(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de agosto de 1994)
Deve haver um médico sanitarista recalcado em Gabriel García Márquez. Antes foi o cólera, agora é a raiva em Do amor e outros demônios (Del amor y otros demônios, 1994, em tradução de Moacir Werneck de Castro), lançado pela Record com um alarde que ela não dava ao autor colombiano desde seu outro livro epidêmico, O amor nos tempos do cólera (1985).
Do amor e outros demônios nos leva ao século XVIII e mostra como o erudito padre Cayetano Delaura é enviado pelo seu protetor, o Bispo de Cáceres y Virtudes, para verificar se uma menina de 12 anos, Sierva Maria, que se encontra encerrada num convento, está de fato endemoniada (ou energúmena, como se diz no texto). Sierva fora mordida por um cão raivoso e não apresentara sintomas da doença. Ela e Delaura apaixonam-se, ele cai em desgraça e atiça-se a fúria episcopal contra a menina.
Márquez também nos apresenta as três mulheres da vida do pai de Sierva, Marquês de Casalduero, o qual “tinha o corpo esquálido, a timidez irremissível, a pele lívida, os olhos de um azul merencório, e o cobre puro da cabeleira radiosa”, herdados pela filha: seu amor de juventude, Dulce Olivia, encerrada num manicômio; sua primeira esposa, Dona Olalla, mulher de sociedade, morta por um raio; e a mãe da energúmena, que “soltava umas ventosidades explosivas e pestilentas que assustavam os mastins” e da qual os homens “fugiam em massa para se porem a salvo de sua voracidade insaciável”.
O romance é extremamente fácil de ler. O leitor mais atento encontrará um fundo alegórico na figura de Sierva Maria, a menina incapaz de assimilar o processo civilizatório, mas totalmente aberta à (contra)cultura dos escravos negros. Filha de um homem fraco, responsável pela decadência da família que, entretanto, ainda detém status e poder, ela bem pode ser a América resistindo à hegemonia europeia e promovendo um alegre (contudo incompreensível para a civilização cristã e com resultados trágicos) sincretismo, o que facilita o acesso à narrativa dos já um tanto desgastados recursos do “realismo fantástico”, que lhe dão ar de novela das oito.
Não são, porém tais toques telenovelescos (que sempre estiveram presentes em García Márquez e explodiram em O amor nos tempos do cólera) que assombram a leitura de Do amor e outros demônios como Sierva Maria assombra as freiras do convento. O problema é o relato monocórdio, outra ameaça que sempre pairou sobre as suas obras (detectável inclusive na mais famosa delas, Cem anos de solidão) e que ele conseguiu driblar de alguma forma em seus contos ou em textos com o grau de elaboração de Ninguém escreve ao coronel, O outono do patriarca e Crônica de uma morte anunciada. Depois deste último livro, parece que ele perdeu um tanto a mão e o tino para driblar a monotonia, deixando-se embalar pelas águas da cafonice folhetinesca, à exceção de O general em seu labirinto.
Talvez o leitor vá tão rápido na leitura, achando que acontece muita coisa, que nem repare no clima de lengalenga. E García Márquez continua, malgré lui, um escritor interessante. Só que ele instiga muito mais quando se perde no labirinto com seus generais e patriarcas outonais do que requentando, como uma bruxa velha jogando cabeleiras que não param de crescer, como tempero, o caldo do “fantástico”.
Bom que haja ainda pitadas labirínticas em Do amor e outros demônios. Sinal de que sempre se pode esperar uma futura obra-prima do único autor do grande boom da ficção latino-americana premiado com o Nobel[1].
VER TAMBÉM NO BLOG:
https://armonte.wordpress.com/2012/03/15/uma-boa-hora-na-obra-de-garcia-marquez/
http://armonte.wordpress.com/2014/04/17/garcia-marquez-basico/
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[1] Se não se levar em conta Miguel Angel Asturias (Nobel de 1967), o qual, de todo modo, pertence a um momento anterior.