: “Vim para considerar o que teria sido possível, e cujas desvantagens diante do real verdadeiro são tão evidentes; e que entretanto permanece no mundo a seu lado como um Mas, e se…? e Se tivesse sido de outro modo…, o que é digno de nossa investigação. Você não acha também, velho amigo, e não pergunta também, às vezes, pelo possível no meio das dignidades da sua realidade?”

Os seis primeiros capítulos do romance são bem teatrais. Carlota, que se instalara numa hospedaria, procura sair para visitar a casa da irmã e é impedida por diversas visitas, as quais lhe oferecem visões indiretas e sombrias do autor de Werther e Fausto. Depois, temos o extraordinário capítulo central do livro, em que percebemos o trabalho alquímico processando-se na mente goethiana, à margem e além de todas as visões exteriores e parciais que tivemos dele. O clímax do romance seria, é claro, o encontro (não se viram por 44 anos) entre Carlota e o “grande homem”, num almoço formal na casa dele, no capítulo seguinte, contudo Mann deliberadamente (creio eu) o constrói como um anti-clímax, para depois jogar o leitor no intrigante e belo capítulo final, onde a velha conta não saldada entre a montanha e Carlota é discutida numa atmosfera onírica, como se não fosse possível um entendimento real entre ambos no cotidiano solene, pesado e reverente que cerca o antigo apaixonado de Lotte.

Em CARLOTA EM WEIMAR alternam-se três planos: o plano do jogo literário (pois Carlota, no livro, se torna duplamente personagem: já o era de Goethe, torna-se novamente em Mann, afastand0-se ainda mais da sua existência biográfica real), que é  mola propulsora para o plano do espelhamento biográfico (a frustração, incompreensão e desilusão dos vários personagenscom relação a aspectos da personalidade e comportanento de Goethe, no texto, reproduzem as mesmas reações com relação ao próprio Thomas Mann, uma pessoa que, no entender do seu risível biógrafo Donald Prater, era mais fácil de admirar como escritor do que se gostar como ser humano, como se isso tivesse a menor importância: há gente simpática demais no mundo, um Thomas Mann é muito raro); e, por fim, o plano alegórico: ao desenhar um perfil da época pós-napoleônica na visita de Carlota a Weimar, o grande escritor alemão projeta o momento histórico no qual escrevia, com a sua pátria dando os passos decisivos para iniciar a Segunda Guerra.

Quem ler o romance com atenção, tendo em mente o ano da sua publicação (1939), verá como Mann faz com que as afirmações de Goethe, que é afinal o nome mais alto da cultura germânica, mesmo para os nazistas, funcionem como advertências diretas para os seus compatriotas (ele já se encontrava exilado): “não é certo que tenham de odiar a luz. Lamento por eles não conhecerem o encanto da verdade…que se consagrem credulamente a qualquer rufião místico que apele para o mais baixo, confirme-os em seus vícios e lhes ensine a entender a nacionalidade como isolamento…” A antipatia aos judeus “só era comparável com outra, a que existe contra os alemães, cujo papel atribuído pelo destino e cuja posição interior e exterior entre os povos demonstravam o mais espantoso parentesco com a posição dos judeus… às vezes o assaltava o medo angustioso de que um dia se pudesse desencadear o ódio coligado do mundo contra o outro sal da tera, a germanidade…”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 de fevereiro de 2001)

 

09/10/2011

IMPRÓPRIO PARA MENORES: PARA CRIANÇAS-FRANKENSTEINS

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“Ai, ai, duas almas vivem em meu peito!

Uma rude, que me arrasta aos prazeres

da terra e se apega a este mundo; e a outra

que aspira à vida eterna e a seus antepassados…”

    Um dos lançamentos mais insólitos de 2006 foi, sem dúvida, a pretensa e pretensiosa adaptação da primeira parte de Fausto para o público infanto-juvenil realizada por Christine Röhrig (a mesma que já traduzira Ur-Faust/Fausto Zero, a protoversão da obra máxima de Goethe). Não dá nem avaliar a qualidade do trabalho, já que ele é destituído de sentido. Que crianças ou mesmo adolescentes poderão ler o texto da maneira como está? Decerto há, e eu mesmo já conheceu algumas, crianças metidinhas a adultas, que tentam ostentar uma maturidade de opiniões e atitudes, tristes rebotalhos dos nossos neuróticos tempos. Decerto há, também, aqueles tantãs da educação que acham lindo, formativo fazer projetos para crianças de 1a a 4a, envolvendo quadros de Picasso, Matisse ou quejandos. Na vida de verdade o normal e, é preciso dizer, o desejável, é não termos minis-Haroldos de Campos ou minis-Jennys Klabin andando por aí. A garotada precisa ler outras coisas e o Fausto com sua concentração atordoante de significados (Ian Watt o coloca como um dos arquétipos do mundo ocidental, ao lado de D. Quixote, Dom Juan e Robinson Crusoé) estará lá, intacto, esperando “almas já formadas”, para utilizar uma expressão de Clarice Lispector.

