MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

19/07/2013

Teoria e Prática do “ROMANTISMO DA DESILUSÃO’: Lukács e Jacobsen

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O ÉPICO LÍRICO

I

“Sentia-se tão só. Não tinha nenhum parente, nenhum amigo que estivesse perto do seu coração… não pode haver maior abandono que o de quem em todo o imenso mundo não tem um lugarzinho para abençoar, para querer bem, para o qual possa voltar o coração pesado, do qual possa lembrar quando a saudade quiser estender as asas. Mas que brilhem sobre a sua cabeças as claras  e fixas estrelas de um ideal, e a noite não será mais um deserto, e sua solidão não será total. Para Niels Lyhne não havia estrelas. Não sabia o que fazer consigo mesmo ou com suas aptidões. Não tinha dúvidas sobre o seu talento, apenas não podia utilizá-lo, e portanto vagueava à toa, sentia-se como um pintor que tivesse perdido as mãos. Como invejava aqueles que, grandes ou pequenos, por onde quer que abordassem a existência sempre encontravam o que agarrar, pois ele agarrava sempre o vácuo…Às vezes tinha a impressão de haver nascido meio século atrasado, e outras vezes de ter chegado muito cedo.

A passagem acima pode dar ao leitor uma idéia do clima que perpassa Niels Lyhne, célebre romance de Jens Peter Jacobsen (1847-1885), só agora traduzido no Brasil, por Pedro Octávio Carneiro da Cunha. No momento citado, Niels perdeu a mãe (insatisfeita com o prosaísmo da existência, ela transmitiu esse desassossego ao filho) e o melhor amigo, Erik. Pior ainda: mantivera um caso com Fennimore, a esposa de Erik, a qual passou a odiá-lo (uma reação meio teatralesca, é verdade), devido ao sentimento de culpa por trair o marido com o amigo dileto. Era a segunda decepção amorosa de Niels: antes amara uma mulher mais velha, Tema Boye, coma qual também houvera uma cena de rompimento altamente teatralizada (hoje, chamaríamos de “fake”) por parte da personagem feminina.

E o pior ainda está por vir: Niels volta ao seu cantão natal, casa-se e tem um filho, mas tanto este quanto Gerda, a esposa, morrem. É quando o ateísmo de Niels precisa tornar-se “heróico”: pode-se suportar a vida, só deixando-a “seguir as próprias leis” ou deve-se capitular diante da “necessidade ancestral” de um Deus?

II

Publicado em 1880, Niels Lyhne influenciou muita gente. É o caso de Thomas Mann, que, ao comentar sua formação como escritor, sempre destacou a leitura dos prosadores escandinavos: Jacobsen, Hermann Bang, Jonas Lie, Kielland.

É indisfarçável a presença de Jacobsen no primeiro Mann: o sentimento de estar à parte da vida que domina, por exemplo, Tônio Kröger (sem contar a atmosfera estilística da história). Todavia, mesmo o Mann mais tardio apresenta rastros do autor de Niels Lyhne. Hans Castorp, de A Montanha Mágica, endossaria certamente a seguinte frase: “Aprender é tão belo quanto viver”. E a agonia do filho de Niels repercute na do pequeno Nepomuk de Doutor Fausto: “… aquelas mãozinhas cerradas e brancas de unhas azuladas, aqueles olhos meio esbugalhados, aquela boca deformada, os dentes rangendo, com um som de ferro e pedra.”

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III

É difícil ler Niels Lyhne sem ser pela ótica do grande pensador húngaro Georg Lukács (1885-1971), que, em seu clássico e extraordinário ensaio Teoria do Romance (também só agora lançado numa versão brasileira, tendo circulado por décadas na personalíssima tradução portuguesa de Alfredo Margarido), apresenta um capítulo chamado Romantismo da Desilusão que parece ser a descrição mais pertinente da visão de mundo que domina o romance do autor dinamarquês, embora a obra-padrão e ao mesmo tempo ápice dessa tendência seja A Educação Sentimental, de Flaubert.

