MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

13/07/2013

ESTRELA CADENTE: Roberto Bolaño, o visgo da literatura e o desgaste da aura de um autor

A meus amigos Miguel Loureiro e Maria Valéria Rezende, antípodas quanto ao assunto.

De la violencia, de la verdadera violencia, no se puede escapar, al menos nosotros, los nacidos em Latinoamérica en la década de los cincuenta, los que rondábamos los veinte años cuando murió Salvador Allende”… (El ojo silva, em Putas asesinas, Roberto Bolaño)

Em 1968, enquanto os estudantes erguiam barricadas e os futuros romancistas da França quebravam com tijolos as janelas de suas escolas ou faziam amor pela primeira vez, ele decidiu fundar a seita ou o movimento dos Escritores Bárbaros. Assim, enquanto alguns intelectuais saíam de suas casas para ocupar as ruas, o ex-legionário se fechou em seu cubículo de zelador da rue Des Eaux e começou a dar forma à sua nova literatura. A aprendizagem se fazia em dois passos aparentemente simples. O confinamento e a leitura (…) O segundo passo era mais complicado. Segundo Delorme, era preciso se fundir com as obras-primas. Isso se obtinha de uma forma bastante curiosa: defecando sobre as páginas de Stendhal, assoando o nariz com as páginas de Victor Hugo, masturbando-se e espalhando esperma sobre as páginas de Gautier ou Banville, vomitando nas páginas de Daudet, urinando sobre as páginas de Lamartine, cortando-se com lâminas de barbear e fazendo respingar o sangue nas páginas de Balzac ou Maupassant, submetendo os livros, enfim, a um processo de degradação que Delorme chamaca de humanização. O resultado, depois de uma semana de ritual ´bárbaro´, era um apartamento ou quarto cheio de livros destroçados, sujeira e mau-cheiro onde o aprendiz de escritor se punha a boquear relaxadamente, nu ou de shorts, sujo e convulso como um recém-nascido ou, mais precisamente, como o primeiro peixe a ter decidido dar o salto e viver fora da água…” (trecho de ESTRELA DISTANTE)

Antes de abordar de modo específico ESTRELA DISTANTE (Estrella distante, 1996, na tradução de Bernardo Ajzenberg), quero compartilhar um dilema com meus leitores: considero Roberto Bolaño (1953-2003) um grande escritor, mas tirando suas obras monumentais, Os detetives selvagens & 2666, e com a exceção de A pista do gelo e de alguns contos, a maioria do que ele escreveu pode ser considerada ruim, incluindo o romance de que ora me ocupo. Cada título publicado no Brasil parece diminuir a “aura” do escritor. A pista do gelo (do qual talvez eu goste mais por ter lido na sequência e embalo de Detetives selvagens), Noturno do Chile, Amuleto, Estrela distante (durante muito tempo mantive uma posição ambivalente sobre estes dois últimos, não me atrevendo a achá-los fracos, mas já decepcionado), Monsieur Pain (este, especialmente tosco), Putas assassinas, Chamadas telefônicas. Tenho agora a impressão de ouvir um samba de uma nota só, de que cada livro só consegue resistir a uma impressão crítica mais forte, evocando-se os livros maiores e o conjunto da obra, e que ao fim e ao cabo a literatura foi um visgo que prendeu Bolaño e contaminou irremediavelmente sua visão sobre a vida e os fatos históricos. Ele parece incapaz de refletir sobre (e narrar o) mundo sem o recurso de aludir a movimentos literários, a querelas entre literatos. A literatura parece um muro de Berlim. Quando ela adquire proporções ciclópicas, no caso dos dois romances já citados (Detetives selvagens & 2666), todos ganhamos com isso. Nos romances “menores”, a impressão que se tem é que Bolaño patina na falta de assunto e revela-se incapaz, na maior parte das vezes, de escrever uma narrativa que forme um todo.

Como já é de conhecimento amplo, ao se saber irremediavelmente doente, talvez condenado, ele passou a escrever e publicar de forma ininterrupta, nos dez anos que precederam sua morte precoce. Foram lançados tanto livros de escritura mais antiga (como Monsieur Pain, que é do começo dos anos 1980, mas publicado em 1999) quanto os livros que ele ia escrevendo.

ESTRELA DISTANTE é de 1996. Como o próprio autor alega, esse pequeno romance desenvolve um dos capítulos de La literatura nazi en América, espécie de história universal da infâmia, em que ele traça minibiografias ficcionais. Daí surge a figura do poeta de vanguarda que também é militar e torturador. E um serial killer, que se compraz no assassinato de mulheres (como as delicadas irmãs poetas que ele visita e executa, uma das quais, aliás, sua amante), e que depois fotografa o resultado dos seus crimes.

