MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

29/06/2013

A PELE LARGADA DE VILA-MATAS

enrique-vila-matas210122g

Num dos melhores livros do moçambicano Mia Couto, A Varanda do frangipani, um dos personagens, Salufo Tuco tem o hábito de se vestir com retalhos de tecidos, remendos mal costurados:Se apresentava assim para renovar memórias de sua inicial juventude. Recordava os primeiros pagamentos que recebeu como ajudante de alfaiate. O patrão era um indiano e lhe pagava o salário não em dinheiro mas em sobras de panos. Vestindo-se de remendos, Salufo se transferia para os perdidos paraísos da infância? Não sei. Uma vez lhe perguntei, ele negou. Retorquiu assim: a cobra pode reinstalar-se na pele que largou?”

Esse dilema (reinstalar-se numa pele que se largou) é o mote de Paris não tem fim [“París no se acaba nunca”2003, em tradução de Joca Reiners Terron] do espanhol Enrique Vila-Matas (diga-se de passagem um escritor antípoda ao autor de A varanda do frangipani), narrativa-conferência sobre a ironia, segundo o autor. E a ironia incide justamente sobre a época (meados dos anos 70) da juventude do então candidato a escritor, o qual fora morar em Paris mobilizado pelo charme da conjunção vida literária & boêmia que ressaltava das páginas de Paris é uma festa, de Ernest Hemingway, o livro clássico na descrição mitológica da chamada “geração perdida” nos anos 20 (Hemingway, o casal Fitzgerald, Gertrude Stein…).

Paris não tem fim nos relata como, ao escrever o seu primeiro livro (A assassina ilustrada), Vila-Matas se transformou num escritor antípoda a Hemingway: enquanto este utilizava os dados vitais, as experiências biográficas, as quais foram minguando, o que levou o escritor norte-americano mais famoso do século XX ao desespero e ao suicídio, nosso ofídico e viperino autor que procura a pele perdida preferiu fazer o que se pode chamar de ficção borgiana por excelência, na qual a literatura é o ponto de partida e não o de chegada.

Para dar graça à situação, o gancho utilizado por Vila-Matas é a sua insistência ao longo dos anos de uma semelhança física que haveria entre ele e Hemingway, ao ponto de participar de um concurso de sósias. A teimosia é absurda e se torna emblemática das ilusões do jovem escritor que foi inquilino de Marguerite Duras, a quem presta uma homenagem ambivalente. É na casa dela que ele começa a intuir o que de fato representa o poder das palavras escritas como meio de adquirir certa distância do que chamavam realidade…essa necessidade que tinha das palavras…que elas pudessem ser úteis para me distanciar do mundo real. Seguramente comecei a me tornar de fato um escritor naquelas escadarias. Mas, como ainda não tivera acesso à ironia, as palavras pouco podiam fazer por mim naquele dia…”

Para se apreciar Paris não tem fim é preciso ter um pouco essa predisposição para a literatura enquanto afastamento deliberado do real e exercício da ironia, embora no plano anedótico o relato memorialístico não seja desprovido daqueles dados vitais e daquelas experiências biográficas que tanto fizeram falta a Hemingway na solidão frente à velhice e ao esgotamento criativo em Ketchum, Idaho. Como  não sou  de todo afeito a essa dieta de palavras, ainda não me dei por satisfeito na minha visitação ao mundo de Vila-Matas. Porém, como Paris não tem fim…

resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de abril de 2008

Paris-é-uma-festa-680x1054paris-no-se-acaba-nunca

09/06/2012

SUICÍDIOS EXEMPLARES: Vila-Matas e a boa e velha arte de contar estórias

E pensar que eu nem tinha muito entusiasmo em ler SUICÍDIOS EXEMPLARES (a versão de Carla Branco para Suicidios Ejemplares), não obstante o título tentador. Pois a mim aborrecia, e ainda aborrece, o  lado enfatuado, cabotino, o fastidioso rótulo de “escritor para escritores” que Enrique Vila-Matas carrega, e que não passa de complacência mútua entre escritores: posso muito bem aceitar, como diz Paul Auster na Trilogia de Nova York, que uma estória no fundo tenha mais a ver com outras estórias do que com a realidade. Mas criar uma obra baseada em “conversa entre escritores”, já me parece o que na adolescência chamávamos de punhetagem intelectual, se me for perdoada a grosseria.

Após ler Paris não tem fim (que é de 2003),Bartleby e Companhia (2004),  e A viagem vertical (1999), já tinha a minha cota de Enrique Vila-Matas. Creio que o problema está naquilo que foi exaltado recentemente por Leyla Perrone-Moisés num extenso artigo sobre uma suposta “literatura exigente” em que o componente principal de um certo tipo de prática ficcional é a desconfiança, sob cujo prisma todos os elementos da narrativa (e seus elos com uma realidade sempre entre aspas) são colocados sob suspeita, dissolvidos num texto basicamente paraliterário. Não deixando de observar que nem nos seus momentos mais irritantes, Vila-Matas se limitou a ser apenas isso, um escritorzinho da literatura exigente e desconfiada, nem por isso ele se isenta dessa ideologia aberrante; nessa linha de raciocínio, uma ode à literatura “exigente” (para mim, sempre tem que vir com aspas um termo tão arrogante) se assemelha muito com aquelas apologias da consumação do capitalismo, em que se apregoa que o mercado é a nossa realidade última e que todas as alternativas são pruridos de um utopismo míope e de uma fixação infantil numa Grande Narrativa já desmantelada (que, em termos literários, significaria a literatura de enredo e mimética).

Pela ordem da publicação no Brasil, SUICÍDIOS EXEMPLARES foi o quinto lançamento. No entanto, era mais antigo que os demais. Sua publicação original foi em 1991.

Em 1991, portanto, Vila-Matas podia já trazer inoculado o vírus da desconfiança e do fazer literário como “conversa entre escritores” que tanto mal fez à sua feição posterior como um todo (embora eu tenha gostado bem mais de Doutor Pasavento e Dublinesca do que daqueles livros já citados), mas ele acreditava suficientemente na arte de criar e contar estórias para nos dar o seu livro (entre os que eu conheço, é claro) mais brilhante, o livro que talvez o redimirá no futuro de todo o enfatuamento, toda a “pose”, do personagem cabotino que ele adora representar.