Lendo inúmeras passagens de Lukács parece que ele está falando diretamente da psicologia de Lyhne: “… inadequação que nasce do fato de a alma ser mais ampla e mais vasta que os destinos que a vida é capaz de oferecer” / “…a perda do simbolismo épico, a dissolução da forma numa sucessão nebulosa e não-configurada de estados de ânimo e reflexões sobre estados de ânimo, a substituição da fábula configurada sensivelmente, pela análise psicologia” (embora eu creia que se vá um tanto além da psicologia no caso da introspecção de Niels) / “…Resta um belo mas esbatido amálgama de volúpia de amargura, de mágoa e escárnio, mas não uma unidade; imagens e aspectos, mas não uma totalidade de vida…” etc, etc.

A certa altura, Lukács afirma ter Jacobsen exprimido o romantismo da desilusão “em maravilhosas imagens líricas”. Não se deve inferir disso que o romance seja escrito numa mera “prosa poética”. Quando Lukács diz “maravilhosas imagens líricas” quer apontar para o seu poderoso e quase visionário estilo, que o torna um legítimo precursor de autores como Robert Musil e Clarice Lispector, exploradores da mesma senda: a reeducação do leitor para além da narração de um enredo, rumo a territórios desconhecidos ou insuspeitos da linguagem, situados além da poesia lírica propriamente dita e da prosa épico-narrativa. Quem já leu O Jovem Törless (na realidade, As Perplexidades do Aluno Törless, como seria melhor traduzido), de Musil, ou um texto como O Lustre, de Clarice Lispector, percebe bem que os três protagonistas (Niels, Törless, Virgínia) são possuidores de um mesmo atributo inquietante, “um sentido a mais do que as outras pessoas, só que ainda incompleto” (Musil; e o Niels de Jacobsen não acha que nasceu meio século atrasado ou chegou cedo demais?).

Portanto, a leitura conjunta de Niels Lyhne e A Teoria do Romance permite compreender melhor um momento de impasse para o romance enquanto gênero. A memorável frase de abertura da Teoria do Romance, “Afortunados os tempos para os quais o céu estrelado é o mapa dos caminhos transitáveis e a serem transitados, e cujos rumos a luz das estrelas ilumina”, transforma-se, para Niels (em cujo céu não havia estrelas), na igualmente bela frase do parágrafo final de outra obra do “romantismo da desilusão”, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, do grande Lima Barreto:  “… olhei ainda o céu muito negro, muito estrelado, esquecido de que a nossa humanidade já não sabe ler nos astros os destinos, os acontecimentos.”

(a resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 7 de agosto de 2001)  

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QUANDO NÃO SE PODE MAIS LER AS ESTRELAS

Na seção anterior, comentei a aguardada tradução do clássico Niels Lyhne (1880), do dinamarquês Jens Peter Jacobsen, no qual se narra como o personagem-título vai ficando isolado (as pessoas queridas morrem ou se afastam dele), a partir de uma inadaptação precoce à vida prosaica.

Aproveitei a oportunidade para festejar outra tardia versão brasileira: a da Teoria do Romance (1920), seminal ensaio sobre os gêneros literários. Nele, há um capítulo, “Romantismo da Desilusão”, no qual Niels Lyhne é expressamente mencionado. Faltou dar ao leitor uma idéia mais geral do livro de Georg Lukács.

Seguindo a trilha de Hegel, do romance como “epopéia burguesa”, herdeiro da épica antiga, Lukács procura caracterizar a civilização grega que deu origem às epopéias homéricas como uma “cultura fechada”, orgânica e homogênea. O herói da epopéia representava a comunidade e sua ação era sempre necessária e possível, pois não há separação entre interioridade e mundo exterior, entre necessidades internas e externas. Para citar apenas uma das inesquecíveis imagens criadas por Lukács com o intuito de caracterizar esse estágio civilizatório onde o mundo fazia sentido: “toda ação é somente um traje bem talhado da alma”.