Assim como Bolaño se duplica em Arturo Belano e aposta seu destino na literatura, mais especificamente na poesia, Alberto Ruiz-Tagle se duplica em Carlos Wieder (aliás, depois ele vai se multiplicar em heterônimos, avatares e codinomes), que faz a mesma aposta, apesar de que a “poesia”, no seu caso se multiplica também em outras formas de expressão (o assassinato, a aviação, a fotografia).

É preciso dizer que para alguém que teve de se haver com o golpe contra o presidente Allende e a ditadura militar de Pinochet durante toda a sua carreira literária, foram poucos os resultados “felizes”,pois obras “chilenas” como Noturno do Chile estão longe de ser interessantes como as mexicano-espanholas.

Mesmo assim, dessa vez ele tinha tudo para acertar, já que a vinculação nazismo-a poesia como expressão da morte, ao invés de exaltação da vida—o golpe militar no Chile, cristalizada na figura de Wieder, era fascinante.

Além do mais, a tessitura da narrativa, em que os fatos são relembrados via terceiros muitas vezes, e portanto é um “ouvi dizer”, um”pode ser que tenha sido assim”, ou seja, adquire-se um tom conjectural, hipotético, muito adequado a uma figura fugidia, evasiva, ajudaria muito a manter o ar evanescente e misterioso da “estrela distante” Carlos Wieder: “Tudo o que se relatou talvez tenha sido assim mesmo. Talvez não. Pode ser que os generais da Força Aérea Chilena não tenham levado suas mulheres. Pode ser que o aeródromo Capitán Lindstrom jamais tenha sido cenário de um recital de poesia aérea. Talvez Wieder tenha escrito seu poema nos céus de Santiago sem pedir autorização a ninguém, sem avisar ninguém, embora isso seja menos provável. Talvez naquele dia nem tenha chovido sobre Santiago, embora haja testemunhas (gente ociosa que olhava para o céu num banco de praça, solitários debruçados numa janela) que ainda se lembram das palavras no céu e, depois, da chuva purificadora. Mas talvez tudo tenha ocorrido de outra maneira. Em 1974, as alucinações não eram pouco frequentes…”

E também seria pertinente, nesse caso, o exame dos grupos literários, das oficinas de poesia, das trajetórias dos candidatos a poeta da época, em face aos acontecimentos políticos e ao destino chileno.

Porém, após um primeiro capítulo estupendo, ESTRELA DISTANTE patina em todos os vícios bolañescos, sem que haja uma estrutura grandiosa que os absorva, como o caso do irregularíssimo mas poderoso Os detetives selvagens. Há, é claro, momentos incríveis, pois como já disse, não vou deixar de achar Bolaño um grande escritor, mas todos são comprometidos por uma amorfia narrativa, por uma contaminação de tudo pela literatura (no pior sentido), que chega a ser irritante a leitura. Quando aparece o policial Abel Romero e engaja Belano numa investigação do paradeiro de Wieder na Europa, o livro degringola de vez, a meu ver.

Mesmo assim, prefiro ESTRELA DISTANTE mil vezes a Amuleto e principalmente a Noturno do Chile, que considero intragável. Mas será que se não existissem Detetives selvagens ou 2666 alguém ainda daria atenção maior a esses textos, será que eu teria essa postura ambivalente, tendendo à condescendência? Eis o meu dilema, leitor.

13/05/2012

DEZ DESTAQUES DE 2009

Pessoalmente, sempre acho meio ridículo fazer lista de melhores. O mercado editorial é um oceano e uma pessoa só consegue, no máximo, indicar gotas desse oceano (a metáfora não é muito rica, porém é bem exata). De tudo o que li em 2009, proponho dez destaques, levando em conta o ineditismo dos livros, apesar de 2009 ter sido um ano pródigo em novas traduções: por exemplo, surgiram versões novas de Cem anos de solidão, O  inominável,  Fundação, Zazie no metrô, O turista acidental , Alice no país das maravilhas, e um vasto etc.

Outro destaque à parte foram os livros relacionados ao Evolucionismo  e certamente, nesse quesito, além do seu brilhantismo próprio, Richard Dawkins foi o campeão, com A grande história da evolução & O maior espetáculo da terra (este último, nem comprei ainda…).