Considero o admirável SUICÍDIOS EXEMPLARES uma obra-prima (coloquei-o, inclusive, na minha lista para o jornal A TRIBUNA de Santos, dos  dez destaques de 2009). Só não precisava (e esse é um indício do mal que estava por vir) das molduras, uma no começo (Viajar, perder países, que quase me fez desistir da leitura) e no fim (Mas não façamos literatura, onde se cita Mário de Sá-Carneiro escrevendo a Fernando Pessoa, porque, claro, a literatura “exigente” é uma “conversa entre escritores”).

Tirando essas inutilidades, que podem servir para os acadêmicos entreterem-se mutuamente em congressos e revistas especializadas, gozando as delícias das referências infinitas,  temos dez estórias a um só tempo deliciosas e inquietantes, poéticas e dissolventes. Sempre gostei da máxima de Guimarães Rosa (citada por Autran Dourado em Uma poética de romance: matéria de carpintaria), “faça pirâmides não faça biscoitos” que serviria de divisa para vários monumentos modernistas (A montanha mágica, Em busca do tempo perdido, Ulisses, O homem sem qualidades, o próprio Grande sertão: veredas); também há um lado “biscoito fino” que os leitores um dia deveriam provar (aqui já estamos em Oswald de Andrade), que sempre me encantou em certas obras, como a de Calvino, o exercício da leveza como improvável veículo da ficção, um veículo intrigante e quase paradoxal (e aqui não enveredarei pelas dicotomias estéreis e caducas, para não dizer arrogantes, entre “literatura exigente” e “literatura mais palatável e mimética”). Quando um escritor consegue fabricar um biscoito dessa qualidade, nós pressentimos a pirâmide fantasmática que enseja esse feito.

São, então, dez estórias da mais alta qualidade. Todas são da mesma qualidade? Penso que não, entretanto todas ganham força no conjunto.

A minha favorita absoluta entre as dez (embora eu deva destacar que foi o impacto da primeira, Morte por saudade, que me fez reavaliar toda a desconfiança que mantinha sobre Enrique Vila-Matas; por isso creio que ela deveria figurar como hors concours) é a terceira Rosa Schwarzer volta à vida: a protagonista, vigilante de museu em Düsseldorf  e uma dona de casa profundamente infeliz, sente o chamado do “país dos suicidas” em que vive “O príncipe negro” do quadro de Klee:

“Influi nisso tudo a segunda-feira que viveu ontem? Eu diria que sim. Ontem, Rosa Schwarzer fez cinquenta anos, e como o museu fecha às segunda, achou que teria toda a manhã para preparar o almoço de aniversário. Mas já desde o primeiro momento tudo se complicou enormemente.”

Deixo para a imaginação ou para futura leitura o que complica o aniversário de Rosa, mas só adianto que ela vai ficar perto do suicídio várias vezes nesse dia e que Enrique Vila-Matas criou um conto antológico. Se um dia eu preparasse, para meu próprio deleite, um volume com meus textos curtos prediletos, esse seria um dos que eu escolheria.

Também poderia escolher a estória anterior, Em busca do parceiro eletrizante, onde o narrador fica famoso como “tipo” cômico por sua magreza. Quando sua carreira (e conta bancária) entra em declínio por ter engordado, procura um parceiro de tipo oposto. Mas só o encontrará sob a forma de um fantasma, numa das reviravoltas sensacionais da narrativa.

Gosto demais também da nona estória, Os amores que duram por toda uma vida, na qual a maneira como o autor encena a coisa toda, com a narrativa dos fatos, feita/enfeitada? pela neta e ouvida/desacreditada? pela avó, torna tudo mais opressivo e denso.

No mesmo nível ainda temos Uma invenção muito prática, a sétima estória, com uma narradora missivista que bem poderia pertencer ao universo de Ricardo Lísias, na sua performance através de uma corda bamba de loucura e lucidez corrosiva (e eu me pergunto, perplexo, como Enrique Vila-Matas pode ser tomado/valorizado sobretudo como escritor metalinguístico quando já demonstrou a capacidade de criar situações e personagens assim!).

E, como já disse, foi a primeira estória, Morte por saudade, que me conquistou irresistivelmente. Trata-se de um texto riquíssimo sobre a infância, sobre as vidas possíveis, sobre as escolhas irrevogáveis e traz uma modalidade de suicídio absolutamente poética e admirável, que poderia ser praticada nas cidades invisíveis de Calvino, malgrado transcorra numa cidade bem concreta, Lisboa.

E o autor espanhol ainda se deu ao luxo de escrever um curto e belíssimo texto de extração quase cortazariana, A hora dos cansados, a sexta estória, em que Barcelona se torna o palco de perseguições insólitas entre vários personagens que nem se conhecem.

Já não gosto tanto, apesar da sua qualidade e refinamento, de  A arte de desaparecer (a quarta estória) e O colecionador de tempestades (a décima e última). São inteligentes, interessantes, mas a primeira delas já me parece trazer o lado artificioso de Vila-Matas (é a estória de um escritor secreto, o qual, quando sua obra se dá a conhecer a um editor, resolve desaparecer e recriar sua vida em outro lugar; o detalhe mais interessante é que ele é um nativo de Umbertha, palco da trama, mas construiu toda uma vida, após a guerra, fingindo ser estrangeiro); a segunda, onde um suicídio longamente preparado parecia finalmente chegar a bom termo, num livro em que as disposições efetivas não se efetivam (e quem de fato se mata está fora de cena), é sustado por um acidente, parece uma paródia daquelas  estórias de invenções bizarras (até o cenário da câmara mortuária ajuda a criar esse efeito), de Poe a Wells, narrada numa espécie de evocação à Henry James. Gosto, mas não sou apaixonado por elas.

E as duas estórias de que menos gosto, que definitivamente não me “pegaram” e que valem basicamente por estar num conjunto  poderoso são a quinta, As noites da íris negra, onde há um “clube do suicídio” a respeito do qual alguns membros que não conseguiram se matar mantém uma nostalgia que se resolve através da hostilidade mútua e um clima de mistério e intriga para o casal protagonista, e Pedem que eu diga quem eu sou, a oitava, em que me parece (posso estar enganado) uma reflexão sério-jocosa sobre a questão do exotismo, da atração por uma paisagem muito nitidamente geográfica e colorida por parte de uma parcela de artistas europeus (além de se valer de forma pícara e às avessas do tema fáustico, apresentando como personagem Satam Alive—brincadeira com o próprio nome de Vila Matas lido de trás pra frente). Veja bem, leitor, o fato de elas não terem me conquistado muito, ou eu não os ter compreendido muito bem, não lhes tira o nível de refinamento literário ou lança qualquer suspeita sobre sua qualidade. É uma questão de preferência pessoal.