A possibilidade e a necessidade de ação do herói no romance tornam-se “problemáticas”. Aliás, a própria psicologia do herói, o centro que move a trama romanesca, é problemática, pois ocorre a cisão entre sua interioridade e o mundo circundante, que já não faz mais sentido, transformou-se no mundo das convenções burguesas, inautêntico, “demoníaco”. Daí o hiato entre a interioridade do herói e a aventura, pois a alma se sente inadaptada e cindida: “Descobrimos em nós a única substância verdadeira: eis porque tivemos de cavar abismos intransponíveis entre conhecer e fazer, entre alma e estrutura, entre eu e mundo, e permitir que, na outra margem do abismo, toda a substancialidade se dissipasse em reflexão; eis porque nossa essência teve de converter-se, para nós, em postulado e cavar um abismo tanto mais profundo e ameaçador entre nós e nós mesmos.”[1]

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No início, a alma é menos vasta que o mundo à sua volta, caindo no “idealismo abstrato” (que começa com Cervantes e seu Quixote e culmina com Balzac e os heróis da Comédia Humana). No auge do século XIX, a alma inadaptada se sentirá mais vasta que os destinos que a vida tem para lhe oferecer. Temos, então, o “romantismo da desilusão”, muito bem representado por Niels Lyhne. Para Lukács existem imperativos épicos no romance e justamente a problemática do “romantismo da desilusão” ameaça a estabilidade da representação da realidade (mimesis): a forma tende a se dissolver, da narração passa-se para a descrição lírica de “estados de espírito” e a fábula se metamorfoseia em análise psicológica.

Um dos aspectos mais interessantes do “romantismo da desilusão” é o fato de o herói geralmente ser intelectualizado, ou, mais freqüentemente, um indivíduo com aspirações artísticas, ao contrário dos guerreiros, cavaleiros e aventureiros da epopéia e até mesmo dos primeiro romances. O “retrato do artista” é sintomático numa era onde se abriu o já citado hiato entre interioridade e aventura; se esta é possível, apenas na imaginação e no sonho, a realidade não é mais capaz de suprir os requisitos para vivenciá-la.

Fazer da existência uma “obra de arte” ou dedicar-se a um destino como artista são as soluções possíveis, porque, como sintetizou muito bem Milan Kundera, no seu A Arte do Romance, “…o horizonte se estreita a tal ponto que parece uma clausura. As aventuras estão do outro lado e a nostalgia é insuportável. No tédio do cotidiano, os sonhos e devaneios adquirem importância. O infinito perdido do mundo exterior é substituído pelo infinito da alma. A grande ilusão da unicidade insubstituível do indivíduo, uma das mais belas ilusões européias, desabrocha.”

É o processo da existência de Bartolina, a mãe de Niels, que adora poesia e não encontra respaldo para ela no cotidiano. No seu estilo lapidar, Jacobsen a caracteriza com precisão: “No fundo, não havia mais do que o desejo um tanto doentio de tomar consciência de si, a ambição de encontrar a si mesma, que tantas vezes se agita numa jovem de inteligência acima do comum”. Quando, anos mais tarde, o filho a leva para sonhadas viagens, Bartolina se decepciona: “Em sonhos e histórias imaginava as paisagens como na margem oposta de um lago, a névoa da distância envolvia sugestivamente os detalhes da realidade, grandes traços reduziam as formas a uma unidade ideal e o silêncio da distância ampliava o efeito do conjunto, tornavam tão fácil surpreender a beleza… Agora que ela estava no centro do quadro, e cada linha se acentuava diante dela, e produzia os múltiplos acentos da realidade, agora que a beleza se dividia como a luz através de um prisma, agora ela não conseguia fundir as suas impressões, não conseguiu transpô-las para o outro lado do lago… se sentia pobre no meio de todas essas riquezas de que não conseguia dispor.”

A fome de beleza de Bartolina contamina Niels: já que a vida não é “poética”, ele sente que só como poeta pode vivê-la e justificá-la. Esse “heroísmo” que restou na burguesia, e que –onde o ensaio de Lukács pára— domina certo tempo a ficção até que cheguem os tempos de Kafka, “…o sonho sobre o infinito da alma perde sua magia no momento em que a História, ou o que dela restou, força supra-humana de uma sociedade onipotente, se apossa do homem…O infinito da alma, se existe, tornou-se um apêndice quase inútil…” (Kundera)

O tédio do cotidiano já não transforma, então, ninguém em poeta. No máximo, num inseto. E Niels Lyhne passa a se chamar Gregor Samsa.

(a resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 14 de agosto de 2001)


[1]Henry James, no seu ensaio sobre Flaubert, de 1902, já intuiu isso perfeitamente ao comentar a tragédia de Emma Bovary: “As aventuras insignificantes de Emma Bovary são uma tragédia exatamente porque, em um mundo sem suspeitas, sem assistência e sem consolo, ela mesma tem que extrair o rico e o raro.”  