Após esse preâmbulo, passo à minha lista de destaques (outros livros vêm à minha mente, mas quero me ater a esse número   redondo):

10)  Após o anoitecer, de Haruki Murakami (Alfaguara)- belo romance japonês que nos mergulha nas cambiâncias da “modernidade líquida” (como Zygmunt Bauman caracterizou nossa época) que não pouparam nem o mundo oriental.

9) Suicídios exemplares, de Enrique Vila-Matas (CosacNaify)- deliciosa e provocante coletânea de histórias cuja temática já e indicada pelo título., grande momento do autor espanhol. Espere mais ironia que drama, leitor..

8) Buscas curiosas, de Margaret Atwood (Rocco)- A grande escritora canadense reuniu textos onde comenta outros escritores, a feitura de alguns de seus livros e circunstâncias biográficas. O resultado é tão apaixonante quante sua própria ficção.

7) Leite derramado, de Chico Buarque (Companhia das Letras)- O melhor, mais inspirado, romance de Chico até agora, e simplesmente um texto primoroso, de primeira. Um século transcorre diante dos nossos olhos com uma insustentável leveza de estilo, e uma mirada poderosa no racismo latente em nossa sociedade. Maior poeta da nossa MPB, Chico agora também é um dos nossos grandes prosadores.

6) Dois grandes momentos da ficção uruguaia,: o primeiro livro de Juan Carlos Onetti (cujo centenário foi comemorado em 2009), O poço (1939), reunido a Para uma tumba sem nome (1959), numa edição da Planeta; e Primavera num espelho partido, de Mario Benedetti (Alfaguara), belíssimo romance político, utilizando a forma polifônica (muitas vozes) e comprovando a maestria de uma das grandes perdas do ano passado.

5) Súplicas atendidas, de Truman Capote (L&PM)- Apesar de inacabado e um pouco desagradável, é fascinante esse painel moralista do jet set americano e europeu entre os anos 40 e  70, que apresenta alguns momentos geniais, em meio a fofocas e revanches. Também vale destacar o atraso com que foi traduzido e o descaso com que foi traduzido.

4) Modernismo, de Peter Gay (Companhia das letras)- Foi bastante atacado esse esforço enciclopédico do grande historiador e biógrafo de Freud. Mas eu o acho admirável e necessário. Numa época de fragmentação, é preciso haver esses exercícios de totalização, e o Modernismo é ainda o nosso último horizonte “estável”.  O mundo seria muito mais sem graça se não existissem Peter Gay e Richard Dawkins.

3) Amuleto & Estrela distante, de Roberto Bolaño (Companhia das Letras)- Embora nenhum dos dois tenha a amplitude suprema de Detetives selvagens, talvez o maior livro dos últimos anos, mostram como Bolaño, junto com W.G. Sebald (aliás,  o grande livro de Sebald, Os emigrantes, foi reeditado este ano, também pela Companhia. das Letras, havendo uma edição anterior pela Record), é o morto mais vivo da ficção contemporânea (ele morreu, pateticamente, aos 50 anos, esperando por um transplante de fígado foi publicada e conhecida quase toda postumamente).

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2) Um anarquista e outros contos, de Joseph Conrad (Hedra)- É até engraçado colocar o genial Conrad num segundo lugar, uma vez que ele é um dos autor-referência, mesmo nas suas histórias curtas, escritas no início do século passado, e que abordam temas ainda atualíssimos (terrorismo e publicidade, por exemplo).Também é outro caso de atraso lamentável em matéria de tradução. É preciso também destacar o papel importante da editora em colocar títulos surpreendentes no mercado, na mesma série à qual pertence o livro do genial escritor polonês.

1) As aventuras de Augie March, de Saul Bellow (Companhia das Letras)- Outro caso estrondoso de descaso e atraso  Esse livro de 1953 estbeleceu definitivamente a reputação de Saul Bellow, um dos maiores escritores norte-americanos, e muitos ainda o consideram sua obra-prima. Talvez não seja (eu prefiro por exemplo, O planeta do sr. Sammler, publicado dez anos depois, e há ainda Herzog  & o esplêndido O legado de Humboldt), mas é um dos seus melhores livros. É bom lembrar que outra grande obra de Bellow, Henderson, o rei da chuva, tornou-se cinquentenária agora em 2009, e assim aproveito para corrigir uma omissão que cometi no meu post a respeito das comemorações literárias deste ano. Agora: se o romance de Bellow é o grande destaque do ano, a capa escolhida é uma das piores, simplesmente horrorosa.

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