    Da maneira como está, o Faustinho é uma triste mixórdia, já que a ambientação (o texto originalmente foi publicado em 1808), não contextualizada em nenhum momento, é remota para a garotada, com o sábio/mago trancado em seu escritório, sofrendo devido à cinzenta ciência que conquistou em detrimento do verdor da vida, com cidades com resquícios medievais, tabernas, e uma linguagem que pode ser exemplificada pela seguinte passagem, a resposta do Espírito da Terra a Fausto: “Tu te igualas ao espírito que concebes, não a mim!” (o leitor está autorizado a imaginar aquela criancinha-gênio declamando isso pela cidade afora).

    Ainda dá para agüentar a aposta entre Deus e Mefistófeles pela alma de Fausto (que lembra tanto a história de Jó), mal e mal a aparição do diabo ao protagonista, o pacto, a cozinha da bruxa. Já é quase intolerável (em se imaginando o leitor-destinatário) a cena da taberna. Quando Margarida entra na história é que tudo vai para o inferno mesmo: o autor deste artigo houve por bem se deleitar durante esta semana imaginando mamãe e papai da mais-que-precoce criança explicando para ela o fato de Margarida perceber que está grávida, repassando com ela, fala por fala. o diálogo que antecede essa descoberta e do qual o mínimo a ser dito é que é reticente.

    Depois, que criança ou adolescente (a não ser nossa criança-gênio, meio concretista meio pós Lacan) vai entender que, após um infanticídio e um assassinato, Fausto vá parar numa orgia (a célebre “Noite de Valburga” –ou Valpurgis) de seres sobrenaturais, a qual, aliás, ficou muito mal ajambrada uma vez que a tradutora não se pôde permitir maior explicitação. E mais incompreensível ainda é a cena-clímax da peça, com Fausto tentando libertar Margarida da prisão, e ela, meio Ofélia, louquinha e recusando-se a ser salva porque visa outra forma de salvação. E então é colocada uma paupérrima, pé-de-chinelíssima nota “informando”, como se isso fosse o que uma criança espera da leitura, o teor da segunda parte, ou seja, o destino das personagens.

    Enfim, esse Fausto de ilustrações sombrias e envolto em estranhas e desconfortáveis páginas roxas é a coisa mais sem pé nem cabeça que o desvairado mercado infanto-juvenil poderia receber. Será que não poderíamos voltar ao velho e bom Monteiro Lobato, a Tom Sawyer, à Ilha do Tesouro ou a Julio Verne ? Menos Mefistófeles e mais Lorde Valdemort para nossos guris. 

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de dezembro de 2006)

27/12/2009

Em relação ao século XIX: BICENTENÁRIOS, SESQUICENTENÁRIOS

      “… todos os seres da natureza, perceptíveis para nós, mantêm uma relação recíproca (…) Imagine a água, o óleo, o mercúrio: você verá uma unidade, uma coesão entre as suas partes. Essa união só deixará de existir pela força ou por outra determinação qualquer. Cessando esta, tornam logo a juntar-se de novo (…) E isso será diferente segundo a diversidade dos seres. Ora agirão como amigos ou velhos conhecidos que rapidamente se reúnem, se juntam, sem modificarem um ao outro, tal como o vinho ao se misturar com a água; ora, ao contrário, permanecerão absolutamente estranhos um ao outro, sem se unirem, mesmo através de fricções ou misturas mecânicas, como o óleo a água (…) Não falta muito para vermos nessas forma simples as pessoas que conhecemos… Entretanto o que mais se assemelha a esses seres inanimados são as massas se enfrentando no mundo, as classes sociais, as profissões, a nobreza e a burguesia, o militar e o civil (…) Contudo, tal como esses grupos que se agregam por meio de costumes e leis, há também, em nosso mundo químico, elementos para juntar aquilo que se repele mutuamente…”

      2009 marca não só o bicentenário do nascimento de gênios como Edgar Allan Poe, Nikolai  Gógol  (há posts sobre as duas efemérides aqui no meu blog) e Charles Darwin, como também o de uma obra fundamental e curiosamente pouco conhecida do público comum: As Afinidades Eletivas (relançada recentemente, em tradução de Erlon José Paschoal, pela Nova Alexandria, em edição de capa dura, mas a que possuo é a de  1992; as citações podem ser encontradas na Primeira Parte- Capítulo IV; há uma notável adaptação cinematográfica do livro feita pelos irmãos Taviani, com a grande Isabelle Hupert).

    Na citação acima, misturei as falas de vários personagens (o Capitão, Eduard, Charlotte) que estabelecem o “processo químico e orgânico” de modificação dos sentimentos de um casal nobre, devido à aparição de uma “outra determinação qualquer”, a irresistível Ottilie, a qual levará Eduard ao adultério. O extraordinário romance de Goethe (1749-1832) marca o aprofundamento da análise dos sentimentos individuais na ficção, mostrando que o absoluto não existe  nesse reino, só o relativo, e que portanto pode haver uma decomposição narrativa infinita dos seus elementos. Nem Rousseau nem Richardson, no século anterior, haviam ido tão longe.

p.s.- Apesar de estar fora do âmbito deste post, o nascimento do grande amigo de Goethe e seu maior “rival”, por assim dizer, na literatura alemã, Schiller, completa 250 anos em 2009.