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25/09/2012

O amor complicado dos marxistas por um cinéfilo

Há algumas semanas (nesta minha coluna de A TRIBUNA), a propósito de O Processo, eu comentava o fascínio exercido por Kafka. O lançamento nos últimos meses de, pelo menos, três livros importantes sobre sua obra não deixa de ser uma confirmação desnecessária, mas cabal: Kafka vai ao cinema, de Hanns Zischler; Lukács, Proust e Kafka, de Carlos Nelson Coutinho; Franz Kafka, Sonhador Insubmisso, de Michael Löwy.

Comecemos pelo último. Michael Löwy é um  ensaísta marxista brasileiro, embora O Sonhador Insubmisso tenha sido publicado primeiro na França, em 2004. É preciso dizer que a crítica marxista foi muito lenta, com notáveis exceções, em reconhecer o valor de Kafka. Isso se deve principalmente à equivocada interpretação efetuada pelo seu mestre, Georg Lukács (em meados dos anos 50), o qual colocou Kafka como representante principal de uma tendência “irrealista” da arte contemporânea: [A] impressão de impotência elevada ao nível de concepção do mundo, que em Kafka se transformou na angústia imanente do próprio devir do mundo, o total abandono do homem em face dum temor inexplicável, impenetrável, inelutável, faz da sua obra como que o símbolo de toda a arte moderna. Todas as tendências que, noutros artistas, assumiam uma forma literária ou filosófica, reúnem-se aqui no temor pânico, elementar, platônico, perante a realidade efetiva, eternamente estranha e hostil ao homem, e isto num grau de espanto, de confusão, de estupor, que não tem paralelo em toda a história da literatura. A experiência fundamental da angústia, tal como a viveu Kafka, resume bem a decadência moderna da arte.

Trata-se de um trecho de Realismo Crítico Hoje, que até hoje causa discussão (é preciso dizer que a argumentação do grande Lukács é ambígua e traduz um fascínio inegável por aquilo que rejeita). O resultado: admirado ou execrado, Kafka sempre foi considerado um poeta da impotência do homem diante do mundo, da inutilidade do esforço humano em face do absurdo da vida ou do silêncio da divindade.

É contra essa visão que Löwy constrói seu livro. Para ele, o traço marcante da visão de mundo kafkiana é o antiautoritarismo, a insubmissão diante da tirania explícita e implícita.

Por isso, além de analisar as duas principais obras de Kafka, O Processo e O Castelo, sob essa perspectiva, ainda investiga as ligações entre ele e vários círculos libertários,  anarquistas ou socialistas, da sua época.

É impressionante a massa de textos que Löwy convoca para confirmar suas idéias ou polemizar com intérpretes anteriores da obra kafkiana. Isso não atrapalha a fluência do seu texto, embora  as referências em notas de rodapé cheguem às raias do atordoante, contudo acaba fazendo o leitor comum sentir uma angústia verdadeiramente digna de Kafka ao imaginar tanto papel escrito para chegar a verdades que a ele parecem tão óbvias, como na contestação à visão lukácsiana: Trata-se da criação de um universo imaginário, regrado unicamente pela lógica do maravilhoso que, de modo algum visa reproduzir ou representar a realidade, mas que não deixa de conter  uma crítica radical dela, feroz ou irônica segundo o caso. Realista ou não, a obra de Kafka, graças à sua atitude de distanciamento permanente com relação às instituições sociais, é um dos exemplos mais cativantes do podee de iluminação profana da literarura. É por isso que André Breton o considerava, pura e simplesmente, o maior vidente do século”.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 14 de janeiro de 2006)

Na semana passada, comentei  Franz Kafka, Sonhador Insubmisso, no qual Michael Löwy procurava reavaliar o legado kafkiano sob o prisma do antiautoritarismo, “graças a um fio vermelho que permite ligar a revolta contra o pai, a religião de liberdade (de inspiração judaica heterodoxa) e de protesto (de inspiração libertária) contra o poder mortal dos aparelhos burocráticos”. Löwy inspirava-se em supostas palavras do genial escritor de Praga “recolhidas” num famoso livro de Gustav Janouch: “As cadeias da humanidade torturada são feitas de papel de escritório.”

