MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

21/04/2014

CALDO REQUENTADO: “Do amor e outros demônios”

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de agosto de 1994)

Deve haver um médico sanitarista recalcado em Gabriel García Márquez. Antes foi o cólera, agora é a raiva em Do amor e outros demônios (Del amor y otros demônios, 1994, em tradução de Moacir Werneck de Castro), lançado pela Record com um alarde que ela não dava ao autor colombiano desde seu outro livro epidêmico, O amor nos tempos do cólera (1985).

Do amor e outros demônios nos leva ao século XVIII e mostra como o erudito padre Cayetano Delaura é enviado pelo seu protetor, o Bispo de Cáceres y Virtudes, para verificar se uma menina de 12 anos, Sierva Maria, que se encontra encerrada num convento, está de fato endemoniada (ou energúmena, como se diz no texto). Sierva fora mordida por um cão raivoso e não apresentara sintomas da doença. Ela e Delaura apaixonam-se, ele cai em desgraça e atiça-se a fúria episcopal contra a menina.

Márquez também nos apresenta as três mulheres da vida do pai de Sierva, Marquês de Casalduero, o qual “tinha o corpo esquálido, a timidez irremissível, a pele lívida, os olhos de um azul merencório, e o cobre puro da cabeleira radiosa”, herdados pela filha: seu amor de juventude, Dulce Olivia, encerrada num manicômio; sua primeira esposa, Dona Olalla, mulher de sociedade, morta por um raio; e a mãe da energúmena, que “soltava umas ventosidades explosivas e pestilentas que assustavam os mastins” e da qual os homens “fugiam em massa para se porem a salvo de sua voracidade insaciável”.

O romance é extremamente fácil de ler. O leitor mais atento encontrará um fundo alegórico na figura de Sierva Maria, a menina incapaz de assimilar o processo civilizatório, mas totalmente aberta à (contra)cultura dos escravos negros. Filha de um homem fraco, responsável pela decadência da família que, entretanto, ainda detém status e poder, ela bem pode ser a América resistindo à hegemonia europeia e promovendo um alegre (contudo incompreensível para a civilização cristã e com resultados trágicos) sincretismo, o que facilita o acesso à narrativa dos já um tanto desgastados recursos do “realismo fantástico”, que lhe dão ar de novela das oito.

Não são, porém tais toques telenovelescos (que sempre estiveram presentes em García Márquez e explodiram em O amor nos tempos do cólera) que assombram a leitura de Do amor e outros demônios como Sierva Maria assombra as freiras do convento. O problema é o relato monocórdio, outra ameaça que sempre pairou sobre as suas obras (detectável inclusive na mais famosa delas, Cem anos de solidão) e que ele conseguiu driblar de alguma forma em seus contos ou em textos com o grau de elaboração de Ninguém escreve ao coronel, O outono do patriarca e Crônica de uma morte anunciada. Depois deste último livro, parece que ele perdeu um tanto a mão e o tino para driblar a monotonia, deixando-se embalar pelas águas da cafonice folhetinesca, à exceção de O general em seu labirinto.

Talvez o leitor vá tão rápido na leitura, achando que acontece muita coisa, que nem repare no clima de lengalenga. E García Márquez continua, malgré lui, um escritor interessante. Só que ele instiga muito mais quando se perde no labirinto com seus generais e patriarcas outonais do que requentando, como uma bruxa velha jogando cabeleiras que não param de crescer, como tempero, o caldo do “fantástico”.

Bom que haja ainda pitadas labirínticas em Do amor e outros demônios. Sinal de que sempre se pode esperar uma futura obra-prima do único autor do grande boom da ficção latino-americana premiado com o Nobel[1].

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/03/15/uma-boa-hora-na-obra-de-garcia-marquez/

https://armonte.wordpress.com/2012/03/15/entre-a-implicancia-e-a-admiracao-a-necessidade-da-releitura/

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[1] Se não se levar em conta Miguel Angel Asturias (Nobel de 1967), o qual, de todo modo, pertence a um momento anterior.

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26/04/2013

Leituras em espelho: A CASA DAS BELAS ADORMECIDAS e MEMÓRIAS DE MINHAS PUTAS TRISTES

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I

O declínio como perversão: “A casa das belas adormecidas”, de Kawabata

Ao escrever Memórias de minhas putas tristes, Gabriel García Márquez abertamente utilizou uma situação erótica (cliente idoso que aproveita um serviço de prostituição no qual meninas ficam adormecidas a noite inteira) já explorada em um dos mais famosos romances de Yasunari Kawabata, A casa das belas adormecidas, traduzido há pouco tempo no  Brasil. Para não haver dúvida sobre sua dívida com o autor japonês, García Márquez colocou como epígrafe o início do livro.