Agora eu torço para encontrar outro SUICÍDIOS EXEMPLARES na obra de Vila-Matas. Expectativa talvez injusta, mas fazer o quê?

TRECHOS DAS ESTÓRIAS

“__Os últimos minutos da vida do meu avô—dizia-me Horácio—foram os mais intensos de uma vida intensa.

__E o que aconteceu nesses minutos?—supunha-se que eu devia perguntar. Mas não o fazia. Estava bastante atormentado com tantas histórias do avô. Mas era contraproducente não perguntar, porque então o mais habitual era que voltasse à carga com uma nova aventura do avô. Acabou conseguindo que eu perdesse a paciência, e uma tarde impedi sua passagem num canto do pátio quadrangular do colégio, dizendo-lhe:

__ Vamos acabar com isso, acho que já chega.Se o que você queria era me atormentar, é claro que conseguiu. Vamos acabar com isso de uma vez, me conta como o seu avô morreu, a vida dele eu já sei de cor, me conta agora esses minutos finais tão intensos da vida dele.

__Sério? Quer que eu conte mesmo? –me perguntava enquanto lançava um olhar terrível, como se fosse um crime que naquele pátio, onde só se respirava um tédio profundo, eu lhe exigisse (precisamente eu, que nunca terminava nada) completar um quadro, a história da vida de seu querido avô…” (Morte por saudade)

“Contribuiu para minha irresistível ascensão a cômica e exagerada magreza de meu corpo (as pessoas riam porque, quando eu andava, parecia uma folha levada pelo vento), mas esse mesmo traço físico não demoraria a se voltar tragicamente contra mim (…) Tive namoradas, dancei boleros, acariciei morenas, cantei o amor. Mas o infortúnio espreitava no ângulo mais iluminado de meu festivo jardim, e sem me dar conta, comecei a me abandonar. Como se existisse uma relação secreta entre a casa e a obesidade, comecei pouco a pouco a engordar, e quando me dei conta já nenhuma dieta era capaz de frear o irreversível processo, minha trágica transformação. E assim cheguei à última sexta-feira da década de sessenta: a ver navios, sem namoradas, transformado em um Brandy Mostaza desconhecido, um gordo infame que havia perdido sua veia cômica…” (Em busca do parceiro eletrizante)

“Não, também não seria dessa vez que tiraria sua vida. Seu pobre filho, seu querido Hans, merecia jantar comida quente aquela noite. Levantou-se, jogou o que restava da peruca no lixo, riu feito uma louca, e provou o pão de centeio.

  Porém, ao cair da tarde, seu pobre e querido Hans voltou para casa e nem sequer se interessou pelo leitão assado, nem perguntou  por que ela tinha demorado tanto no cabeleireiro, tampouco se queixou de ter tido de comer o frango frio da geladeira, nada, nem sequer a olhou e, portanto, não teve oportunidade de ver o escandaloso cabelo de piaçava branco que sua mãe exibia. Apenas a cumprimentou sem entusiasmo e pediu que ela pregasse os botões da camisa. Mas não a olhou. Rosa Schwarzer compreendeu que seu filho não se interessava nada por ela…” (Rosa Schwarzer volta à vida)

“Entre as medidas para poder viver como escritor secreto, a mais curiosa era o que havia tramado há mais de quarenta anos: a de morar em seu próprio país, a pequena e sedutora, mesmo que terrivelmente mesquinha, ilha de Umbertha, fazendo-se passar por estrangeiro. Foi fácil enganar todo mundo, porque o trágico e brutal desaparecimento de toda  sua família na guerra o ajudou na mudança de identidade. De repente, certa noite, todos mortos, Anatol compreendeu que estava só, completamente só no mundo, e sentiu essa sensação de extravio que se vive quando, no caminho, voltamos atrás e vemos o trecho percorrido, a via indiferente que se perde num horizonte que já não é o nosso….” (A arte de desaparecer)

“É da incumbência—li em voz mais baixa, quase sussurrante—de todos os sócios de nossa entidade saber que quando a carta do número 3 dos Notáveis chegou à sede central desta Sociedade de Simpatizantes da Noite da Íris Negra de Port del Vent, que tenho a grande honra de co-presidir, não tardamos em nos reunir, os Notáveis restantes, para ver o que faríamos a fim de satisfazer plenamente, e com a maior prontidão possível, os desejos desse amigo que, antes de tornar-se o assassino de si mesmo, desejava que seus íntimos acudíssemos a visitar sua casa e, falando toda a noite de filosofia, o acompanhássemos nas horas anteriores à desse gesto valente e final com que desejava ser fiel à máxima de nossa Sociedade, ou seja, desaparecer digna e serenamente depois de uma grande festa do espírito de uma vibrante homenagem à amizade e ao amor à filosofia, à maneira de um Catão ou de um Sêneca, cujas mortes são, ainda em nossos dias, o mais perfeito exemplo e modelo do suicídio clássico e sereno, profundamente mediterrâneo…” (As noites da Íris Negra)

Perto de uma das portas laterais da catedral, localizo perseguido e perseguidor. Recupero a calma ao retomar o terceiro lugar na singular procissão, mas não é uma calma total, já que do golpe contra o muro ficou uma dor que vai ganhando intensidade, e se não se pode dizer que eu vejo estrelas, vejo sim um foco de luz, como um lustre de milhares de lâmpadas. Meio cego pela luz, vejo que o velho se detém em frente a uma das portas laterais, tira da maleta um chaveiro magnífico e entra no que deve ser a sacristia da catedral. Tudo acontece muito rápido. E depois de uma sonora batida da porta, o velho desaparece da minha vista sem nem sequer dedicar-me um olhar de desculpas por ter arruinado a minha diversão. Sem nem sequer um adeus, um olhar de desprezo ou de compaixão. Nada. Desaparece como um raio, e me deixa perseguindo o negro. Penso que eu talvez esteja enganado, que o velho na verdade não perseguia ninguém, talvez estivesse apenas transportando uma bomba que fará voar pelos ares a catedral…” (A hora dos cansados)

“Fiquei tão sozinha que, de repente, os sons do andar de cima e do de baixo, começaram a me obcecar seriamente: no sétimo andar, sapatos de salto alto e brincadeiras aquáticas, entre outros horrores; no quinto, gritos e brigas entre pai e filho, de grande dramaticidade. Tudo isso foi me consumindo num desespero maníaco que me levou a tentar catalogar as diferentes modalidades de ruídos dos vizinhos.

