-uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 08 de julho de 2014;
-uma versão da resenha abaixo foi publicada em LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO em 09 de julho de 2014- VER:
http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2014/07/imre-kertesz-o-filho-incorrigivel-das.html
Em Eu, um outro (1997), Imre Kertész deu a si mesmo uma veredito irrevogável: “Sou filho incorrigível de ditaduras, ser estigmatizado é minha particularidade”.
Vinte anos antes, em História policial [Detektívtörténe], curto romance lançado agora no Brasil pela Tordesilhas, o Nobel de literatura de 2002 examinava de forma implacável a lógica das ditaduras (infelizmente, Direita e Esquerda, em suas contrafações, equivalendo-se no tocante aos resultados históricos): mesmo que calcadas, a princípio, em lutas pela justiça social, não passam de projetos de poder, tudo o mais se subordina à sua manutenção; para isso, tornam-se “estados policiais”, mantendo os cidadãos sob vigilância, apelando para o arbítrio, a tortura, a supressão de qualquer oposição.
Numa passagem arrepiante, um torturador afirma: “O mundo seria diferente se nós, policiais, fôssemos unidos… Não apenas aqui em casa, mas no mundo todo”. O narrador, “novato” no ramo, replica: “Você quer dizer também os policiais dos países inimigos?”, obtendo a seguinte resposta: “Os policiais nunca são inimigos, em lugar algum” [1].
Kertész tinha um background nada invejável (se não levarmos em consideração o rendimento literário) para seu esmiuçar cirúrgico dos fundamentos dos regimes totalitários: aos 14 anos, foi enviado para Auschwitz, Buchenwald e Zeitz, campos de concentração nazistas, experiência-limite que propiciou a base de seu romance de estreia (ainda seu livro mais famoso), Sem Destino (1975), certamente um dos relatos mais desconcertantes e perturbadores sobre o tema[2]; depois da guerra, viu seu país, a Hungria, transformar-se num dos satélites da União Soviética: uma tentativa de revolução, em 1956, foi esmagada virulentamente, transformando-se no evento cristalizador da desilusão de toda uma geração com o comunismo.
Transpondo a ação para um país imaginário da América Latina, para cavar a publicação (as editoras, como de praxe no universo soviético e adjacências, eram estatais e submetidas à censura), Kertész conseguiu criar não só uma alegoria da opressão em seu país natal, como também (sem que esse fosse seu objetivo) uma síntese acurada dos processos truculentos então levados a cabo na nossa realidade latino-americana, com sua cota trágica de regimes autoritários de direita, ou seja, o outro lado do espelho.
História policial narra a investigação que leva à prisão de Enrique, filho do importante empresário Federico Salinas, que almeja participar da luta clandestina contra o governo, sempre esbarrando na hostilidade e desconfiança contra a sua classe social. Após um episódio emblemático (fora alvo de uma diligência policial ao, provocativamente, ficar abaixo do limite de velocidade permitido numa faixa de rodovia próxima a um dos sinistros locais de reclusão de presos políticos; contudo, sua condição de membro de uma família importante o salvaguardara de represálias maiores), ao desabafar com o pai, descobre que este pertencia a um grupo de resistência. Vigiado de perto, e num momento em que há a ameaça de um atentado (verdadeiro ou fabricado pelos agentes do regime, pouco importa), Enrique é levado para o “Departamento”. Seu pai, iludido quanto à própria imunidade pessoal, ali adentra para se informar do seu paradeiro, e o destino de ambos ali é selado.
Além da dinâmica da relação entre Federico e Enrique (há uma revelação surpreendente quanto a isso), o grande achado de História policial é que a narrativa é feita por um dos torturadores, justamente o “novato”, aquele que ainda está aprendendo os códigos da ação repressiva. Após a queda do governo, preso, confessa que está em sua posse o diário pessoal de Enrique, pelo qual tem um peculiar apego, verdadeira fascinação (eu, um outro?).
