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O Fausto quinhentista, o qual se lamentava por ser apenas “ainda um homem”, era tentado a pactuar com o Diabo para obter poderes mágicos: “Oh, dai-me algumas provas de magia/Que eu possa conjurar num bosque espesso/E plena posse tenha de tais bens”, podemos ler na História Trágica do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe.
240 anos depois, no ápice da lenda em sua feição literária, no quinto ato da Segunda Parte do Fausto de Goethe, o herói, pouco antes da sua conversa com a Apreensão (Sorge), num solilóquio que marca o começo do fim do seu pacto, diz: “Pudesse eu rejeitar toda a feitiçaria/Desaprender os termos de magia/ Só homem ver-me, homem só, perante a Criação/ Ser homem valeria a pena, então. // Era-o antes que as trevas explorasse/ Blasfemo, o mundo e o próprio ser amaldiçoasse/ Hoje o ar está de espíritos tão cheio/ Que não há como opor-se a seu enleio”.
Um longo percurso. Da lenda e da sua elaboração literária. Da peça de Goethe, que ele começou a elaborar na juventude e concluiu no ano da sua morte, já octogenário (a primeira parte apareceu na íntegra em 1808). Da tradução de Jenny Klabin Segall, que (numa sincronia apreciável com o lançamento da obra de Marlowe pela Hedra) reaparece agora em grande estilo, numa cuidadíssima edição bilíngüe de mil páginas, trabalho que lhe consumiu décadas, sendo terminado também só no seu derradeiro ano de vida e publicado (como o original alemão) postumamente.
E é um longo, longo percurso que se exige do leitor. Se ele conhece apenas a Primeira Parte pode esquecê-la, a Segunda pouco tem a ver com ela. Trata-se de uma daquelas obras exuberantes e idiossincráticas, cuja leitura representa um desafio cognitivo até para admiradores, como é o caso também da Tentação de Santo Antão, de Flaubert, ou do Finnegans Wake, de Joyce (e, para citar um exemplo da fusão música e texto, da Flauta Mágica, de Mozart, com seu simbolismo igualmente extravagante). Um efeito perseguido, uma vez que Goethe afirmou ao seu fiel Eckermann, pouco antes de conclui-la: “Estou persuadido de que quanto mais incomensurável e difícil de ser compreendida é uma obra, tanto melhor ela é”! Incomensurável. Nenhuma palavra caracterizaria mais precisamente o desenvolvimento da história para além do pacto (na verdade, uma aposta entre o Diabo e o Criador, na visão goethiana). Saímos da sedução que envolve e destrói Gretchen e que representa o fulcro dramático da Primeira Parte, e vemos Fausto no “grand monde”, dotado de poderes incríveis, sempre acompanhado por Mefistófeles, embora cercado de uma atmosfera de charlatanismo.
No primeiro ato, eles aparecem como cortesãos do Imperador, num ritmo de mascarada. Fausto é capaz de ir aos confins do universo para satisfazer o soberano, fazendo com que retornem ao nosso plano, como espetáculo para a Corte, os espíritos de Páris e Helena, e apaixonando-se por esta. Temos dois atos em que entidades greco-romanas se misturam à cultura judaico-cristã, e sejamos francos: já era árdua essa parte quando a li numa tradução mais prosaica de Flávio M. Quintiliano; em versos, torna-se quase uma travessia do Liso do Sussuarão (o lugar mortífero de Grande Sertão: Veredas). Não desista, leitor, há vários momentos belíssimos nesse festim peculiar e exasperante do velho Goethe. Contudo, apenas nos dois atos finais é que retornamos à Corte e ao cerne da tragédia, a luta de Deus e o Diabo pela alma do pactário.
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de maio de 2007)