   Sequelas, talvez, de sua má vizinhança naquele verão em Alicante? Não sei, mas a verdade é que me bateu um maníaco desespero. Depois de setenta anos respeitando muitíssimo os outros, tentando sempre, mesmo que fosse apenas por educação, não incomodar nunca e, definitivamente, perdendo a vida por delicadeza, começou a parecer tremendamente injusto que o prêmio para a minha conduta irrepreensível e a minha discrição perfeita fosse essa contínua perturbação dos vizinhos (…) Achei muito penoso que tudo isso acontecesse comigo, precisamente comigo, que jamais quis incomodar ninguém e sempre tentei passar por este mundo com passos de bailarina, leve, nas pontas dos pés pela vida. E quis me matar, é verdade, você não está enganada…” (Uma invenção muito prática)

“__ E o que o senhor sabe de mim?

    Com essa pergunta, conseguiu que eu voltasse a me indignar. Continuava resistindo em me ver como um homem instruído. Por que eu não podia conhecer de memória a sua obra?

__Sei, por exemplo, que o senhor jamais esteve em Babàkua, nem sequer em pintura.

__Puxa, em pintura sim é que estive—brincou com cinismo, sem dúvida inquieto e surpreendido ao ver que eu, um pobre-diabo, sabia bastante sobre sua vida.

__ E também sei—disse—que se tivesse se incomodado alguma vez em pisar nessa terra diabólica, saberia o quão intensamente equivocadas são todas as suas pinturas. Não posso deixar de rir quando penso em todos esses críticos que o consideram o último realisa…” (Pedem que eu diga quem eu sou)

“E em parte ela tem razão. Atropelo-me ao contar, estou nervosa.  Deveria contar as coisas de um modo mais calmo, para que pudesse me entender melhor; deveria contá-las do jeito que ela faz, ainda que na verdade a coitada tampouco as conte de um modo perfeitamente ordenado; além disso, repete-se, repete-se muito. Uma amiga me disse que minha avó só tinha uma história e por isso se repetia tanto. Se isso é verdade, supero minha avó em histórias, porque tenho, no mínimo, duas: a da cédula que voou (com a qual talvez se pareça muito o resto das histórias que até agora inventei) e a deste fim de semana em Cerler. Deus meus, tenho duas. Mas a segunda preferia não ter. E também acho que deveria demorar menos para contá-la. Porque está certo que vá preparando minha avó para a terrível notícia final, mas não acho que seja necessário ir tão devagar…”  (Os amores que duram por toda uma vida)

“Uma semana depois, Mestre deixou de aparecer na hora costumeira no mercado. Passados três dias sem que fosse visto, seus amigos forçaram a porta do palácio e desceram à cripta, que encontraram aberta. Entre descargas de trovões e visões de tempestades distantes, encontraram o cadáver do Mestre que, segundo todos os indícios, tinha sido surpreendido por uma taque do coração quando estava enlaçando duas arandelas com um cronômetro.

   Não teve tempo de concluir seu grande projeto. A morte—sempre tão estupidamente cômica—o surpreendeu antes de poder ver terminada a obra. Toda Bergamo ficou impressionada pela cenografia e magnitude da cripta. Nela o enterramos…” (O colecionador de tempestades)

13/05/2012

DEZ DESTAQUES DE 2009

Pessoalmente, sempre acho meio ridículo fazer lista de melhores. O mercado editorial é um oceano e uma pessoa só consegue, no máximo, indicar gotas desse oceano (a metáfora não é muito rica, porém é bem exata). De tudo o que li em 2009, proponho dez destaques, levando em conta o ineditismo dos livros, apesar de 2009 ter sido um ano pródigo em novas traduções: por exemplo, surgiram versões novas de Cem anos de solidão, O  inominável,  Fundação, Zazie no metrô, O turista acidental , Alice no país das maravilhas, e um vasto etc.

Outro destaque à parte foram os livros relacionados ao Evolucionismo  e certamente, nesse quesito, além do seu brilhantismo próprio, Richard Dawkins foi o campeão, com A grande história da evolução & O maior espetáculo da terra (este último, nem comprei ainda…).

Após esse preâmbulo, passo à minha lista de destaques (outros livros vêm à minha mente, mas quero me ater a esse número   redondo):

10)  Após o anoitecer, de Haruki Murakami (Alfaguara)- belo romance japonês que nos mergulha nas cambiâncias da “modernidade líquida” (como Zygmunt Bauman caracterizou nossa época) que não pouparam nem o mundo oriental.

9) Suicídios exemplares, de Enrique Vila-Matas (CosacNaify)- deliciosa e provocante coletânea de histórias cuja temática já e indicada pelo título., grande momento do autor espanhol. Espere mais ironia que drama, leitor..

8) Buscas curiosas, de Margaret Atwood (Rocco)- A grande escritora canadense reuniu textos onde comenta outros escritores, a feitura de alguns de seus livros e circunstâncias biográficas. O resultado é tão apaixonante quante sua própria ficção.

7) Leite derramado, de Chico Buarque (Companhia das Letras)- O melhor, mais inspirado, romance de Chico até agora, e simplesmente um texto primoroso, de primeira. Um século transcorre diante dos nossos olhos com uma insustentável leveza de estilo, e uma mirada poderosa no racismo latente em nossa sociedade. Maior poeta da nossa MPB, Chico agora também é um dos nossos grandes prosadores.

6) Dois grandes momentos da ficção uruguaia,: o primeiro livro de Juan Carlos Onetti (cujo centenário foi comemorado em 2009), O poço (1939), reunido a Para uma tumba sem nome (1959), numa edição da Planeta; e Primavera num espelho partido, de Mario Benedetti (Alfaguara), belíssimo romance político, utilizando a forma polifônica (muitas vozes) e comprovando a maestria de uma das grandes perdas do ano passado.

5) Súplicas atendidas, de Truman Capote (L&PM)- Apesar de inacabado e um pouco desagradável, é fascinante esse painel moralista do jet set americano e europeu entre os anos 40 e  70, que apresenta alguns momentos geniais, em meio a fofocas e revanches. Também vale destacar o atraso com que foi traduzido e o descaso com que foi traduzido.

4) Modernismo, de Peter Gay (Companhia das letras)- Foi bastante atacado esse esforço enciclopédico do grande historiador e biógrafo de Freud. Mas eu o acho admirável e necessário. Numa época de fragmentação, é preciso haver esses exercícios de totalização, e o Modernismo é ainda o nosso último horizonte “estável”.  O mundo seria muito mais sem graça se não existissem Peter Gay e Richard Dawkins.