Através desse diário, ficamos sabendo que a insatisfação do mauricinho vai além da situação política, escancarando um mal estar que os frequentadores da obra de Imre Kertész (além das já citadas, o ambicioso romance O Fiasco, por exemplo, onde podemos ler a seguinte passagem: “se bem que ocorreu a Köves: será que o homem já não vive de um jeito impossível de viver, e ao final acaba descobrindo que apesar de tudo sua vida teria que ser essa?”[3]) reconhecerão de imediato: “Parece que após a filosofia do existencialismo só poderia vir a filosofia do não existencialismo. Ou seja: a filosofia do existir sem existir”[4]. E então o leitor começa a se perguntar que tipo de pessoa pode ser, de fato, o novato: “Fiz o curso, passei por uma lavagem cerebral. Não foi o suficiente, longe disso”.
Outro trunfo do texto é a sua sugestão dos horrores praticados no “Departamento”, sem ser preciso nenhum detalhe explícito. De explícito, apenas o horror da lógica totalitária, como na cena em que um tabelião colaborador do regime é submetido à tortura por sua associação meramente comercial com Federico Salinas:
“__ Não entendo os senhores, não os entendo. O que querem de mim? Pois se o Estado confia em mim…
__ Bem, sim.—Díaz balançava a cabeça como um professor primário.—O problema é que nós não confiamos no Estado…
__ Não entendo, não entendo… Então acreditam em quê?
__ No destino. Mas no momento nós é que assumimos o papel do destino: portanto, em nós mesmo—disse Díaz com seu sorriso inigualável…”
È a esse destino que o filho incorrigível e pródigo sempre retorna.
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NOTAS
[1] Utilizo a tradução de Gabor Aranyi. Nessa versão lançada pela Tordesilhas há uma passagem que ficou estranhíssima em português, logo no Prefácio do autor, escrito em 2004 para a edição alemã. Nele, Kertész relata como História policial surgiu a partir da recusa de um romance anterior (seu segundo), O rastejador (ainda não lançado em português, mas conhecido em inglês como The pathseeker); lemos então que o diretor da editora (que aprovara a publicação do primeiro romance do autor húngaro, Sem destino) “leu O rastejador e também o editaria de bom grado—declarou-me—se fosse um texto maior. Um livro precisava ao menos de dez páginas (sic) inteiras para que tivesse corpo, e o meu texto não passava de seis páginas (sic), se tanto. Sugeriu-me que acrescentasse algo. Então me veio à mente o enredo de História policial”.
Bem, ou na Hungria o conceito de página é diferente do nosso, ou aí há um grosseiro erro de interpretação,e um ainda mais grosseiro de revisão.
Devo dizer, embora lamentando (por causa da louvável iniciativa editorial) que esse desleixo de revisão é constante nas edições que a Planeta fez das obras de Kertész (foram lançados quatro importantes títulos: Sem destino; O fiasco; Eu, um outro; A bandeira inglesa). Na tradução de Sandra Nagy para Eu, um outro, lemos: “Pois é: no final das contas, fora os meus dois livros, o Sem destino e o Fiasco, que acabavam de ser publicados naquele mesmo ano, nada mais constava da lista dos meus crimes”. Ora, a Planeta editou tanto Sem destino, que é de 1975, quanto O fiasco, que é de 1988, ninguém ali se deu conta do absurdo da passagem?!
Os outros títulos kertészianos lançados até agora no nosso país são Kadish, por uma criança não nascida (Imago), que compõe uma trilogia com Sem destino e O fiasco; a coletânea de ensaios A língua exilada e o primeiro romance pós-Nobel, Liquidação (ambos pela Companhia das Letras).