    Além dos 200 anos do nascimento do profeta do Evolucionismo, temos os 150 anos da sua obra mais célebre, A Origem das Espécies, que deu origem a uma avalanche de lançamentos comemorativos (Richard Dawkins que o diga). Aliás, com relação à obra-prima de Goethe, é bom lembrar que o último capítulo da obra-prima de Darwin se chama “Afinidades mútuas entre os seres orgânicos”: “Tentei demonstrar neste capítulo que o arranjo de todos os seres orgânicos que viveram em todos os tempos em grupos subordinados a outros grupos;  que a natureza das relações que vinculassem num pequeno número de grandes classes todos os organismos vivos e extintos, por linhas de afinidades complicadas,  divergentes e tortuosas; que as dificuldades que encontram e as regras que seguem os naturalistas nas suas classificações;  que o valor que se liga aos caracteres  quando são constantes e gerais, que tenham uma importância considerável ou mesmo que não tenham nenhuma, como nos casos dos órgãos rudimentares; que a grande diferença de valor que existe entre os caracteres de adaptação ou análogos e de afinidades verdadeiras; tentei demonstrar, repito, que todas essas regras, e ainda outras análogas, são a consequência natural da hipótese do parentesco comum das formas associadas e de suas modificações pela seleção natural, junto às circunstâncias de extinção e de divergência de caracteres que determina.  Analisando esse princípio de classificação, é necessário não esquecer que o elemento genealógico foi unicamente aceito e empregado para classificar em conjunto, na mesma espécie, os dois sexos, as diversas idades e as variedades reconhecidas, seja qual for, além disso, a sua conformação. Se se estende a aplicação desse elemento genealógico, causa única conhecida das semelhanças que se verificam entre os seres organizados, compreende-se o que é necessário entender por sistema natural: é tudo um simples ensaio de coordenação genealógica em que os diversos graus de diferenças adquiridas se exprimem pelos termos variedade, espécies, gêneros, famílias, ordens e classes“…  (utilizo a tradução de Eduardo Fonseca, pela Ediouro).

     No mesmo ano, uma obra anteciparia o conteúdo de O Capital e, embora mais discretamente que a do pensador inglês, mudaria toda a nossa maneira de conceber o mundo e a história: Contribuição à Crítica da Economia Política, de Karl Marx, uma boa introdução às idéias do genial pensador prussiano, que naquele ano prosseguia em seu definitivo exílio em Londres, pensando no fim do capitalismo em pleno coração do Império.

       1859 marca também o nascimento do grande pensador francês Henri Bergson (autor do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, Matéria e Memória & A evolução criadora), um dos mais influentes da primeira metade do século XX; também naquele ano nascia  o criador de Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle, e a publicação, além de um dos textos mais deliciosos de Dostoiévski (A Aldeia de Stiepantchikov  e Seus Habitantes), uma jóia de humor e precisão narrativa (na minha opinião, sua melhor obra antes da grande fase iniciada com Memórias do Subsolo),  de uma das novelas mais lindas de  Tolstói, A Felicidade Conjugal (que também ganhou uma nova edição em 2009, pela 34, na tradução de Boris Schnaiderman).

     Trinta anos depois, ele anatematizará apocalipticamente a instituição do casamento (muito visada, assim como seu duplo, o adultério, pelos autores da época) em Sonata a Kreutzer. Porém, aos 31 anos, num tour – de force, ele adota o ponto-de-vista de uma jovem esposa, Macha, que se apaixona e se casa com um homem quase vinte anos mais velho. É através das impressões e reflexões de Macha que o leitor vai acompanhando uma profunda e alquímica (pensando em Afinidades Eletivas, podemos dizer que goethiana) transformação de sentimentos, mas que ocorre em filigrana: temos as diversas nuances que constituem a “realidade” dos sentimentos. O amor romântico de Macha e  Sierguei Mikhálitch morre e, como ela diz, “não tem mais força nem suculência. O que sobrou? Sobrou o amor ,  isto é, a felicidade conjugal,como conclui a narradora num dos mais belos finais já escritos: “…terminou o romance com meu marido; o sentimento antigo tornou-se uma recordação querida, algo impossível de trazer de volta, e o novo sentimento de amor aos filhos e ao pai dos meus filhos deu início a uma nova vida, de uma felicidade completamente diversa e que ainda não acabei de viver”. De Goethe a Tolstói, passando pelo grande Stendhal, os sentimentos na literatura se tornam mais interessantes que a ação romanesca, até chegarmos ao auge com Proust e seu Em Busca do Tempo Perdido.

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