Löwy alinha-se contra a opinião condenatória de Georg Lukács. Este grande pensador marxista teve um talentoso seguidor brasileiro, Carlos Nelson Coutinho. Embora seguindo os conceitos do seu mestre, Coutinho sempre apresentou um posicionamento muito próprio. Já no prefácio, há quase 40 anos, à edição brasileira de Realismo Crítico Hoje, de Lukács, ele refutava a visão negativa da obra de Kafka. Nos anos 70,escreveu um ensaio sobre o autor de O Processo e recentemente o reformulou para que constasse do livro Lukács, Proust e Kafka, no qual tenta reajustar a (no caso, míope) ótica lukácsiana sobre dois dos maiores escritores que já existiram.

Para Coutinho, Kafka é o crítico cabal do mundo reificado, onde a nossa consciência é mediada pelo mercado, onde tudo se transforma em valor-de-troca e toda relação humana se transforma numa relação entre coisas, entre possuído e possuidor. Um mundo perfeito para alguém acordar um dia transformadoem inseto.  Utilizando o conceito de reposição estética desse pressuposto social, Coutinho elege algumas obras, particularmente O Processo, A Metamorfose e A Construção como sucessos, porque a medida do talento de Kafka para fazer tal reposição estaria no âmbito da novela (nas palavras de Lukács, a novela faz um compêndio da vida da sociedade “através de um evento singular extraordinário, tomado como ponto focal. A novela não é obrigada a representar todo o conjunto de dados da vida social, como o faz o romance”). Por isso, nessa visão, ao mesmo tempo inteligente e discutível, “tentativas” de romance como O Castelo e  O Desaparecido (América)não funcionam, por seu estado fragmentário e irresolvido.

Iríamos longe na discussão de que  ater-se aos gêneros e às formas petrificadas tornou-se uma postura problemática,  de que  existe uma poética do fragmento, e principalmente de que não há nada mais poderoso literariamente do que as tentativas fragmentárias que conhecemos como O Castelo e  O Desaparecido (América). Ainda assim, “Franz Kafka, crítico do mundo reificado” é um ensaio modelar.

Em compensação, Kafka vai ao cinema, de Hanns Zischler, é um daqueles ensaios-caprichos da pós-modernidade. Faz uma montagem (auxiliado por uma bela edição) por meio de comentários biográficos, de trechos de cartas, postais e diários, de material publicitário dos filmes da época, de fotos, no intuito de perseguir uma percepção cinematográfica de Kafka, seja como espectador efetivo de cinema quanto da sua maneira de ver o mundo, dos saltos da sua mente, obsessivamente literária, da realidade comezinha para a Realidade do seu mundo escrito. É o caso da  passagem em que descreve como, ele, tão problemático com as mulheres, dividiu um táxi com uma garota (e sua imaginação relembra—errônea, mas sugestivamente—uma cena do filme A Escrava Branca). Zischler: “…a cena desliza para o puro cinema. Tal como Kafka a imaginou, ela é a pura realização de desejo que, naturalmente, não poderia ser coroado de êxito no táxi” (no filme, a escrava branca é forçada a entrar num táxi). É o “artifício de transformar a vergonha real no despudor do cinema.”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 27 de janeiro de 2006)

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/11/26/como-chegar-ao-castelo/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/25/fascinio-de-kafka-nao-se-esgota/

https://armonte.wordpress.com/2009/12/14/o-processo-e-a-peste-a-culpa-e-a-inocencia-da-humanidade/

https://armonte.wordpress.com/2012/11/25/o-terror-nas-dobras-do-pastelao-o-desaparecido-de-kafka/

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https://armonte.wordpress.com/2010/06/29/um-verdadeiro-exercicio-de-parodia/

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24/03/2011

O mau infinito e o Mal infinito

 

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 17 de setembro de 2005)

“Mas estas colinas, agora ele as conhece, isto é, ele as conhece melhor, e se jamais chegar a contemplá-las ao longe novamente, penso eu, com outros olhos, e não somente isto mas o interior, todo o espaço interior que não se vê nunca, o cérebro e o coração e as outras cavernas onde sentimento e pensamento têm seu sabbat, tudo será de outra forma disposto…”

O grande crítico Georg Lukács detectou com precisão o significado da “forma biográfica” e do exercício da memória (enquanto reminiscência pessoal) para o romance: é a vitória sobre o “mau infinito” já que a trajetória do indivíduo, sua evolução (até mesmo sua desilusão) continuam a ser “o fio diretor ao longo do qual o mundo vem enlaçar-se e desenrolar-se na sua totalidade” (Teoria do Romance). Nesse sentido, a obra de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, seria o ponto culminante do gênero.