Aos 67 anos, Eguchi descobre os prazeres da casa do título e nós o veremos em cinco noites (a última, com duas garotas, uma das quais aparentemente morre em pleno serviço, por assim dizer). Opostamente a Memórias de minhas putas tristes, a perversidade da situação inicial nunca é abrandada, nunca se cai no sentimentalismo ou no barateamento, por mais que às vezes o velho Eguchi se enterneça consigo mesmo.

Perversidade é o que não falta no universo de Kawabata, que, entretanto, pelo menos nos textos que o responsável por esta coluna conhece (infelizmente, apenas cinco), sempre a usa lucidamente, como Henry James ou Nabokov, de forma que mesmo aqueles que, como o velho Eguchi apresentam uma sensibilidade requintada e compassiva. nunca deixam de ser desmascarados em sua monstruosidade. Por isso mesmo, A casa das belas adormecidas merece ser descrito como um “belíssimo relato, tal como o fez Mario Vargas Llosa no recente A verdade das mentiras, onde sintetiza muito bem o fascínio ambíguo e mórbido do texto: “O erotismo é fantasia e teatro, sublimação do instinto sexual numa festa cujos protagonistas são os obscuros fantasmas do desejo que a imaginação anima e que anseia encarnar, detrás de um prazer escorregadio, fogo fátuo que parece próximo e é, quase sempre, inalcançável. Trata-se de um jogo altamente civilizado, ao que somente acedem culturas antigas que alcançaram elevado nível de desenvolvimento e já mostram sintomas de decadência”.

A casa das belas adormecidas é também um ponto-limite a que chega Don Juan, o arquétipo do conquistador (ou predador sexual, como diríamos hoje). O ideal don-juanesco é a variedade, e as meninas adormecidas, tão diferentes entre si, fornecem munição para ele. Entretanto, a condição em que elas permanecem consolida ironicamente a derrota de Eguchi: ninguém é seduzido, nada é de fato conquistado, não há nem poderia haver posse verdadeira, não há consciência nem reconhecimento, só há o poder e o abuso (e as possibilidades que abrem para a crueldade e a degradação ficam evidentes ao longo da narrativa).

Restará apenas a memória, outro festa do fugidio. E, como todo Don Juan/Narciso, Eguchi encontrará, já prenunciado pelo cheiro de leite de bebê que invade suas noites, pela obsessão com o seio feminino, pelo jogo de contraste entre branco e vermelho, o fantasma primordial: a mãe (quem explorou isso aqui no Brasil, infelizmente com um resultado tosco, foi Autran Dourado em Confissões de Narciso).

Ao pensar que uma das meninas pode ser “a última mulher da sua vida”, Eguchi matuta: “Então, quem foi a minha primeira mulher?… Foi minha mãe. Não podia ser nenhuma outra. Era uma resposta realmente inesperada.”

Não tão inesperada, é a associação imediata da lembrança da mãe com a sua morte (descrita cruamente). No “frio desgosto da velhice, nenhuma fantasia erótica, nenhuma depravação, consegue nos desembaraçar do confronto com a mortalidade. Por isso, como aconselha a misteriosa mulher que faz as transações com Eguchi, nessa obra-prima da literatura que é A casa das belas adormecidas, o melhor é tomar o sonífero que fica ao lado do leito, fechar os olhos e mergulhar no clima de sono e suspensão de qualquer realidade ultrajante.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 24 de setembro de 2005)

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II

A má hora de García Márquez

Confesso que nunca gostei muito de Gabriel García Márquez e já detestei Do amor e outros demônios. Não esperava, contudo, que Memória de minhas putas tristes (“Memoria de mis putas tristes”, tradução de Eric Nepomuceno) fosse tão chatinho e que nele sobressaíssem as piores características do estilo do autor colombiano: a renitente cafonice das imagens e analogias e a insuportável maneira de caracterizar as personagens. Por exemplo, a mãe do nonagenário narrador, “a mulher mais formosa e de melhor talento que jamais houve na cidade”. A noiva frustrada: “Tinha uns olhos de gata fujona, um corpo tão provocador com roupa ou sem, e uma cabeleira frondosa de ouro alvoroçado e cuja emanação de mulher me fazia chorar de raiva no travesseiro”. A empregada, jorgeamadianamente, tem “coxas suculentas”. A puta (nada triste) que o desvirginou: “ se chamava Castorina e era a rainha da casa… me apresentou ao seu mundo de maldição e pecado”.