3) Amuleto & Estrela distante, de Roberto Bolaño (Companhia das Letras)- Embora nenhum dos dois tenha a amplitude suprema de Detetives selvagens, talvez o maior livro dos últimos anos, mostram como Bolaño, junto com W.G. Sebald (aliás,  o grande livro de Sebald, Os emigrantes, foi reeditado este ano, também pela Companhia. das Letras, havendo uma edição anterior pela Record), é o morto mais vivo da ficção contemporânea (ele morreu, pateticamente, aos 50 anos, esperando por um transplante de fígado foi publicada e conhecida quase toda postumamente).

.

2) Um anarquista e outros contos, de Joseph Conrad (Hedra)- É até engraçado colocar o genial Conrad num segundo lugar, uma vez que ele é um dos autor-referência, mesmo nas suas histórias curtas, escritas no início do século passado, e que abordam temas ainda atualíssimos (terrorismo e publicidade, por exemplo).Também é outro caso de atraso lamentável em matéria de tradução. É preciso também destacar o papel importante da editora em colocar títulos surpreendentes no mercado, na mesma série à qual pertence o livro do genial escritor polonês.

1) As aventuras de Augie March, de Saul Bellow (Companhia das Letras)- Outro caso estrondoso de descaso e atraso  Esse livro de 1953 estbeleceu definitivamente a reputação de Saul Bellow, um dos maiores escritores norte-americanos, e muitos ainda o consideram sua obra-prima. Talvez não seja (eu prefiro por exemplo, O planeta do sr. Sammler, publicado dez anos depois, e há ainda Herzog  & o esplêndido O legado de Humboldt), mas é um dos seus melhores livros. É bom lembrar que outra grande obra de Bellow, Henderson, o rei da chuva, tornou-se cinquentenária agora em 2009, e assim aproveito para corrigir uma omissão que cometi no meu post a respeito das comemorações literárias deste ano. Agora: se o romance de Bellow é o grande destaque do ano, a capa escolhida é uma das piores, simplesmente horrorosa.

SOB O SIGNO DE BAUMAN: ficções da Modernidade Líquida: Vila-Matas, Chico Buarque…

 

paris não tem fim

A PELE LARGADA DE VILA-MATAS

 

Num dos belos livros do moçambicano Mia Couto, A Varanda do frangipani, um dos personagens, Salufo Tuco tem o hábito de se vestir com retalhos de tecidos, remendos mal costurados: Se apresentava assim para renovar memórias de sua inicial juventude. Recordava os primeiros pagamentos que recebeu como ajudante de alfaiate. O patrão era um indiano e lhe pagava o salário não em dinheiro mas em sobras de panos. Vestindo-se de remendos, Salufo se transferia para os perdidos paraísos da infância? Não sei. Uma vez lhe perguntei, ele negou. Retorquiu assim: a cobra pode reinstalar-se na pele que largou?”

Esse dilema (reinstalar-se numa pele que se largou) é o mote de Paris não tem fim do espanhol Enrique Vila-Matas (diga-se de passagemm um escritor antípoda ao autor de A varanda do frangipani), narrativa-conferência sobre a ironia, segundo o autor. E a ironia incide justamente sobre a época (meados dos anos 70) da juventude do então candidato a escritor, o qual fora morar em Paris mobilizado pelo charme da conjunção vida literária & boêmia que ressaltava das páginas de Paris é uma festa, de Ernest Hemingway, o livro clássico na descrição mitológica da chamada “geração perdida” nos anos 20 (Hemingway, o casal Fitzgerald, Gertrude Stein…).

Paris não tem fim nos relata como, ao escrever o seu primeiro livro (A assassina ilustrada), Vila-Matas se transformou num escritor antípoda a Hemingway: enquanto este utilizava os dados vitais, as experiências biográficas, as quais foram minguando, o que levou o escritor norte-americano mais famoso do século XX ao desespero e ao suicídio, nosso ofídico e viperino autor que procura a pele perdida preferiu fazer o que se pode chamar de ficção borgiana por excelência, na qual a literatura é o ponto de partida e não o de chegada.

enrique vila-matas1210688443hemingway2

Para dar graça à situação, o gancho utilizado por Vila-Matas é a sua insistência ao longo dos anos de uma semelhança física que haveria entre ele e Hemingway, ao ponto de participar de um concurso de sósias. A teimosia é absurda e se torna emblemática das ilusões do jovem escritor que foi inquilino de Marguerite Duras, a quem presta uma homenagem ambivalente. É na casa dela que ele começa a intuir o que de fato representa o poder das palavras escritas como meio de adquirir certa distância do que chamavam realidade…essa necessidade que tinha das palavras…que elas pudessem ser úteis para me distanciar do mundo real. Seguramente comecei a me tornar de fato um escritor naquelas escadarias. Mas, como ainda não tivera acesso à ironia, as palavras pouco podiam fazer por mim naquele dia…”

Para se apreciar (quando não se conhece as demais obras do autor) Paris não tem fim é preciso ter um pouco essa predisposição para a literatura enquanto afastamento deliberado do real e exercício da ironia, embora no plano anedótico o relato memorialístico não seja desprovido daqueles dados vitais e daquelas experiências biográficas que tanto fizeram falta a Hemingway na solidão frente à velhice e ao esgotamento criativo em Ketchum, Idaho. Como  não sou  de todo afeito a essa dieta de palavras, ainda não me dei por satisfeito na minha chegada ao mundo de Vila-Matas. Porém, como Paris não tem fim…

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de abril de 2008)

 

A POESIA POTENCIAL DA VIDA DERRAPANDO NA PISTA DA PROSA


budapestebuarque de hollanda

NA VIDA FANTASMA, A VERDADE DE UM ESCRITOR…

 “…depois de casado, nos dias em que estava seguro de haver escrito um texto de grande inspiração… meu desejo era o de que a Vanda o lesse. Então comprava vários exemplares do jornal e os deixava com meu artigo à mostra no caminho dela, na mesa de jantar, em cima do telefone, no berço do menino, junto ao espelho do banheiro. Ver a Vanda correr os olhos sobre as minhas letras, esboçar um sorriso, apreciar um texto meu sem saber que o era, seria quase como vê-la se despir sem saber que eu a estava olhando. Mas não, ela pegava o jornal e revirava as páginas, olhava umas fotografias, lia as legendas, a Vanda não tinha paciência para grandes leituras. Daí meu estupor ao saber de sua boca que ela lera meu livro, não uma, mas três vezes… tive pena e orgulho de mim, era  como se duas palavras dela reparassem sete anos de descaso”.