[2] Como amostra, transcrevo a extraordinária passagem do anúncio da libertação dos prisioneiros do campo (utilizando a tradução de Paulo Schiller):
“Talvez já fosse quatro da tarde quando, por fim, o alto-falante emitiu alguns estalidos e, depois de um breve chiado e de sons sibilantes, deu a entender a nós todos que era o Lagerältester… Kamaraden, disse, lutando audivelmente contra um sentimento que o asfixiava e ora o fazia engasgar, ora a voz fica mais aguda, gemente, wit sind frei!, ou seja, estamos livres (…) e para minha grande surpresa, de repente: Atenção, atenção! O comitê húngaro do campo…—e pensei: nem suspeitava que isso existisse! Porém, não valeu a pena prestar atenção, pois também ele, como todos antes dele, só falou sobre a libertação e não fez nenhuma referência à sopa que não tinha vindo. Eu também fiquei muito feliz, sim, naturalmente, por estarmos livres, mas não tenho culpa de ter sido obrigado a pensar em outra coisa… A noite de abril estava escura, Pjetyka também havia voltado, vermelho, excitado, cheio de milhares de palavras incompreensíveis, quando o Lagerältester se apresentou de novo pelo alto-falante. Dessa vez, dirigiu-se aos membros do antigo destacamento dos Kartoffelschäler pedindo-lhes que fizessem a gentileza de reassumir os postos na cozinha, e aos demais moradores do campo solicitou que ficassem acordados ao menos até o meio da noite, pois começaram a cozinhar uma grossa sopa de gulash; só então me deitei, aliviado, no travesseiro; só então alguma coisa se desprendeu lentamente de mim, e só então pensei—talvez pela primeira vez com seriedade—na liberdade”.
[3] Cujas primeiras 100 páginas são uma experiência formal desafiadora, com seus parênteses incessantes e frases que vão e volta para depois mergulhar numa fábula kafkiana, cuja atmosfera pode ser exemplificado pelo seguinte diálogo entre Köves (o protagonista) e a mulher que o aloja em casa:
““ __ Sim, Köves disse, só que não estou trabalhando para nenhum jornal—depois, pouco se incomodando com a decepção que poderia causar à mulher (quem sabe ela até já se tenha vangloriado de ter um inquilino jornalista)—acrescentou rapidamente: Fui despedido…
__ Então foi despedido—a locadora falou de novo, agora com certa familiaridade, como se não tivessem mais nada a esconder um do outro, ao mesmo tempo com a voz baixa, como se não quisesse que outros a ouvissem (apesar de ninguém mais estar no quarto além deles)—Por quê?…
__E pode-se saber?
__ Não—respondeu a mulher, deixando-se pender lentamente sobre a cadeira, momentos antes oferecida porém logo recusada, enquanto toda e qualquer expressão abandonava seu rosto, como se de repente se tivesse dado conta de sua incomensurável fadiga—não se pode… O senhor sabe… às vezes sinto que já não entendo mais nada…” (utilizo, fazendo algumas adaptações, a tradução de Ildikó Sütö).
[4] Não concordo nem um pouco com Luís S. Krausz, no posfácio à edição da Tordesilhas, intitulado Nos subterrâneos do século XX, quando diz que o “não existencialismo” é uma “cultura de resignação”, “única postura viável diante das arbitrariedades”. Fosse uma ética de resignação, a obra de Kertész perderia boa parte da sua força. Eu diria que é uma tortuosa ética de teimosia e obstinação, o que é muito, muito diferente.
Resignação, ou conformismo, é o que Enrique Salinas observa (revoltado) à sua volta, ou seja, a acomodação ao regime, ao ponto de seus aspectos mais gritantes tornarem-se “invisíveis”, parte da paisagem social: “Estava andando pela cidade. Fazia um calor infernal. À minha volta, a algazarra noturna de sempre. Casais de namorados nas calçadas e gente se acotovelando rumo aos cinemas e às casas noturnas. Como se nada tivesse acontecido, nada. Vivendo sua vida inexistente. Ou será que eles existem e eu não? Na rua, um ou outro parecia ter perdido alguma coisa. Por toda parte se via gente com cara de policial, farejando, ouvindo as conversas e pensando que ninguém se incomoda com eles. E estão certos: as pessoas não se incomodam com eles. Bastaram esses poucos meses para se acostumarem com eles”.