Apesar de sua tendência monocórdica, cada vez mais acentuada, García Márquez tem a chamada “carpintaria”. É o elogio que se pode fazer quando um escritor é ruim ou comercial, mas funciona de alguma forma e não se tem nada melhor para dizer dele. É por isso que Memória de minhas putas tristes passa uma falsa impressão de texto perfeitinho e límpido, de “mestre”, quando na verdade é um produto kitsch, no qual se tem de agüentar trechos como aquele dos conselhos da ex-puta (nada triste) Casilda Armenta, para o nonagenário apaixonado pela menina virgem (será?) de 14 anos: “Vá correndo procurar essa pobre criatura mesmo que seja verdade o que dizem os seus ciúmes, não importa, o que você viveu ninguém rouba…Acorde a menina, fode ela até pelas orelhas com essa pica de burro com que o diabo premiou você pela sua covardia e mesquinhez. De verdade, terminou ela com a alma: não vá morrer sem experimentar a maravilha de trepar com amor.”

A suposta virgem adolescente não tem voz na narrativa. O que importa é a fantasia pessoal do narrador, o vento de Eros que sopra na sua velhice murcha e apagada, um vento que pode também ser presságio da morte. Isso fica claro no seguinte trecho: “na penumbra do quarto imaginando Delgadina em sua vida irreal de acordar os irmãos, vesti-los para a escola, servir o café da manhã, se houvesse o que pôr na mesa, e atravessar a cidade de bicicleta para cumprir a pena de pregar botões” (pois a menina é uma operária). Poderia ser um remexer emocionante da solidão e das suas emoções, mesmo descontada a repelente situação inicial, poderia ser um grande exercício de “embriaguez metódica”, como no fundo é toda descrição de paixão. Infelizmente, todo o pathos da narrativa é absorvido pelo clima de bolero, como confessa o narrador, melômano e crítico de música clássica: “Havia mudado o velho rádio por um de ondas curtas que mantinha sintonizado num programa de música culta, para que Delgadina aprendesse a dormir com os quartetos de Mozart, mas uma noite encontrei-o numa estação especializada em boleros da moda. Era o gosto dela, sem dúvida, e o assumi sem dor, pois em meus melhores dias eu também havia cultivado os boleros com o coração. Antes de voltar para casa no dia seguinte, escrevi no espelho com o baton: Minha menina, estamos sozinhos no mundo.” García Márquez nos faz ficar com raiva de palavras como Amor, Coração, Alma, Ardor e afins. Nonagenário por nonagenário, é preferível a aridez implacável do narrador de Malone morre, obra-prima de Samuel Beckett.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA, de Santos, em 10 de setembro de 2005)

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15/03/2012

Uma boa hora na obra de García Márquez

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 09 de setembro de 2006)

Antes de ficar famoso e superestimado com Cem anos de solidão (1967), Gabriel García Márquez já explorara seu universo ficcional de Macondo em alguns livros muito promissores. Um deles, A má hora (conhecido no Brasil como O veneno da madrugada, e traduzido por Joel Silveira), de 1962, foi reeditado agora pela Record.

Nele, García Márquez amplia o virtuosismo técnico que marcara o seu primeiro trabalho, La hojarasca (atualmente A revoada, mas cujo título anterior era O enterro do diabo), no qual três narradores (um menino, sua mãe e seu avô) se alternavam para contar a história. O grande problema: o tom das três narrativas, muito parecido, insinuando-se para o leitor o mal que assola a musa do demiurgo de Macondo: a tendência ao monocórdico.

Curiosamente, essa tendência se realizava de forma muito feliz no brilhante Ninguém escreve ao coronel (narrado numa terceira pessoa que nunca difere muito das primeiras pessoas em García Márquez), talvez o seu melhor texto, apesar da beleza de O outono do patriarca, porque se casava a um relato em que havia uma opressiva e repetitiva espera e um clima de fracasso generalizado.

A má hora (não há como negar que a tradução literal tira a graça do título original, La mala hora) mostra Macondo já como uma cidade derrotada, esquecida no tempo e no espaço. Nessa pasmaceira, pasquins misteriosos delatam crimes e pecados de determinados cidadãos. Há um assassinato e a investigação que o novo Alcaide promove serve como pretexto para impor um estado de sítio e para que ele efetive um sutil plano de corrupção, de forma a enriquecer o mais rápido possível. Ele que fora flagrado a princípio como vítima de um problema dentário que o reduzia à prostração, vai revertendo o quadro aos poucos (e através de pequenas frases, como na cena em que conversa com o empresário de um circo que vem se apresentar na cidade. O empresário diz: É um espetáculo completo, para crianças e adultos”. Seu interlocutor: “Isso não basta. É preciso que seja próprio também para o Alcaide”; numa cena posterior maravilhosa, ele fica indignado com um aviso do barbeiro proibindo discussões políticas no seu estabelecimento: Aqui o único que tem direito de proibir qualquer coisa é o governo. Estamos numa democracia”) até que temos a sensação de que verdadeiramente se apossou de Macondo.