No trecho acima, José Costa, narrador e protagonista do festejado Budapeste, de Chico Buarque, esclarece, caso alguém ainda tivesse dúvidas, as suas prioridades. Acima de tudo, a palavra escrita, obsessivamente praticada por ele, como escritor fantasma, orgulhando-se  –-nesta época patética onde ser uma celebridade por 15 minutos conta tanto— do seu anonimato.

Escritor fantasma, Costa apaixonar-se-á por uma cidade fantasma, a do título, por causa de uns fiapos de linguagem, de algumas palavras ouvidas numa escala forçada de viagem: “Tratava-se de um pão de abóbora, conforme o maître informou em inglês, mas eu não queria a receita da broa, queria saborear seu som em húngaro”. Chega a participar de congressos de escritores anônimos, em várias partes do mundo, nestes tempos de globalização nos quais uma cidade equivale à outra, de tal forma que percorrer um mapa, trancado num quarto de hotel, pode substituir a experiência real, o que combina com um estilo de vida fundamentalmente fantasmático: Não me aborrecia caminhar assim num mapa, talvez porque sempre tive a vaga sensação de ser eu também o mapa de uma pessoa”.

Por isso, se pode entender que para José Costa é uma traição ao seu código de vida revelar à mulher que é o verdadeiro autor de um livro, num acesso de ciúme; também não causará espécie saber que ele abandona o outro pólo amoroso (húngaro) da narrativa, Kriska, por não ver apreciada a obra assinada por outro, e principalmente por ela não perceber como seu antigo aluno passou a dominar o seu idioma natal. É um amor tão grande pela (s) língua (s) e seu uso, que, num outro momento de ruptura, ao perceber que ela está prestes a xingá-lo com uma palavrão desconhecido, lemos: “A palavra estava ali nos seus lábios vacilantes, devia ser uma palavra que ela nunca se atrevera a pronunciar. Devia ser uma palavra arcaica, uma palavra caída em desuso de tão atroz. Devia ser a única palavra que eu não conhecia em todo o vocabulário magiar, devia ser uma palavra estupenda. Então não me contive e supliquei: fala”.

Também se pode entender, por isso, que a grande ironia da história será quando publicarem um livro cujo autor é José Costa (ou mais precisamente, Zsose Kósta), mas que ele não escreveu, um livro que o torna uma celebridade…

Budapeste é um romance danado de engenhoso. Tem um nível de elaboração de linguagem (o qual se reflete inclusive na sua paradoxal limpidez) quase desconhecido hoje em dia na ficção brasileira, a não ser em raríssimas obras. Como Chico Buarque escreve bem! Além disso, ele se livra de vez da aura fantasmática, da aura do “quase”, de obra-potencial, nebulosa e anticlimática, que marcou seu primeiro romance, Estorvo, cuja bruma já havia sido um pouco (mas só um pouco) dissipada com o romance seguinte, Benjamim.

Por que então sua leitura não satisfaz plenamente? Talvez porque, quando o livro se encaminha para uma maior densidade, uma verticalização do universo fantasmagórico do pós-moderno, o qual ele delineou tão lindamente, com suas cidades intercambiáveis, com seus hotéis impessoais, com um cosmopolitismo que se traduz em uniformização, em que todos os tipos de relação se deterioram (como na cena em que José Costa reencontra o filho crescido, que fica a um passo de agredi-lo gratuitamente, sem aparentemente reconhecê-lo: “…talvez soubesse desde o início que eu era seu pai, e por isso me olhava daquele jeito, por isso me encurralava no muro. E fechou o punho, armou o golpe, acho que ia me acertar o fígado…”), enfim, tudo que vai contra a complexidade da língua enquanto parte viva do nosso ser, Chico recua visivelmente e nos proporciona soluções decerto prazerosas de ler, porém aquém do rigor e do vigor de um João Gilberto Noll ou de um Bernardo Carvalho, entre os expoentes brasileiros da perplexidade, da inquietude e da insubstancialidade no cenário literário atual, para não falar do grande Paul Auster, que, aliás, leu trechos de Budapeste no congresso de escritores nada anônimos que é a FLIP, em 2004. Outra sensação desagradável é que parece termos lido tudo isso, com maior contundência, outras vezes. A diluição é agradável, porém, ainda assim, diluição, placebo, simulacro…

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,em 22 de junho de 2004, e aqui reproduzida com ligeiras modificações)

chico

15 DESTAQUES DE 2010

(uma versão reduzida saiu em A TRIBUNA de Santos de 04 de janeiro de 2011)

É sempre  bom esclarecer que quando um crítico propõe destaques entre as publicações de um ano, ele não está propondo uma lista de melhores, o que seria risível. Quem lê tudo o que se lança num ano? E se lesse, que tipo de pessoa seria essa?  Por exemplo, saíram em 2009 e são dois dos melhores livros da década  A fantástica vida breve de Oscar Wao, de Junot Díaz, e Quando haverá boas notícias, de Kate Atkinson, e o leitor não os encontrará na minha lista do ano passado. O mesmo deverá acontecer com lançamentos de 2010, que não tive oportunidade de ler. Também não entrarão na minha lista obras que ganharam nova tradução, caso de reaparições importantíssimas, como  Walden, de Thoreau, nas mãos especialíssimas de Denise Bottmann, ou as novas versões dos romances de William Kennedy (A grande jogada de Billy Phelan & Ironweed), ou de Henderson, o rei da chuva, de Saul Bellow, ou ainda de A verdadeira vida de Sebastian Knight, de Nabokov, só para citar alguns; ou então  novas edições de autores essenciais (é o caso de dois lançamentos primorosos do ano que acabou, os Contos Completos de Lima Barreto e a edição conjunta de Diário do Hospício  & Cemitério dos Vivos).

Tendo em mente essas limitações, eis 15 lançamentos imprescindíveis do último ano (em comentários sumários e necessariamente superficialíssimos):

1)Sartoris, de William Faulkner (CosacNaify)-  Romance fundador, que em 1929 deu início à saga da decadência sulista, representada pelo mítico condado de Yoknapatawapha, um dos lugares fundamentais da ficção,  e em que a obsessão do maior escritor norte-americano pelo tempo se traduz numa narrativa  caleidoscópica fascinante.