O trecho que abre este artigo pertence a Molloy, o livro inicial de uma desnorteante e inigualável trilogia, composta ainda por Malone MorreO inominável,  publicada por Samuel Beckett no início dos anos 50. É extremamente bonito e parece ir na direção da recuperação do tempo perdido via memória na linha Proust (sobre quem Beckett escreveu um ensaio famoso), da vitória sobre o mau infinito.

Pura ilusão. A trilogia destruirá a memória individual, a narração ficcional e a própria linguagem, mostrando-as como balbucios e tateios desarrazoados, fragmentários, desconexos, lampejos inúteis, cacarecos verbais de seres que mal o são. Como diz Malone: “o essencial se tornou tão mínimo que o fortuito parece sem limites”. Ou, como diz Mahood (de O inominável): “…tendo em vista a inutilidade de contar a si mesmo qualquer coisa que seja, para que o tempo passe, por que eu o faço, como se fossem necessárias razões para fazer qualquer coisa, para que o tempo passe, não importa, pode-se perguntar isso, para lembrete, por que o tempo não passa, não vos deixa, por que ele se amontoa à vossa volta, instante por instante, de todos os  lados, cada vez maia alto, cada vez mais espesso, vosso tempo, o dos outros, o dos velhos mortos e o dos mortos por nascer…”

O narrador nonagenário do sensaboroso Memórias de minhas putas tristes através da paixão  purificava-se da sua existência não-vivida até atingir uma espécie de virgindade interior que o tornaria compatível com uma adolescente virgem de 14 anos, trazendo-lhe a promessa de anos de vida a mais. É até covardia querer opor ao pior García Márquez um autor tão infinitamente superior quanto Beckett, mas que se pode fazer se o narrador de Malone Morre é (talvez) nonagenário também e se o livro foi relançado há pouco pela Códex ? A tentação era irresistível…

Aliás, é utilizada uma tradução de Paulo Leminski que ficou famosa em 1986, como a primeira realizada no Brasil. O responsável por esta coluna sempre se irritou com isso,  uma vez que conhecia o texto numa tradução satisfatória de Roberto Ballalai (editora Opera Mundi, 1973), que o arrogante  Leminski ignora em seu posfácio cheio de pose e bobagens (entre outras, dizer que traduziria o maior poema do século, The Waste Land, de T.S. Eliot, como Devastolândia, o que só seria admissível num apocalipse cultural).

Para dizer a verdade, nem a tradução pela qual ele se aurtocongratula, por ter sido feita a partir dos textos em francês (o original) e inglês (traduzido pelo próprio e expatriado irlandês Beckett), conjuntamente, é tão impecável. Há momentos em que perde feio para soluções de Ballalai.

Contudo Malone morre, e com ele morre a lógica do discurso, a vitória precária do romance sobre o mau infinito, o fio diretor que seria a forma biográfica. Só não morrem a paradoxal beleza do texto e o humor, que é uma experiência e tanto na leitura do autor de Malone morre: e se um dia eu me calar, é porque não há mais nada a dizer, embora nada tenha sido dito. Mas vamos deixar de lado esses assuntos mórbidos e vamos voltar ao tema da minha morte, daqui a uns 2 ou 3 dias se não me falha a memória… a menos que essa porra continue além-túmulo. Mas não vamos pôr o carro na frente dos bois, vamos morrer primeiro, depois vemos como é que fica.” Ou ainda: “…ao lado desta janela que às vezes eu me digo que deve ser uma pintura ilusória, como o teto de Tiepolo em Würzburg, que turista devo ter sido!, até do trema eu me lembrei.”

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2011/03/24/o-fim-nunca-chega-endgame-de-beckett/

 https://armonte.wordpress.com/2011/03/24/beckett-a-terra-devastada-no-manicomio-do-cranio/

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