Apesar de um certo arrastamento, A má hora é um livro talentoso e muito melhor do que quase todo o García Márquez posterior (tirando o já citado Outono do patriarca e Crônica de uma morte anunciada o que veio depois sempre deixou a desejar). Ele experimenta um tipo de narrativa-mosaico, onde cada capítulo ganha um crivo coletivo, centrando o foco narrativo em diversas personagens, de uma forma que Macondo emerge como a personagem central do romance, mais até do que os personagens relevantes, caso de padre Ángel ou do Alcaide. Um dos episódios principais, aliás, ganhou outra versão, menos melodramática e colorida, num dos contos (“Um dia desses”) da coletânea Os funerais da mamãe grande: trata-se do momento em que o Alcaide ao invés de humilhar-se para pedir ajuda ao dentista, inimigo do governo, invade a sua casa com policiais armados.

Depois da má hora para a literatura que foi Memórias de minhas putas tristes, o leitor tem a possibilidade de constatar o que perdeu no caminho, de 1962 para cá.

 

Entre a implicância e a admiração: A NECESSIDADE DA RELEITURA

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 29 de dezembro de 2007)

Na resenha da semana passada desta coluna, sobre  as obras-primas que chegam ao cinqüentenário em 2007, poderia ter  incluído  Ninguém escreve ao coronel. Muito mais destaque, porém, se deu na mídia ao longo dos últimos meses aos 40 anos de Cem anos de solidão, obra bem mais famosa de Gabriel García Márquez. E agora o centro das atenções é O amor nos tempos do cólera(“El amor en los tiempos del colera” ,em tradução de Antonio Callado) publicado originalmente em 1985, por causa da adaptação cinematográfica que me parece uma daquelas saladas internacionais, propiciando misturas que dificilmente ficarão digeríveis.

O saldo de uma primeira leitura à época e que persistiu como impressão durante 20 anos era que se tratava de uma ladainha interminável, uma lengalenga narrativa redimida aqui e ali por micro-histórias notáveis. O clima de novelão e a cafonice de antemão estabelecida nas relações do trio central (Florentino Ariza que alimenta por 50 anos seu amor por Fermina Daza, esposa e depois viúva do médico Juvenal Urbino) estragavam o conjunto. Nessa visão negativa, também entrava certa implicância renitente com relação ao autor colombiano.

Pois uma segunda leitura, e um pouco mais de experiência de vida, fizeram com que esse juízo crítico sofresse uma revisão. Ainda há coisas que me incomodam, desacertos entre este leitor em particular e o universo de García Márquez, ainda há um lado cansativo na empreitada de ir até o fim do livro. O que não se pode negar, a essa altura, é que O amor nos tempos do cólera é um livro admirável, na maior parte do tempo.

Trata-se também de um excelente romance histórico no sentido mais legítimo, porque García Márquez não se propôs meramente a escrever sobre a passagem do século 19 para o 20 no Caribe: ele nos deu a mentalidade, a percepção, a linguagem da época, inclusive nos anacronismos de suas personagens, defasadas às vezes no quesito vestuário ou comportamento.

É fascinante a maneira como a “flor” da civilização humana, o amor, no sentido de depuração, de sublimação, até mesmo de cosa mentale (Florentino cultivando sua devoção a Fermina, por exemplo, e bordando e rebordando o tema nas inúmeras correspondências que leva a cabo na trama), e todo o comportamento romântico, são contrastados o tempo todo com a materialidade quase nauseante do mundo, que se presentifica em epidemias e endemias, em falta de higiene, charcos, mangues, esgotos, cloacas, cheiros corporais, monturos, doenças venéreas (sem contar a decadência, o arrivismo, as hierarquias e hipocrisias), até chegar à grande sensação de “waste land” por conta da degradação ambiental que a mesma civilização que cultiva o amor deixou como rastro apocalíptico na natureza outrora exuberante, como se vê na grande viagem fluvial que fecha de forma brilhante a narrativa: É o pouco que nos vai restando do rio, disse o comandante. Florentino Ariza…percebeu que o rio pai, o Madalena, um dos maiores do mundo, não passava de uma ilusão da memória…em vez do emaranhado de árvores colossais que o assombrara na primeira viagem, havia planícies calcinadas, destroços de selvas inteiras devoradas pelas caldeiras dos navios, escombros de povoados abandonados de Deus… Em lugar da algaravia dos louros e do escândalo dos micos invisíveis que em outros tempos aumentavam o bochorno do meio-dia, só restava o vasto silêncio da terra arrasada.”

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