2) Verão, de J.M. Coetzee, e Invisível, de Paul Auster (Companhia das Letras)-  Dois dos mais notáveis escritores da pós-modernidade no auge de sua maestria, em relatos que se aproximam do limite do relato tal como conhecemos.

3) Memórias Inventadas, de Manoel de Barros (Planeta)- Um poeta que se recusa a sair da infância e vet o mundo e a linguagem  com outros olhos que não sejam os da não-domesticidade, do não-conformismo. O resultado é uma poesia-brincadeira-infantil muito séria e contundente. Neste ano também, pela Leya saiu a sua Obra Completa, a qual preencheria um ano todo da vida de um leitor.

4) O arquipélago da insônia, de António Lobo Antunes (Alfaguara)- O mais lírico e pungente dos livros ciclópicos publicados pelo grande autor português nesta última década, chegando ao requinte de ter um narrador autista. Também prova cabalmente como a lição de Faulkner foi fecunda. Mas poucos o seguiram com tal radicalismo.

5)A câmara de inverno, de Anne Michaels (Companhia das Letras)- Finalmente, depois de mais de uma década,  o segundo romance da fabulosa autora canadense, que já criara um fascinante deslocamento geográfico em  Peças em fuga. Memória, esquecimento, conservação, deterioração, os opostos se atraem nessa autêntica poesia da prosa, incursão bissexta no gênero narrativo de uma poetisa consagrada.

6) Senhores e Criados e Outras Histórias, de Pierre Michon (Record)- O grande autor francês, de Vidas minúsculas, aproxima a ficção  da pintura e do relato biográfico, em três textos, pelos quais circulam figuras como Van Gogh, Goya, Watteau, Piero della Francesca ou Claude Lorrain. Michon é da estirpe de um W. G. Sebald ou de um Claudio Magris.

7) Um homem apaixonado, de Martin Walser (Planeta)-  Uma bela incursão pela alma, mente, espírito e corpo de Goethe, o qual, septuagenário, se inspira na sua paixão por uma mocinha de 19 anos para compor um de seus mais famosos poemas. É o eros da criação contra a aproximação da morte, e aí não importa tanto se a paixão biográfica foi bem sucedida ou não.

8) A morte de Matusalém, de Isaac Bashevis Singer (Companhia das Letras)- O maior contador de histórias curtas da 2ª. metade do século XX em plena forma, tanto nas incursões sobrenaturais, onde mergulha no imaginário judaico, quanto (ou sobretudo) nas soberbas narrativas realistas.

9) Hóspedes do Vento, de Chico Lopes (Nankin)- Talvez o mais talentoso contista  brasileiro surgido nesta década, em sua terceira e mais equilibrada coletânea, após os talentosos Nó de sombras & Dobras da noite.

10) Sabres e utopias, de Mario Vargas Llosa (Objetiva)-  Uma chance de conhecer o pensamento político do incontornável vencedor do Nobel de 2010, sem que necessariamente tenha de se concordar com ele.

11) A questão dos livros, de Robert Darnton (Companhia das Letras)- magnífica reunião de ensaios  do historiador norte-americano onde ele discute o passado, o presente e o futuro do livro e do conhecimento enciclopédico.

12) Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas (CosacNaify)- Quanto mais vou conhecendo a obra de Vila-Matas, mais vou achando que ele é um dos grandes nomes da literatura atual. Este talvez seja o seu livro mais ambicioso.

Hors concours: 2666, de Roberto Bolaño (Companhia das Letras) & Os embaixadores, de Henry James (CosacNaify)- O que teria em comum um romance escrito por um Chileno e que transcorre num México microcosmo da nossa época, e um romance  em que James nos mostra o problema do cosmopolitismo, a problemática convivência entre americanos e europeus? Simplesmente são os romances mais ambiciosos escritos na década inicial do século, no caso de Bolaño, o nosso próprio século, e no caso de James, o século passado, e que parecem esgotar as formas narrativas em curso.

Feliz 2011 e um monte de leituras para todos.

TODOS OS CAMINHOS LEVAM A DUBLIN

 

“James Joyce desceu num autocarro em Berlim  e disse: esta não é a minha cidade. Não vejo Bloom.

    Há escritores que moram em personagens como há putas que moram em esquinas. James Joyce era um homem que morava em Bloom.

   De resto, havia um amigo de todos que era o homem mais lento do mundo: demorava mais de seiscentas páginas a percorrer um dia…”  (verbete James Joyce, em Biblioteca, de Gonçalo M. Tavares)

“… Digo-te que Bloom faz bem em baixar-se quando a bala vai direto à cabeça, e faz bem em manter a cabeça firme quando o beijo vai direto aos lábios. Admiro Bloom por saber distinguir, com perfeição, a bala do beijo. Bom Bloom, esperto Bloom, não-a-largues Bloom” (verbete Enrique Vila-Matas, id. ibid.)

“A única angústia de homem sensato é a angústia da não influência. Se o teu quarto de hotel entre os vivos for vizinho de habitantes imbecis, muda a direção da cama, para que pelo menos em sonhos sejas influenciado por diferente vento.

   (…) O balde brutal, vazio, no centro de uma casa de telhado fraco, anuncia a  chuva que aí vem. O balde pode ser, em objeto, o profeta que Sócrates foi para os gregos.

   Bêbado de biblioteca, Bloom (James Joyce-Bloom) baixa as calças-Bloom e abandona sobre o chão-Bloom uma urina-Bloom culta. Dir-se-ia mesmo não fosse ela urina simplesmente.

   A vantagem das idéias em relação  à rima é que as idéias rimam em qualquer língua, enquanto a rima não. O som é menos traduzível que o raciocínio…” (verbete Harold Bloom, id. ibid)

(resenha publicada, de forma mais condensada, em A TRIBUNA de Santos, em 14 de junho de 2011)

Se antes era a Roma que todos os caminhos levavam, parece que agora (pelo menos em se tratando da literatura pós-1922), o destino de todos eles é mesmo Dublin. É o que se depreende da leitura do mais recente romance de Enrique Vila-Matas, Dublinesca.

O protagonista, Samuel Riba, é um editor apaixonado por literatura (e portanto sem muita esperança de lucro) que teve de encerrar seu negócio em Barcelona.  Dois anos de inatividade, embora o tenham afastado do álcool (que ativava sua “persona” social), deixaram-no numa espécie de vácuo. Enquanto a esposa se inclina para o budismo, ele não consegue recuperar o entusiasmo de viver e uma identidade que perdera ao se tornar um “catálogo de autores”. Passa os dias no computador, consultando o Google, transformando-se (como ele mesmo caracteriza-se) um hikikomori, um autista informático. Isola-se, perde seus contatos e espanta a vizinhança com sua aparência de morto-vivo (além de preocupar os pais nas visitas semanais que faz a eles), nas poucas vezes que sai às ruas de uma cidade onde a chuva se faz cada vez mais presente. É como se o mundo enfrentasse um novo dilúvio, como se estivéssemos num clima de final de mundo.

Instado pelos pais a falar de seus “planos futuros” (apesar de que, às vésperas dos 60 anos, se sinta velho e acabado), Riba de repente tem a idéia de fazer no bloomsday um funeral da literatura e da era de Gutenberg (devoradas pelo triunfo digital), que teriam chegado ao auge justamente na genial construção de Ulisses, cujo famoso capítulo do enterro de Paddy Dignan, acompanhado por seus compasses dublinenses, serviria como inspiração para esse singular réquiem. Para a empreitada, Riba convida alguns amigos.

Uma vez em Dublin, Riba se sente mais e mais acossado por fantasmas e aparições (embora o universo de Dublinesca e de Vila-Matas sejam mais de desaparições, seres, coisas e valores que vão obliterando-se nessa nossa época “apocalíptica”), e uma delas é uma figura idêntica ao jovem Samuel Beckett, o qual resolvera adotar a sua linguagem destrutiva porque Joyce já tinha “feito tudo”.

Assim, temos o encontro do auge da representação romanesca (Ulisses) e a ressaca pós-modernista (a partir da obra de Beckett), toda a linhagem mapeada por Vila-Matas de artistas (escritores, cineastas, músicos, pintores e criadores inclassificáveis) cuja missão é capturar “o que acontece quando parece não acontecer nada”. Se Joyce transformou o trivial cotidiano em epopéia modernista, ao explorador dessa supernova digital que devorou a chamada “Galáxia de Gutenberg” (McLuhan, cujo centenário se comemora neste 2011) resta o quê? “Mesmo assim continuará imaginando. Desolação, solidão, miséria ao rés do chão. Instalado no pior do pior…”

   Ou, como diz Beckett “O que restará de toda esta nossa miséria? Afinal, só uma velha puta passeando com uma gabardina irrisória, num dique solitário, debaixo da chuva”.

Com a nota pessimista das citações acima, e com sua teia de referências e citações[1], Dublinesca pode criar no leitor a expectativa de uma leitura pesada e indigesta. Muito pelo contrário: o grande escritor espanhol consegue fazer um romance lírico, poético e até “comovente” (estou consciente do risco que corro ao empregar essa palavra a princípio tão deslocada na tessitura textual predominantemente irônica de Vila-Matas). É como se o uruguaio beckettiano e dissolvente Juan Carlos Onetti (de A vida breve) tivesse sido banhado pelo universo mais terno e humanista de seu conterrâneo Mario Benedetti (de A trégua); ou, como se aqui no Brasil, João Cabral de Melo Neto se retemperasse nas águas de Drummond.

Dessa forma, o mundo morto-vivo, fantasmagórico, insubstancializado, do editor espanhol que perdeu sua razão de ser e vai fazer o funeral da literatura no dia mais importante de Dublin, acaba fazendo desse desfile fúnebre uma luta pela vitalidade e pela renovação: “Sempre aparece alguém que nunca se espera”.  Pode ser a morte, mas também pode ser a vida. Uma lição aquém da radicalidade beckettiana, entretanto digna de Joyce: o cadáver que de repente surpreende com sua regeneração: A chuva pode cessar, but “riverrun, past Eve and Adam´s, from swerve of shore to bend of bay…”


[1] Sem querer fazer um levantamento exaustivo, temos—além de Joyce e Beckett, alguns  bastante famosos (Borges, Pessoa, Nabokov,   Oscar Wilde, Italo Calvino, Marguerite Duras, Cortázar, Melville,  Paul Auster,  Antonin Artaud, Dylan Thomas, Nietzsche, Yeats,  Proust Emily Dickinson), outros nem tanto (Hugo Claus, Claudio Magris, W. G. Sebald, Julien Gracq, Robert Walser, Georges Perec, Carlo Emilio Gadda Maurice Blanchot,, Jules Renard, Flann O´Brien, Siri Hustvedt,  Mark Strand,  Roberto Bolaño,  Julian Barnes,  Perer Handke, John Banville), outros bem mais para desconhecidos (Mark Strand, Idea Vilariño, Augusto Monterosso, José Emilio Pacheco, Claire Keegan,Joseph O´Neill, o grande tradutor J. Salas Subirat , Brendan Behan, Colum McCann), e outros que são citados e que não achei no tão amado Google de Riba (Larry O´Sullivan, Andrew Breen, Hobbs Derek, Vilém Vok);além dos escritores, temos os cineastas David Cronenberg (e seu filme Spider), Charles Walters (High Society), Antonioni (O deserto vermelho), John Ford, a atriz Catherine Deneuve, entre outros; também os músicos Tom Waits, Bob Dylan, Johnny Cash, a cantora Billie Holliday; temos o pintor Vilhelm Hammershoi (ver quadros abaixo), a criadora de instalações Dominique Gonzales-Foerster. E há as referências constantes à Marshall McLuhan e sua “Galáxia de Gutenberg” e ao “Teatro de Oklahoma”, que evidentemente nos evoca Kafka (de  Amerika ou O Desaparecido, onde no entanto é grafado como Teatro de Oklahama).

É bom lembrar que o poeta Philip Larkin tem um poema (sobre o enterro de uma velha prostitura) que, entretecido com o bloomsday e trechos de Beckett compõem toda uma mitologia da literatura no romance:

“Pelas vielas de estuque

onde a luz é cinzenta

 e a névoa da tarde

acende a luz das lojas

sobre rédeas e rosários,

passa um funeral.

O carro segue à frente,

mas atrás, acompanhando,

uma tropa de rameiras,

com largos chapéus floridos,

mangas-presunto

e vestidos até os pés.

Há um ar de grande amizade,

como se homenageassem

alguém que lhes é querida;

algumas dançam uns passos,

hábeis levantando as saias

(alguém bate o ritmo com palmas),

e de grande tristeza também.

Quando seguem seu caminho

uma voz se ouve cantando

sobre Kitty, ou Katy,

como se o nome um dia evocara

todo amor, toda beleza.”

Crie um website ou blog gratuito no WordPress.com.